sábado, 10 de abril de 2010

O DESEJO, O GOZO E A NOITE ETERNA DOS SHOPPING CENTERS (parte 3)

O DESEJO, O GOZO E A NOITE ETERNA DOS SHOPPING CENTERS – (PARTE 3)



Vicente Deocleciano Moreira

vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com

FONTE DIRETA – Blog http://www.viverascidades.blogspot.com




Duas palavras sobre a nova arquitetura dos novos Shopping Centeres Daqui por diante chamemos Shopping Centeres de, simplesmente, SC. Pois bem: essa nova arquitetura transformou o que poderia ser apenas ‘ecologicamente correto’ num partido estético promissor. Estou falando da atual tendência de utilizar grandes clarabóias (semicirculares algumas mas todas quase sempre poligonais) para permitir a penetração da luz solar nas praças (de contemplação e de alimentação), plantas, pequenos bosques e ruas dos SC. Mesmo os SC mais antigos que, na época do projeto e da construção, não contavam com este recurso (clarabóias) reuniram condições para, na ampliação, utilizá-lo – ou mesmo nas construções mais primitivas quando tecnicamente possível e - é claro! - economicamente viável,
Durante o dia, as clarabóias mostram, aos clientes, as nuvens e o quanto o céu está azul, gris ou nublado. À noite, porém, o fenômeno ótico provocado pela iluminação elétrica expõe um céu terrivelmente chapado e apocalíptico.
Os interiores dos SC mais antigos (ruas, praças de contemplação e praças de alimentação) não recebiam luz solar e tudo era feito para que o consumidor fosse cercado e ilhado, por todos os lados pelos olhos bem abertos vitrines. Afinal estava ‘proibido’ a visão das ruas onde aconteciam a movimentação de pessoas e a circulação de veículos, para que ele não se dispersasse; não se distraísse – ou seja, não desviasse a atenção daquilo que realmente importa aos comerciantes: os produtos colocados à venda. Hoje, os SC modernos permitem, em seus avarandados, que o consumidor respire outros ares, veja outras paisagens. Antigamente, se acordasse dentro de um SC alguém pensaria, se desinformado quanto as horas, ter despertado à noite.

Antigos ou modernos, a iluminação das vitrines e do interior das lojas (da menor butique às âncoras) dos SC é mantida com lâmpadas elétricas dia e noite. Em outras palavras, dez horas da manhã ou dez horas da noite, continua eterna, ao menos nas vitrines, sanitários e berçários, a noite dos SC. Sequer imagino vitrines de SC iluminadas pelo sol porque ele danificaria, desbotaria todo e qualquer produto.

Que articulações se podem fazer entre o desejo, o gozo e a noite eterna dos SC, dessas verdadeiras cidades de vidro dentro de cidades que têm, o dom de nos iludir com promessas de segurança, conforto e bem estar que as cidades não mais pode prometer?

Primeiramente, cabe reiterar que, mesmo na vigência da luz solar, as vitrines (e até mesmo praças e corredores) são iluminadas por lâmpadas elétricas; é a noite eterna das vitrines, dessas tábuas de salvação de todo e qualquer SC. Essa noite se conserva eterna, mesmo quando o sol banha praças (de contemplação e de alimentação) plantas e sofás de descanso. Sofás de onde se vê quase sempre alguma vitrine. E onde sempre se é visto pelos olhos sedutores das vitrines.

Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
- Dá tua mão
- Olha pra mim
- Não faz assim
- Não vai lá não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão

(“As Vitrines”, Chico Buarque)


Em segundo lugar, não temos competência nem objetivamos fazer uma análise à luz dos manejos técnicos de exposição de mercadorias: jogos (claro e escuro) e cores de luz, incidência sobre o produto, ângulos de exposição, decoração ... e tudo o mais que excite o consumismo das pessoas, inventando-lhes desejos e necessidades de ter mais.

Nossa leitura se afasta desses domínios técnicos, psicológicos e comerciais. Interessa-nos o desejo e o gozo, os quais conceituamos aligeirada e superficialmente nas duas postagens anteriores. Em qualquer lugar, casa ou rua, SC ou avenida transitada, a iluminação elétrica – por mais amplo que seja o ‘banho de luz’ – deixa objetos e coisas à meia luz numa indefinição de formas e cores que, de um lado, agrada (e de algum modo satisfaz) a pulsão escópica. De outro lado, essa capacidade da lâmpada elétrica de mostrar não mostrando, de esconder porque quer exibir o objeto (ou pessoa) iluminado, ao longo das ruas a céu aberto foi, também, uma característica da iluminação operada pelos lampiões de gás. Como não pensar que era um lobisomem, um ‘bicho papão’, uma pessoa encostada em um poste e iluminada pela luz bruxuleante de um lampião de gás?. Lampiões de gás alimentaram e ajudaram a criar muitos personagens sinistros que habitavam as noites urbanas. Monstrengos que, sob ameaças terríveis saídas da boca dos pais e avós, obrigavam assustadas crianças a dormir cedo.

Lâmpadas elétricas, mais e mais sofisticadas, de vitrines de SC ajudam a criar e alimentar monstros insaciáveis do consumismo sedutores mas nada ilusórios.

A ‘plenitude’ da luz do dia ‘dissolve’ as ilusões e as incertezas e põe a nu coisas e gentes. Nosso desejo de consumir, nos SC, não se harmoniza com a solaridade pois ele necessita do não dito (não mostrado), precisa vitalmente de objetos que quanto maiôs se escondem, nas sombras e subsombras mais se mostram, num jodo de instabilidades que alimentam nosso gozo.

Blaise Pascal (filósofo e matemático francês, 1623-1662), muito antes das noites eternas das vitrines dos SC - esses olhos de vidro que, a um só tempo, olham e são olhadas - já advertia que “o sol e a morte não devem ser encarados de frente”. Sim, porque o sol encarado de frente pode nos cegar; e a morte encarada de frente (sem subterfúgios e crenças na sua suposta provisoriedade e na vida post mortem) pode reduzir ou eliminar nossa vontade de viver e de planejar o futuro inclusive o do dia seguinte.

A noite, dentro e fora dos SC, reveste nossa imaginação com a ancestralidade e atavismo do mistério, do oculto. Antes que Prometeu houvesse roubado, dos deuses, o fogo e o entregasse à humanidade, nós dispúnhamos apenas da luz do luar e das estrelas. A novidade do fogo acrescentou um quantum significativo de mistério e de conteúdos do não revelado, em nossas vidas. A luz do fogo, nas noites sem luar, conseguiu fazer do pior burguês o pior poeta.

Hotéis sofisticados e festas particulares igualmente refinados, utilizam tochas de fogo para iluminar os jardins. Não fosse por razões de segurança, as praças de alimentação e restaurantes sofisticados dos SC mais modernos seriam iluminados por tochas de fogo. Substituindo essas tochas e – talvez – proporcionando mais segurança temos as lâmpadas elétricas de 20, 40, 60 e 100 velas, ou seja, fogos. Nosso fogo pelo fogo ainda não apagou.

Conheço pessoas que dizem que é o jantar a refeição que atesta nossa condição sofisticada de seres humanos e de seu distanciamento em relação aos outros animais. O almoço serve só para alimentar o corpo, as vísceras (“saco vazio não fica de pé”).
Imaginem o pânico de alguém que acabou de ser convidado para um almoço a luz de velas:
“- Você está me convidando para um almoço a luz de velas? É almoço ou velório. Abra o jogo. Ai, ai, ai ... ai, ai, ai ... quem morreu? Me diga, pelo amor de Deus, quem foi que morreu!!!”

(Não aconselho ninguém a fazer esse tipo de convite ao pior inimigo)

Acender velas durante o dia, num velório ou próximo de um morto em pleno asfalto por exemplo, traz o significado prático-simbólico de que a vela iluminará o longo caminho da alma do defunto até o mundo dos mortos.

A noite inventou o jantar e a ceia. E, muitas vezes, jantamos sem estar lá com essa fome toda. Convidar ou ser convidado para jantar traz símbolos, linguagens, promessas afetivas e eróticas, e, bem não esquecer, expectativas que nenhum almoço ou banquete solar é capaz de suscitar..

. O amor precisa de luz de velas pois, segundo Blaise Pascal, enquanto ele (o amor) “é cego, a amizade fecha os olhos”. Convidar alguém para um jantar à luz de velas diz quase tudo das segundas ou terceiras intenções de quem fez o convite. Para um bom entendedor, meia vela basta.

(AMANHÃ, DOMINGO, DIA 10 DE ABRIL ... AFINAL A PARTE FINAL)

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