CONTEUDO LIVRE
SEXTA-FEIRA, 23 DE ABRIL DE 2010
CARLOS HEITOR CONY Os elefantes da "Aída"
OUVI NA BBC que o prefeito de Jerusalém está ganhando um dólar por mês para desempenhar a sua função de síndico da complicada cidade, berço das três principais religiões monoteístas. Uma prática que já foi tradicional, sobretudo nos Estados Unidos, onde se criou a figura do "one dólar man". Aqui no Brasil, pelo que sei, é prática rara ou inexistente. Homens de posses quando vão para o governo não costumam abrir mão dos vencimentos do cargo que ocupam.
Conheci pelo menos uma exceção. Adolpho Bloch foi nomeado no governo de Faria Lima para a Fundação dos Teatros do Rio de Janeiro, a antiga Funterj. Recebia um cruzeiro por mês, dinheiro que ele invariavelmente jogava no bicho, tentando a sorte. Ganhou algumas vezes.
Mesmo assim, trabalhando praticamente de graça, não fez economia para os cofres do Estado. Pelo contrário: gastou muito e bem. Fez reformas substanciais no Teatro Municipal e no João Caetano, do qual só aproveitou as paredes. Construiu o Teatro Villa-Lobos, com acabamento luxuoso e um apêndice para peças infantis. Pelo que sei, foi o último teatro profissional construído no Rio de Janeiro.
Quanto à programação, gastou os tubos contratando Franco Zeffirelli para montar "La Traviata", nos moldes que o diretor italiano havia feito para a Metro, sem medir despesas. O sucesso foi tal e tanto que Zeffirelli, entusiasmado com o seu novo produtor, quis fazer uma "Aída" no Maracanãzinho, ideia que Adolpho topou com entusiasmo maior.
Como todos sabemos, uma "Aída" a preceito é caríssima e tem como padrão as famosas encenações da ópera de Verdi nas Termas de Caracalla, em Roma.
Adolpho já tinha visto uma e gostou principalmente dos elefantes que comparecem em cena durante a conhecida Marcha Triunfal. Perguntou a Zeffirelli quantos elefantes iam para a cena em Roma, o diretor garantiu que dois bastavam. Adolpho queria quatro.
Nas conversações preliminares, visitaram alguns circos das redondezas, poucos tinham elefantes, mas eram esquálidos, velhos, decadentes, caindo aos pedaços. Produtor e diretor queriam elefantes monumentais, bastavam dois, mas Adolpho não abria mão dos quatro.
Descobriram uma agência no Cairo que alugava elefantes por preços absurdos, pois além do aluguel em si, havia a obrigação do transporte de ida e volta, do seguro de vida e de acidentes, veterinário e domadores especializados em elefante. O orçamento, que já era caro com as roupas e os cantores, ficou caríssimo com a parafernália animal.
Quando Adolpho levou o orçamento para aprovação superior, o governador caiu das nuvens. Dava para matricular todas as crianças do Rio nas escolas públicas, aumentar a rede de esgoto e de galerias das águas pluviais.
Chorão como sempre, Adolpho fez um abatimento, em vez de quatro, três bastavam, mas tinham de ser elefantes cinco estrelas. Seria a maior montagem da ópera em todo o mundo, Zeffirelli traria Plácido Domingo para o papel principal, quanto às roupas, ele alugaria todas nos arquivos romanos e egípcios.
O governador ficou de pensar, mas não pensou muito. Perguntou a Adolpho se não podia montar uma "A Viúva Alegre", com roupas feitas aqui mesmo e, sobretudo, sem nenhum elefante.
Adolpho respondeu que a opereta de Lehar era digna do Teatro Carlos Gomes, que já havia montado "My Fair Lady" com absoluto sucesso. Além do mais, a produção de uma opereta, ainda que digna e famosa, não combinava com a carreira internacional do diretor nem com as dimensões do Maracanãzinho.
Resultado: o projeto gorou. Adolpho ficou uns tempos deprimido. Zeffirelli voltou para a Itália com a promessa de que, resolvidas certas "questões" na empresa, o próprio Adolpho bancaria a montagem do seu bolso particular.
Infelizmente as coisas andavam difíceis para a empresa que ia entrar no ramo da televisão. Ao se despedir da Funterj, ele recebeu elogios do governador, que o considerava um "príncipe da Renascença" desde que não cismasse com os elefantes. Foi, aliás, um dos poucos sonhos que Adolpho não conseguiu realizar.
Postado por conteudo livre . Marcador: Carlos Heitor Cony, às 9:31h
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