domingo, 28 de fevereiro de 2010

RESENHA DOMINICAL

Mundo, vasto mundo deste domingo, 28 de fevereiro de 2010.

Agora, o Chile.

RESENHA DOMNINICAL - 2

DOMINGO À TARDE PARA QUÊ (?)

DOMINGO NO PARQUE

Gilberto Gil

O rei da brincadeira
Ê, José!
O rei da confusão
Ê, João!
Um trabalhava na feira
Ê, José!
Outro na construção
Ê, João!...

A semana passada
No fim da semana
João resolveu não brigar
No domingo de tarde
Saiu apressado
E não foi prá Ribeira jogarCapoeira!
Não foi prá lá
Pra Ribeira, foi namorar...

O José como sempre
No fim da semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo
Um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio...
Foi no parque
Que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu
Foi que ele viu
Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João...
O espinho da rosa feriu Zé
(Feriu Zé!)
(Feriu Zé!)
E o sorvete gelou seu coração

O sorvete e a rosa
Ô, José!
A rosa e o sorvete
Ô, José!
Foi dançando no peito
Ô, José!
Do José brincalhão
Ô, José!...
O sorvete e a rosa
Ô, José!
A rosa e o sorvete
Ô, José!
Oi girando na mente
Ô, José!
Do José brincalhão
Ô, José!...
Juliana girando
Oi girando!
Oi, na roda gigante
Oi, girando!
Oi, na roda gigante
Oi, girando!
O amigo João (João)...
O sorvete é morango
É vermelho!
Oi, girando e a rosa
É vermelha!
Oi girando, girando
É vermelha!
Oi, girando, girando...
Olha a faca!
(Olha a faca!)
Olha o sangue na mão
Ê, José!
Juliana no chão
Ê, José!
Outro corpo caído
Ê, José!
Seu amigo João
Ê, José!...
Amanhã não tem feira
Ê, José!
Não tem mais construção
Ê, João!
Não tem mais brincadeira
Ê, José!
Não tem mais confusão
Ê, João!...

Êh! Êh! Êh Êh
Êh Êh!Êh! Êh!
Êh Êh Êh Êh!
Êh! Êh! Êh Êh
Êh Êh!Êh! Êh!
Êh Êh Êh Êh!
Êh! Êh! Êh
Êh Êh Êh!...


O cantor e compositor baiano Gilberto Gil pinta, nesta canção (1967), o clima, cores e os objetos de um domingo à tarde, num parque de diversões instalado na Boca do Rio. É bairro popular, uma invasão que deu certo, na orla marítima de Salvador – Bahia – Brasil. São dois personagens (João, operário da construção e José, feirante) e uma mulher que compõem um triângulo amoroso. João, operário e José, feirante deixam para trás o canteiro de obras e a feira, respectivamente, para – num parque de diversões e com Juliana – tentar a visibilidade social que sua profissões não lhes permite durante os chamados “dias úteis”.

O desfecho do triângulo amoroso, regado a traição e ciúme, traz consequências hemodramáticas. E configuram um cenário não exatamente o desejado ou esperado mesmo para um domingo à tarde e seus momentos de tédio, descanso, solidão, cochilo sagrado, ressaca alcoólica ... São momentos tão poderosos que nem as poderosas emissoras de TV brasileiras foram ainda capazes de mudar, com os entretenimentos que confortam nos “dias úteis”, esse conteúdo dominical preguiçoso e melancólico dos domingos à tarde.

De que vale a 'utilidade' do primeiro "dia útil" da semana, segunda-feira, se não mais haverá nem feira nem construção?


Domingo à tarde precisa ter alguma coisa especial na cidade (qualquer cidade) para ser esperado, com alguma emoção, Hoje, à tarde, em Salvador, torcedores estarão ligados ao jogo de futebol tido como “clássico baiano”: Bahia X Vitória. E precisa mesmo. Um jornal de Salvador, o “Correio da Bahia” publicou o seguinte texto, em sua edição de quarta-feira, dia 24:

“Domingo, dia de lazer do povão. Se o programa da tarde for assistir a um bom filme na sala maiôs refrigerada de Salvador, o ingresso é R$ 18, mas caso a opção seja o segundo Ba-Vi do ano em Pituaçu, o cidadão tem que desembolsar R4 40: mais que o dobro! Poucos torcedores foram comprar ingressos ontem, no primeiro dia de venda e os entrevistados estavam retados” (Correio da Bahia. Salvador, 24 de fevereiro de 2010, ano XXXI, nº 09997, p. 32 (Cad. Esporte).

No meio da semana, o jornal já antecipava a alegria triste contumaz dos domingos à tarde no geral e, no particular, das duas torcidas; afinal, os dois times parecem doentes dos pés; será que não estão gostando de samba?
É imprescindível, para muita gente, ter um bom projeto, uma espçerança-a-última-que-morre, para domingo à tarde. Nelson Ned, cantor e compositor, com a palavra:
DOMINGO À TARDE
Nelson Ned

O que é que você vai fazer domingo à tarde,Pois eu quero convidar você prá sair comigo,Passear por aí numa rua qualquer da cidade,Vou dizer pra você tanta coisa que a ninguém eu digo.Eu não tenho nada prá fazer domingo à tarde,Pois domingo é um dia tão triste prá quem vive sozinho.Quando eu vejo um casal namorando,é que eu sinto a verdade.É tão triste passar o domingo sem ter um carinho.Se você vive tão só, sei que vai me entender,Sem amor é muito mais difícil a gente viver,Pela última vez responda, mas diga a verdade,Pois eu quero sair com você domingo à tarde.

E, você, já pensou o que vai fazer hoje à tarde?

Bom domingo e melhor domingo à tarde..

Assim seja.

Vicente
vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com

RESENHA DO LIVRO DE BENJAMIN

RESENHA

LIVRO


CHARLES BAUDELAIRE, UM LÍRICO NO AUGE DO CAPITALISMO, de WALTER BENJAMIN

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. / Auswhrl in drei Baenden/ Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. 1ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1989, 271 p.



Resenhista – Vicente Deocleciano Moreira



A cidade é modernaDizia o cego a seu filho Os olhos cheios de terraO bonde fora dos trilhos
A aventura começa no coração dos navios
Pensava o filho caladoPensava o filho ouvindoQue a cidade é modernaPensava o filho sorrindoE era surdo e era mudoMas que falava e ouvia

(“Trastevere” - Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)

Seja no auge do capitalismo seja na atual (2010) fase do capitalismo, qual é mesmo o nome desta fase?, a cidade moderna é vista pelo cego e ouvida pelo surdo mudo; tudo está fora de ordem, fora da antiga ordem das cidades. Nas cidades mais do que antes, no auge do capitalismo, há um certo despudor na exibição de suas entranhas; elas, as cidades? suas entranhas?, gritam, brilham e erguem espelhos altos, até o céu, como moinhos de vento para Dom Quixote, espelhos narcísicos e babélicos ... onde ela possa se ver e se amar a si mesma dia e noite. Não há quem não a veja, não há quem não ouça suas estridências.

Baudelaire opera, com seu saber satanista, uma verdadeira chuva ácida e iconoclasta contra a sacralização do poético e se entrega à perdição profana do decadentismo trazido pela modernidade. Pelo capitalismo. Contra Victor Hugo, contra Lamartine. A lógica da mercadoria se impõe; nela, o capitalismo fixa suas mais profundas raízes. Poetas não são mais semideuses quase etéreos. Se Baudelaire xinga o leitor de hipócrita – e isto é uma agressão, uma indelicadeza … para ele tudo bem! Ele também se autodenomina hipócrita e, et pour cause, irmão desse leitor. E não para por aí. Em As Flores do Mal ao se referir a uma meretriz, diante dela prostra-se como um vendedor do próprio pensamento:

“Para ter sapatos, ela vende sua alma,
Mas o bom Deus riria se, perto dessa infame,
Eu bancasse o Tartufo e fingisse altivez,
Eu, que vendo meu pensamento e quero ser autor”

Há uma indisfarçável ironia, fina ironia, no veredito: “um lírico no auge do capitalismo” que Benjamin oferece a Charles Baudelaire. É mesmo a oposição entre o capitalismo e a lírica? Entre o princípio da realidade e o princípio do prazer? Em Paris, e onde mais houvera, paga-se para colocar a cabeça sob algum teto. Credores perseguem o inadimplente e ‘sem teto’ Baudelaire que procura amoldar sua imagem de artista à imagem de herói. Escreve à mãe em 26 de dezembro de 1853:

“Estou a tal ponto habituado a sofrimentos físicos, sei tão bem contentar-me com umas calças rotas, com uma jaqueta que deixa passar o vento e com dias camisas apenas, tenho tanta prática de encher os sapatos furados com palha ou mesmo com papel que quase só sinto os padecimentos morais. Todavia devo confessar que agora estou a ponto de não mais fazer movimentos bruscos, de não caminhar muito, por medo de dilacerar’ ainda mais as minhas coisas”. (Baudelaire, Dernières lettres inèdites à as mère, Paris, 1926, pp 44-45, Citado por Benjamin, W., Op. Cit., p. 71-72)

As máquinas são barulhentas. As cidades são barulhentas; não fora a abençoada macadamização ninguém ouviria ninguém à mesma mesa de um mesmo café.

Nessas ruas e suas calçadas alargadas graças ao ‘bisturi’ reformista de Haussmann (aquele mesmo citado pelo Prof. Jackson, (em entrevista à Folha de S. Paulo) na postagem (deste Blog) do dia 19 de fevereiro ... eis que surge, enigmático, o flâneur ... a rua é seu habitat. É a figura central do universo urbano capitalista baudelaireano. Isolado na/da multidão vê e é visto, profeta da modernidade, lento contra toda e qualquer velocidade, sobretudo à velocidade esmagadora da mercadoria. Mas ele é mercadoria. O flâneur imprime no olhar, em todos os sentidos, sua subjetividade, sua privacidade guardada a sete chaves. Ele é sujeito e não um traste esmagado pelas luzes e pelas trevas da cidade como o basbaque.
À maneira de um banquete de filósofos, Benjamin convida Marx e Engels, Coubert, Vitor Hugo, Verlaine, Valéry e tantos outros além de Poe. Paris, o prato principal. Londre, outro prato bem degustado. Benjamin faz mediação no encontro Baudelaire e Poe e sua visão detetivesca (?) no estranho solitário na multidão da cidade moderna; estranho e, vale dizer, obscuro; ecce homo o flâneur de Poe.

É Baudelaire o flâneur. E isto basta como veneno antiromantismo, é.

PRÓXIMA RESENHA (postagem do próximo domingo – 7 de março)“Os mendigos na cidade de São Paulo: ensaio de interpretação sociológica”, de Marie-Ghislaine Stoffels. Editora Paz e Terra

LILITH ... (FINAL)

QUEM TEM MEDO DE LILITH?

Ter medo de Lilith é, sobretudo e antes de tudo, ter medo do clitóris de Lilith. Sim, do clitóris esse componente anatômico de importância decisiva para o prazer, para o orgasmo feminino. Um prazer e um orgasmo que – juntamente com a própria mulher toda ela – faz enigma para os homens, para as demais mulheres e para o mundo. Temido e perseguido, em suas dimensões sobretudo físico-anatômico-fisiológicas e simbólico-imaginárias - em diversos tempos, templos e culturas – o clitóris é o lugar príncipe da masturbação feminina. Vamos, mais uma vez, à contribuição do Malleus Maleficarum (o Martelo das Feiticeiras): Tais mulheres saciam os seus desejos obscenos não apenas consigo mesmas mas com aqueles que se acham no vigor da idade, de qualquer classe ou condição; causando-lhes, através de bruxaria de toda espécie, a morte da alma, pelo fascínio desmedido do amor carnal, de uma tal forma a não haver persuasão ou vergonha que os faça abster-se de tais atos. (KRAMER e SPRENGER, 1991, p. 122)

O ato de saciar os desejos “obscenos’ consigo mesma, ao se masturbar sozinha através da fricção (com o dedo, a mão ou algum objeto) sobre o clitóris pode representar, para muitos homens, uma provocação, um atestado de que elas não precisam deles ... tanto que eles estão excluídos daqueles instantes de prazer. Mas não só isso: o clitóris friccionado .e tudo quanto deriva desse ato - quando solitário – é, também, o empoderamento da mulher sobre seu próprio corpo; dispensa-se o poder masculino. O contemplar uma mulher se masturbando dessa forma na sua frente marca, na psique masculina, um turbilhão de sentimentos: um não-saber-o-que-fazer, sentimentos de impotência, exclusão erótica; e, também, perplexidade, mil interrogações mudas no momento em que ela é dominada pelo orgasmo, pelo gozo sexual que, por ser não-fálico (ou seja, impossível de ser dito, traduzido, relatado ...), deixa-o acorrentado na muralha da sua própria castração masculina.
O Martelo das Feiticeiras não é um tratado apenas sobre a masturbação feminina., sobre Lilith, bruxas, íncubos, súcubos e outros demônios poderosos ... todos poderosos com a permissão de Deus – graças a Deus! - para serem assim tão fortes e sedentos de pactos com as fraquezas do ser humano. Amém. No entanto, todo o texto dos inquisidores trai a perplexidade, as mil interrogações mudas, a prisão na muralha da castração (masculina) dos autores. Ao discurso que atua na condenação estão colados: o discurso do prazer em narrar o “ato indecente”, a “luxúria” e o discurso do voyeur que olha (sem ser olhado) a cena do sexo ou da mulher nua; a mão masculina que tenta acompanhar, com sua própria masturbação, a autônomia da masturbação clitoriana. E ele se irrita por não estar dando “as cartas”, por estar excluído desse modus operandi do orgasmo feminino.
Os inquisidores Kramer e Sprenger estão capturados um certo gozo sexual masculino mas não necessariamente ejaculatório. Estão presos a um gozo discursivo (fálico) sobre o gozo não-fálico da mulher, do ser feminino ... Feminino significa, literalmente minos fé, menos fé, fé de menos, ser de pouca fé ou menos merecedor de fé; evidentemente que esta é uma construção masculina acerca do feminino; o fato é que: “quem não sabe rezar xinga Deus”
O que quer uma mulher? – também os inquisidores – e por que não? - fazem esta pergunta. Caetano Veloso tem razão: “cada um sabe a dor e delícia de ser o que é”. A dor e delícia – ‘dor-delícia’ - é o próprio gozo na perspectiva psicanalítica freudiana-lacaniana.

INFIBULAR, EXTIRPAR O CLITÓRIS – ESTA É A ORDEM!
Lilith, seu ser insubmisso e particularmente seu clitóris provocam ainda (e desde sempre) reações de medo que não partem somente dos homens, mas também das mulheres e das sociedades e culturas. Porém, estas amedrontadas reações não têm se limitado aos discursos e ao plano simbólico. Existem homens e países (principalmente da África saariana, parte da Ásia e do Oriente Médio) que utilizam inúmeras justificativas sagradas e profanas para esconder, conscientemente, seus medos de Lilith e, então, partir para a infibulação e a excisão do clitóris de mulheres jovens não chegaram sequer à adolescência.
Infibular consiste em ‘costurar’ sem qualquer recurso anestésico os pequenos e mesmo os grandes lábios da genitália como recurso de garantir uma segunda pureza, virgindade, da mulher (a primeira é o hímen preservado) para aplacar e “apagar”-lhe a sexualidade. Deixa-se um pequeno orifício para o fluxo do sangue menstrual. Porém se este orifício for muito pequeno e ‘desconfortável ‘ à penetração do pênis do marido, este pode ampliar o tamanho fazendo uso de uma faca de ponta. Pais e mães exibem, com orgulho e cobiça financeira, as marcas da infibulação das filhas. Noivas que sofreram infibulação e excisão do clitória têm preços elevados no mercado de dotes daqueles países que avaliam tais práticas como patrimônios culturais e fazem uso da religião muçulmana para justifica-las perante Alá, a sociedade e o mundo. Por ocasião do parto, elas são desinfibuladas – mas, depois, são reinfibuladas não raras vezes a pedido insistente das mesmas. A infibulação chamada “faraônica” pode destruir a vulva, deixando no lugar desta uma cicatriz.
A excisão (extirpação) do clitóris é praticada geralmente por homens (há casos raros de mulheres praticantes). Pais (e mesmo mães) levam filhas pre-adolescentes e, ato contínuo, prendem por trás as pernas abertas da menina expondo-lhe a genitália a homens que utilizam instrumentos perfuro-cortantes como lâminas de barbear, navalhas, tesoura, lâminas flexíveis ... e espinhos de acácia para fazer a sutura. Também na excisão não se faz uso de anestesia – embora seja freqüente o emprego álcool e de urtiga (cansanção) para que uma dor maior (provocada pelo álcool ou pela urtiga) suporte a “menor” , o corte do clitóris. A excisão pode ser complementada pela infibulação dos pequenos lábios ou de toda a genitália.
Há mulheres, inclusive com formação universitária, que defendem estas práticas, têm orgulho de serem infibuladas ou excisadas. E acusam de racismo e de preconceito ocidental contra as mulheres qualquer crítica estrangeira a estes recursos de repressão física à sexualidade feminina.
“PU-TA!” , “PU-TA!”, “VAMOS ESTUPRAR!” ... : ESTA É A ORDEM!
"CA-LOU-RA"!, "CA-LOU-RA!", "VAMOS JOGAR ÁCIDO NA CARA DELA!" ... : ESTA É A ORDEM!
Estupradores e veterano(a) têm medo de Lilith.
O arquétipo de mulher insubmissa que Lilith encarna sobreviveu em São Paulo, Brasil, na última semana de outubro de 2009 d.C, na estudante Geisy Arruda da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban) – “quarta maior universidade do Brasil em matrículas, está em 159º lugar entre 175 avaliadas” (CASTRO, 2009). Geisy não estava se masturbando nem praticava nenhum “ato carnal” à luz das convenções ou na contra luz das convenções, não questionava os homens com a pergunta: “Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?”. Naquela última semana de outubro, em que o mundo perdera Lévi-Strauss, Geisy irritou os 700 estudantes universitários masculinos na genitália e na ideologia machista, da Uniban, porque usava um vestido curto nas salas e corredores da instituição de educação. Na avaliação de Suplicy (2009, p. A3),
Não. Não foi a impropriedade da roupa, mas o desejo, o medo e a raiva que a roupa despertou – igualmente, mas por motivos diferentes – em homens e mulheres. A inveja e o reprimido provocaram a mesma reação.

Contra Geisy, tais homens não julgaram, não praticaram condenação inquisitorial, não a infibularam ou extirparam o clitóris da jovem. Contra a vontade dela, xingaram-na - “pu-ta!”, ”pu-ta!” (BARROS E SILVA, 2009, p. A2), tocaram e machucaram, filmaram e fotografaram seu corpo.; Desesperada, Geisy se trancou na sala de aula e a turba – recém saída das trevas do século 16 – chutava a maçaneta da porta, pressionava porta e janelas e pedia a professores e funcionários, além de alguns poucos colegas, que a protegiam (até a chegada da Polícia que a escoltou até fora da universidade). Pênis talvez em riste, a turba pedia que seus providenciais protetores a entregasse pois queriam, explicitamente, estuprá-la: “vamos estuprar!”, “solta ela, professor!” (BARROS E SILVA, 2009, p. A2).
Para Calligaris (2009, p. E11),
O estupro (e o trote universitário que é sinônimo do trote da pior barbárie, contra calouras e calouros .. de cursos de Medicina e outros) é, para essas turbas, o grande remédio: punitivo e corretivo. Como assim? Simples: uma mulher se aventura a desejar? Ela tem a imprudência de “querer”? Ela ousa aventurar ser estudante de Medicina (ou de outro curso universitário), ela nos desafia , debaixo de nossos bigodes, mostrando desejo e querer? Pois vamos lhe lembrar que sexo, para ela, deve permanecer um sofrimento imposto, uma violência sofrida – nunca uma iniciativa ou um prazer. Pois vamos mostrar para ela quantos testículos mandam na universidade ...

A violência e o desprezo aplicados coletivamente pelo grupo só servem para esconder a insuficiência de cada um, se ele tivesse que responder ao desejo e às expectativas de uma parceira, em vez de lhe impor uma transa forçada.

A direção da universidade – após sindicância - resolve expulsar a aluna – fazendo lembrar a expulsão de Lilith, por Deus, para o Mar Vermelho a fim de que ela fosse conviver com os demônios que por lá viviam. Conclusão do processo inquisitorial, século XXI da era cristã:
“Foi constatado que a atitude provocativa da aluna buscou chamar a atenção para si por conta de gestos e modos de se expressar, o que resultou numa reação coletiva em defesa do ambiente escolar”. Geisy, diz a nota, ensejou “de forma explícita os apelos dos alunos” (BARROS E SILVA, 2009, p. A2).

Para a Uniban, então, a aluna teria provocado “de forma explícita os apelos dos alunos”. Lilith e seus detratores sobrevivem. Pressionada pela expectativa de prejuízo financeiro graças à possível redução do número de matrículas em 2010, pelo Ministério da Educação, a Ordem dos Advogados do Brasil, a União Nacional dos Estudantes, o Ministério Público, a imprensa e a opinião pública, a direção da Uniban marca entrevista coletiva onde revoga a expulsão. Agora, a promessa de que a aluna circulará por outro espaço distante do palco da tragicomédia anterior. Anterior sim, porque a segunda tragicomédia é enquistar a vítima, quase um cárcere privado. Os torquemadas e outros inquisidores continuarão a circular, livremente. Como se nada tivesse acontecido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?”. Enganou-se quem pensou que estas perguntas feitas a Adão por Lilith, sua primeira companheira humana, ficariam cada vez mais esmaecidas de tão distantes quanto desbotadas no tempo e no espaço – com o passar dos séculos e as transformações das sociedades e, principalmente, dos seus representantes masculinos. Um engano, certamente, de forte aroma iluminista.
Mais que uma memória mitológica, arquetípica, Lilith vive hoje porque insistem em sobreviver as formas mais antigas de violência contra a mulher e as “subsombras desumanas dos linchadores” (Caetano Veloso) tendem a sofisticar mais e mais suas fogueiras e seus baús de perversões e deles retirar armas que julgávamos enferrujadas e imprestáveis ao uso.
Não é nada confortável que, depois do itinerário crítico que fizemos pelos olhares e ações que as civilizações judaicas, cristãs e muçulmanas dirigiram contra Lilith, tenhamos agora que juntar nossas desculpas às desculpas de Calligaris:

Agora, devo umas desculpas a todas as mulheres que militam ou militaram no feminismo. Ainda recentemente, pensei (e disse, numa entrevista) que, ao meu ver, o feminismo tinha chegado ao fim de sua tarefa histórica. Em particular, eu acreditava que, depois de 40 anos de luta feminista, ao menos um objetivo tivesse sido atingido: o reconhecimento pelos homens de que as mulheres (também) desejam. Pois é, os fatos provam que eu estava errado. (CALLIGARIS, 2009, p. E11)

Mas nossa força e nossa vontade de lutar pelo direito às diversidades, e de suportar todas as adversidades, continuam vivas tanto quanto Lilith e Levi-Staruss continuam vivos – não importando as lógicas e as mitológicas que nos ajudam a acreditar nessas sobrevidas. E a acreditar que, como Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, continuaremos construindo o caminho mesmo que não cheguemos a Córdoba. A foto – a seguir - e já referida na NOTA METODOLÓGICA nos ajuda a continuar caminhando ...

R
EFERÊNCIAS
ALCORÃO Sagrado. São Paulo, Tangará, 1975.
BARROS E SILVA, Fernando de. Os linchadores da Uniban. Folha de São Paulo. São Paulo, 9 de novembro de 2009. P.. A2.
BÍBLIA Sagrada. São Paulo, Vida, 1984.
CALLIGARIS, Contardo. A turba da Uniban. Folha de São Paulo. São Paulo, 5 de novembro de 2009. p. E11.
CASTRO, Ruy. Perna de fora. Folha de São Paulo. São Paulo, 11 de novembro de 2009. p. A2.
ESCOLÁSTICA, Maria. O gozo feminino. São Paulo, Iluminuras, 1995, 207 p.
HITE, Shere. O Relatório Hite: um profundo estudo sobre a sexualidade feminina / The Hite Report / Rio de Janei

sábado, 27 de fevereiro de 2010

LILITH ... CONTINUAÇÃO DO ARTIGO

NOTA METODOLÓGICA



Todo estudante das primeiras auroras de um curso de graduação universitária em Antropologia como eu fui faz algum(!) tempo, aprende com o mestre Lévi-Strauss o modus operandi da aceitação da diversidade e do exercício da descentralização do pensamento racional, científico para a compreensão do mundo e dos seres humanos do mundo. Para olhar nos olhos e no corpo de Lilith não hesitei nem sofri em utilizar compreensões arquetípicas em meio a outras da psicologia junguiana e, do outro lado, a castração, o insconsciente estruturado como linguagem e outros olhares da psicanálise freudiana-lacaniana. O que me pareceu melhor lanterna para enxergar Lilith – este foi o critério. Heresia? Lilith é de uma heresia contagiante.


Fui surpreendido pelo fato do quase linchamento e estupro da jovem Geisy Arruda, estudante da Universidade Bandeirantes de São Paulo (Uniban), pelos seus jovens colegas, na mesma última semana de outubro (2009 d.C) em que morreu Lévi-Strauss. Há limites de páginas para artigos e, então, me senti tentado e obrigado a reduzir as páginas e linhas sobre Infibulação e Excisão e dedicar algumas delas ao lamentável episódio, divulgado pelas mídias nacionais e internacionais. A aluna foi perseguida e julgada por estar usando um vestido curto dentro da mencionada universidade.


Em, 12 de novembro de 2009 (d.C), vi uma foto no jornal baiano Correio da Bahia (Salvador, 12 de novembro de 2009, p.8 ) que ilustra reportagem sobre protestos de estudantes da Universidade de Brasília (Unb). Estão quase todo(a)s nus/nuas, protestando contra o que os algozes (todos eles) fizeram com Geisy na cosmopolita São Paulo. Hoje, quando vi essa foto (Ver final deste artigo) me senti menos culpado e menos inadimplente com a simpática platéia daquele 18 de setembro em Alagoinhas – Bahia. A foto mostra uma jovem de seios nus, na Unb, exibindo um cartaz que diz: “É PRECISO TEMER LILITH, ELA FICA ENCOLERIZADA QUANDO TENTAM ...”



LILITH, DEPOIS DO ZOOFILISMO DE ADÃO


A fase zoofilista não faz de Adão um homem mais alegre nem menos solitário. O homem continua só.. Do mesmo barro adâmico, Deus faz Lilith e a entrega a Adão – como um pai entrega a filha (que ele mesmo fez e/ou criou) ao noivo, em determinados ritos de passagem do ritual do casamento. Há, porém, quem defenda que Deus teria utilizado “fezes e imundície ao invés de pó puro” (GRAVES Apud SICUTERI, 1990, p.28). Compreendemos tal afirmação diante da mulher que Lilith viria ser: contestadora e consciente de ser sujeito de sua sexualidade e de seu próprio prazer sexual.


Tendo, enfim, uma companheira humana semelhante a ele, Adão agora está alegre e não mais está só. Tanta a felicidade, que ele chega a imaginar seu corpo e o corpo de Lilith um só corpo e as suas mãos entrelaçadas com as de Lilith estão amarradas com a ilusão de formarem uma única mão. Duas genitálias diferentes num só corpo ... é a doce ilusão do primitivo casal. Milênios e milênios antes, a verdade é que já intuíam a tese (vencedora) de Aristófanes: Lilith e Adão, cada um tem a certeza de que é a metade um de outro formando um só corpo.


Ainda hoje (2010 d.C), o sacerdote católico e o próprio curso de preparação de noivos católicos para o casamento reafirmam a ilusão de que houve e de que há/;haverá relação sexual, ao tentar convencer o casal, seja na preparação para as núpcias, seja no exato instante do ato ritual do matrimônio que eles são um só corpo, uma só carne. E incluem o “até que o morte vos separe”. Porém, sem o saberem, esta frase nada é a própria separação; a priori já estão separados desde ali, desde sempre e para sempre. Amém. Como se não bastasse, sacerdote – condenado ao celibato obrigatório - manda: “agora se beijem”, “os noivos agora se beijam” ... ou coisa que o valha; nesse beijo autorizado, permitido por Deus, cada um diz para o outro a mentira risonha do “eu te amo” Evidentemente, que o vexame público (a vergonha, tanta despesa com o bolo, bebidas, doces e salgados, etc. etc. jogado para o alto), seria a verdade tristonha da cada um falar bem alto na igreja: “eu me amo em você”. O paraíso dos suspiros e dos sorrisos transformado no inferno da indignação.



E, como se não bastasse a própria oratória, recorrem ao expediente bíblico (Bíblia cristã, o chamado Novo Testamento) das palavras de Cristo: “Não separe o homem o que Deus uniu”
Deixando 2009 d.C para trás (ou para frente?) e retornando ao in illo tempore, do casal primeiro, o fato é que Lilith (primeira companheira humana de Adão, depois do fracasso e do vazio d’alma que deixaram, nele, as práticas zoofilistas), está fazendo feliz o nosso carente herói.


Estão unidos numa só carne. Não ousemos separar “o que Deus uniu” nem lhes castigar com nenhum choque de realidade inventado pela tecnologia de Aristófanes.
Antecipando-se a Eclesiaste, Adão gozava com Lilith todos os dias desta vida vã. A lua de mel (Lilith vai ser chamada, depois – ironia à parte - de “Lua Negra”) teria sido mais doce, não fosse a contumaz impaciência demonstrada por Lilith. Com insistência, ela perguntava a Adão: “Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?



“POR QUE DEVO DEITAR-ME EMBAIXO DE TÍ? POR QUE DEVO ABRIR-ME SOB TEU CORPO?”



“Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?” (SICOUTERI, p. 35). O destaque a estas frases é proposital, embora saibamos que todo o destaque possível ainda será pouco, insuficiente, para chamar a atenção sobre a importância delas antes de tudo para compreendermos a mulher Lilith; e, de algum modo, porque ela não figura na Bíblia (Velho Testamento).


I - As frases usam o verbo DEVER num claro sentido de OBRIGAÇÃO. Questionam, pois, porque a mulher Lilith TEM que DEITAR e ABRIR-SE (abrir as pernas) debaixo do homem Adão. Os questionamentos carregam uma proposta “indecente” ao companheiro: Lilith quer deitar por cima de Adão e abrir as pernas em cima de Adão. Não quer se SUB- METER, quer dizer, se deixar meter por baixo. Lilith questiona, discorda da posição papai-mamãe. Esta posição – longe de parecer uma classificação grosseira, vulgar do presente – tem origem em tempos imemoriais quando o poder religioso, de algumas culturas, determinava a posição sexual de marido mulher – esta sempre embaixo daquele – para que o sexo cumprisse sua função reprodutiva – aliás, única função aceita no mundo da sexualidade, o prazer era considerado ilegítimo, proibido, indigno de seres humanos. Subvertendo a ordem, de que formas e posições


Lilith queria fazer sexo com Adão: 1 – Ele deitaria de bruços, ela ficaria por cima dele derrapando seu clitoris,nas formas curvas das nádegas e do anus de Adão. “Eu quero derrapar nas curvas do seu corpo” (Izabella Taviani – “Luxúria”);

2 – Ele ficaria de quatro pés enquanto Lilith “virando o jogo” (Izabella Taviani – “Luxúria”) roçaria seu clitória nas nádegas e com ele penetraria o ânus do companheiro; ou penetraria o ânus de Adão com um dedo enquanto o outro friccionaria seu próprio clitóris. Uma luxúria!
A exemplo dos adões de ontem e de hoje (2010 d.C), Adão não concorda com nenhuma dessas alternativas. Apega-se à gestão erótica, sexual, penetrocêntrica sim – mas ele/seu pêni/seus dedos/sua língua seguindo sendo os instrumentos de penetração. Ele no comando.
Ora, a palavra Lilith tem origem no sumério antigo Lulu que significa libertinagem, devassidão, luxúria ... atributos que, posteriormente, o Cristianismo registra e condena como pecado capital (ou pecado principal) ao lado da Ira, Gula, Inveja, Soberba, Avareza e da Preguiça. Lilith teria sido, desde sempre, o nome da primeira mulher de Adão, ou esse nome teria surgido depois da corajosa IN-SUBMISSÃO?


Talvez seja esta uma discussão não necessariamente acaciana, bizantina ... ou mesmo sumeriana. De todo o modo, salva-nos a leitura arquetípica do mito Lilith; assim sendo, o arquético, por definição geral, vem antes e segue depois de, no caso, Lilith. O arquétipo Lilith é maior do que a mulher Lilith não importa quando, porque e onde ela recebeu esse nome de origem tão pecaminosa aos olhos dos seguidores católicos (apostólicos romanos) de Jesus Cristo.


II – As frases são lapidares e definem a identidade de Lilith. São lapidares inclusive no sentido próprio de lápide tumular. Elas devem/deveriam ser gravadas a ouro no túmulo de Lilith. Com estas frases, ela “cava seu próprio túmulo”; as duas frases não abrem espaço para nenhum álibi. Com elas, Lilith se autocondena num processo que vai condená-la à morte – Deus como juiz.


III – As frases foram retiradas, censuradas, excluídas do texto bíblico (Genesis) porque ameaçavam o poder dos homens sobre as mulheres. Como foram os homens (em sua esmagadora maioria) os cronistas, ‘etnógrafo’s e ‘antropólogos’ ... enfim, os redatores da Bílbia, por certo eles não iriam “criar cobra para lhes morder as masculinidades – todas as masculinidades: do exercício do poder até o exercício da sexualidade. “Lua Negra”, Lilith será mesmo transformada em cobra, naquela serpente que vai despertar Eva para a desobediência (civil?) ao poder masculino - o de Deus- o criador do universo, segundo a Bíblia. Leiamos o seguinte trecho do Malleus Maleficarum (o conhecido “Martelo das Feiticeiras), escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger:



Diz-nos ainda [São Tomás , IV, 34] que, pelo fato de o primeiro pecado que tornou o homem escravo do demônio ter sido o ato carnal, logo maior o poder conferido por Deus ao diabo com relação a este ato e não com relação aos demais. Não apenas isso: o poder das bruxas é mais aparente nas serpentes do que em outros animais, porque foi através da serpente que o demônio tentou a mulher. (KRAMER e SPRENGER, 1991, p. 122)



Por que Lilith teria sido satanizada, diabolizada, pela Igreja Católica, a julgar por essas palavras dos inquisidores? Como dissemos, anteriormente, Adão não aceita a proposta de IN-SUBMISSÃO que lhe apresenta Lilith. Ela é expulsa por Deus e por Ele extraditada para uma região do Mar Vermelho onde, segundo crença judaica tradicional, estavam os demônios. Lá ela conhece um desses demônios, de nome Sataniel (o nosso conhecido Satanás) e com ele faz o sexo que sempre desejou, ardentemente, fazer com Adão. Têm centenas de filhos, a cada ano desse intenso e incansável amor. É exatamente aqui, por ter mantido relações sexuais com Sataniel, que começa a satanização, a diabolização de Lilith.


Lilith está feliz e realizada em sua esplendorosa luxúria. Deus a transforma em uma serpente cheia de sangue e saliva. Uma serpente cheia de sangue e de saliva pode ser tanto o clitória como o pênis em seus mais incendiários momentos de desejo e de paixão. Lilith reaparece na serpente que, primeiramente, tenta (e é bem sucedida) Eva para que desobedeça a Deus. Cedendo à sedução de Lilith, Eva “peca’ e passa o fruto (o troféu) do pecado para Adão.


AMANHÃ, DOMING☼, 28 DE FEVEREIRO, A ÚLTIMA PARTE DO ARTIGO)

AMANHÃ, ☼ TAMBÉM, A RESENHA DO LIVRO DE WALTER BENJAMIN (“CHARLES BAUDELAIRE, UM LÍRICO NO AUGE DO CAPITALISMO” E A RENHA DOMINICAL).

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

LILITH, PRIMEIRA MULHER DE ADÃO, FILHA DA ALMA DAS CIDADES

A cidade é mulher. Já o dissemos antes. Como as cidades, sobre as mulheres quanto mais se fala menos nos aproximamos da felicidade de pentrar em seu mistério, no insondável do feminino.

Uma vez, 1932, Sigmund Freud estava fazendo uma palestra quando alguém da platéia pediu: "Dr. Freud, fale-nos sobre as nulheres, por favor". Freud responder: "Sobre as mulheres perguntem aos poetas"

Diríamos: sobre as cidades, perguntem aos poetas; nada original eu sei - porém nada mais verdadeiro. Cito - de memória - Maiakovisk, endereçando seu coração à sua amada Tatiana:

"Na estatura/
Só tu me ombreias/
Fica, pois, sombranceira a sombranceira ao meu lado/
De qualquer modo tomar-te-ei, um dia/
Sozinha ou com toda a cidade de Paris".


A cidade, inquieta e inquietante que é, produz novos e inquietantes valores. Incômodos tanto quanto os valores disseminados por Lilith, a primeira mulher de Adão ... cassada da versão da Bíblia - que nos tem sido dado a conhecer - pelas mãos peludas dos homens masculinos.

Lilith desestrutura ... põe o mundo organizado e comodista "de ponta cabeça" ... a cidade desestrutura. Vamos a Lilith ... de corpo, alma (e olhos) bem abertos:

LILITH, A PRIMEIRA MULHER DE ADÃO: “POR QUE DEVO DEITAR-ME EMBAIXO DE TÍ? POR QUE DEVO ABRIR-ME SOB TEU CORPO?”: MEMÓRIA E CONTEMPORANEIDADE DE UM MULHER INSUBMISSA

Vicente Deocleciano Moreira

A D’us, Shalom - שלום - Graça e Paz. Para Claude Lévi-Satrauss (1908 – 2009), In Memoriam
Dobro os joelhos
Quando você, me pega
Me amassa, me quebra
Me usa demais...

Perco as rédeas
Quando você
Demora, devora, implora
E sempre por mais...

Eu sou navalha
Cortando na carne
Eu sou a boca
Que a língua invade
Sou o desejo
Maldito e bendito
Profano e covarde...

Desfaça assim de mim
Que eu gosto e desgosto
Me dobro, nem lhe cobro
Rapaz!
Ordene, não peça
Muito me interessa
A sua potência
Seu calibre, seu gás...
Sou o encaixe
O lacre violafdo
E tantas pernas
Por todos os lados
Eu sou o preço
Cobrado e bem pago
Eu sou
Um pecado capital...

Eu quero é derrapar
Nas curvas do seu corpo
Surpreender seus movimentos
Virar o jogo
Quero beber, o que dele
Escorre pela pele
E nunca mais esfriar
Minha febre...

(Izabella Taviani – “Luxúria”)


RESUMO
Lilith foi criada, por Deus, como a primeira esposa humana de Adão, mas foi excluída do Gênesis pelos homens depois de ter sofrido o castigo divinopor causa de seu questionamento a Adão e às regras sexuais vigentes: “Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?. Lilith, foi excluída da Bíblia porque ameaçava os tnteresses masculinos de dominação no sexo e na sociedade em geral. Lilith simboliza o desejo de reconhecimento da sexualidade feminina e da livre gestão erótica do clitóris. Ontem e hoje, aqui e ali, Lilith provoca medo e reações masculinas que vão desde a infibulação e a extirpação do clitóris até práticas contemporâneas mais sutis e menos sutis de repressão à sexualidade feminina inclusive em universidades
Palavras Chave – Lilith, Sexualidade Feminina, Mutilação, Excisão do clitóris, Repressão Sexual
ABSTRACT

Lilith was created by God, as the first human wife of Adam, but was excluded from the Genesis of men after suffering the punishment divinopor because of his questioning of Adam and sexual rules in force: "Why should I lie down beneath ti? Why should I open myself in your body?. Lilith, was excluded from the Bible because it threatened the tnteresses male dominance in sex and society in general. Lilith symbolizes the desire for recognition of female sexuality and the erotic free exercise of the clitoris. Yesterday and today, here and there, Lilith causes fear and reactions ranging from male infibulations and excision of the clitoris to contemporary practices more subtle and less subtl e repression of female seuality in universities inclusive.
Keywords - Lilith, Female Sexuality, mutilation, excision of the clitoris, Sexual Repression

INTRODUÇÃO
Qual a contemporaneidade da insubmissão feminina de Lilith, a primeira mulher humana de Adão? Por que os homens, as mulheres e a sociedade em geral têm medo de Lilith? Por que os homens, as mulheres e a sociedade em geral, ontem e hoje, aqui, ali e acolá, são tão capturados por esse medo que tentam – nos templos e nos textos laicos e religiosos - esconder Lilith, sufocar-lhe o grito de libertação e amputar-lhe o dedo que aponta para o futuro? Em que, por que, para que, como e onde Lilith ameaça a “supremacia” masculina e o status quo da sociedade contemporânea, sua ordem nacional/internacional e seus quadrantes axiológicos? Lilith - a primeira heroína bíblica, da tradição da sabedoria rabínica definida na primeira mulher/companheira humana de Adão.
Eva, a segunda heroína dessa influente tradição, foi a segunda companheira humana do primeiro herói (ou antiheroi?) bíblico.
No imaginário, Eva está sempre ao lado do bíblico companheiro, Eva, a segunda mulher de Adão, é mais conhecida e mais citada que Lilith; graças aos interesses e aos medos masculinos ancestrais que – num alto/baixo calão bem brasileiro - “cassaram” Lilith, que a excluíram da versão corrente do livro Genesis da Bíblia.
Teria Lilith sido extraditada para utopos? Teria sido removida, consciente ou inconscientemente, no momento em que ocorreu a transposição da versão jeovítica para a sacerdotal antecessora, que foi, das modificações operadas pelos Pais da Igreja? Ou essa exclusão de Lilith, enquanto myhtos, teria ido responsabilidade da interferência do logos cristão/católico e seu ceticismo racional (as Sagradas Escrituras dos cristãos) sobre o texto cristalino da Torah assírio-babilônica e hebraica?
Entre os labirintos do não dito e do que não pode ser revelado, eis que Lilith vive. Resta-nos o reconhecimento das sensibilidades etnográfica e hermenêutica, dos testemunhos de fé,e da iluminação pelo carisma dos Rabis – testemunhos abrigados na Torah (o Ensinamento) e nos Midrash (a Procura) presentes na Misnach (acervo de Códigos)
Companheiro(a)s, desde outrora, significa(m) aquele(a)s que come(m) – come + moram - junto(a)s o mesmo pão: com + panheiro. Não há come + moração sem comida (bebida) sem a liturgia do comer e do beber ... juntos e unidos pelo mesmo pão: a festa dos pães ázimos (Chag haMatzot) que vem depois da Pessach dos judeus em 14 de Nissan; a reifeição que assinala o fim do mês de Ramadan entre os muçulmanos; os pães e o vinho na festa das bodas com a presença de Jesus Cristo, na Bílblia cristã).
O pão, evidentemente, também pode ser simbólico, metafórico. Assim, perguntamos: que pão comum uniu Adão e Lilith e, depois, Adão e Eva? O pão primeiro da solidão humana primitiva de Adão; e, depois do pecado da desobediência a Deus, o pão da angústia da finitude (morte) de Adão como problemas. E, ab origine, a solução adotada por Deus, isto é, a impossibilidade do amor. Deus se antecipa ao “Não há relação sexual” de Jacques Lacan. Antecipa-se ao “No coração de quem ama fica faltando um pedaço” do compositor e cantor Djavan.
“Não há relação sexual”, assegura Lacan. Vale dizer, pode até acontecerem relações sexuais – mas não relação sexual porque – na cópula sexual - um(a) companheiro(a) não completa o(a) outro(a) ... há sempre uma falta, uma incompletude, uma satisfação não plenamente satisfeita por melhor que tenha sido o ato sexual. entre os pares. Daí que “omina animal trist post coitum” (todo animal fica triste após o coito sexual). A “tristeza” da incompletude.
E assim, quando mais tarde me procure/
Quem sabe a morte, angústia de quem vive/
Quem sabe a solidão, fim de quem ama/
Eu possa me dizer do amor (que tive):/
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
(Vinicius de Moraes – “Soneto da fidelidade”)

Deus fez Adão, quer dizer, o primeiro humano masculino à sua imagem e semelhança, e o fez macho e fêmea. “Filho de peixe peixinho é”, Adão andrógino que era, descendia do Deus/Pai também andrógino. Vamos usufruir do O Banquete, uma conhecida obra de Platão. Neste evento, entre comidas e bebidas filósofos estavam competindo pela apresentação da melhor tese sobre o amor. Venceu Aristófanes com a seguinte tese: havia um deus tão perfeito que era, num só corpo, masculino e feminino. Tal androginia não era apenas psíquica, era também somática.
Esse deus decidiu construir uma criatura humana à sua imagem e semelhança e, por conseguinte, também andrógino, também perfeito a ponto de a genitália masculina copular com a feminina num mesmo corpo. Depois, movido pelo ciúme e pela ira, esse deus separa as duas metades afastando-a bem longe uma da outra; desesperadas cada uma delas passa a copular com o chão e, a seguir, cada uma das partes começou a correr na busca da outra para voltarem a ser um mesmo corpo – porém jamais se encontrariam, jamais voltariam a se completar.
Aristófanes concluíra, então, pela impossibilidade do amor. Cada homem ou mulher ama a si mesma no seu companheiro, na sua companheira. A frase verdadeira é “Eu me amo em você” e não a falsa, conveniente e apaziguadora “Eu te amo”.
Andrógino, o primeiro homem estava só. Deus avaliou: “Não é bom que o homem esteja só”. O escritor (ou escritores?) desse momento bíblico estava, como um bom cronista, atento à realidade à sua volta. Isto porque, nas sociedades (camponesas por excelência) dessa época, homens (em maior escala que mulheres) mantinham relações sexuais com animais (o que depois passou a ser conhecido e patologizado como ‘zoofilia’, ‘bestialidade’ ...), reeditando e atualizando uma prática sexual muito comum entre os homens recém evoluídos do ancestral que, na frieza do clima e na carência de mulheres, faziam sexo com quadrúpedes disponíveis. Ainda hoje (2009 d.C), manter relações sexuais com quadrúpedes é comum em áreas rurais.
Vamos ao Genesis, primeiro livro da Bíblia judaica., ( II, 20): “Assim, o homem conferiu nomes a todos os animais, a todos os voláteis do céu e a todos os animais selvagens. Mas para o homem não achou ajudante que fosse semelhante a ele.”
Adão estava só e carente. Paternalmente, Deus permite que seu filho tenha relações sexuais com animais; e isto fica bastante claro na sutileza do texto que informa que o primeiro homem dá nome aos animais. Ora, dar nome (e conhecer), nesse espaço/tempo era – diríamos hoje (2009 d.C) - um eufemismo para afirmar a existência de relações sexuais. Dar nome e conhecer significam - ontem e hoje (2009) - uma mesma coisa: manter relações sexuais.
Em nossas sociedades contemporâneas, urbanas, modernas, internetizadas ... a mulher, ao casar com um homem, herda-lhe o sobrenome alterando, assim, a integridade de seu nome de solteira. Essa herança, esse novo sobrenome, significa o seguinte: o que deu o sobrenome e aquela que o recebeu mantêm relações sexuais legitimadas, legalizadas e sacralizadas. Isto dispensa e evita qualquer pergunta indiscreta vindo de quem quer que seja. “Quem dá o nome é porque come” – escancara o dito popular.
Quando o casal se separa, a maioria das mulheres exclui, formal e legalmente, o sobrenome do ex-marido, resgatando a integridade do nome de solteira. Afinal, supõe-se que ela não mais faz sexo com aquele homem. Há mulheres porém que, por várias razões, conservam o sobrenome do marido mesmo depois da separação, do divórcio – o que cria um certo mal estar pois ela já não mais faz amor com o ex-marido mas, simbolicamente, continua fazendo amor com ele.
(AMANHÃ, 27 de fevereiro, A SEGUNDA PARTE DO ARTIGO)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

ARTIGO SOBRE EURICO ALVES, AINDA - VERSÃO COMPLETA

Desculpe.

Peço desconsiderar a postagem anterio do artigo sobre Eurico Alves pois ela está truncada e incompleta.

Aqui vai a VERSÃO COMPLETA:


MEMÓRIA
CENTENÁRIO DE EURICO ALVES BOAVENTURA (1909-2009)


EURICO ALVES BOAVENTURA: PROFETA-POETA DO CONCEITO DE SAÚDE COMO QUALIDADE DE VIDA

ESTE ARTIGO INTEGRA AS COMEMORAÇÕES DOS DEZ ANOS (1999-2009) DO NÚCLEO DE ANTROPOLOGIA DA SAÚDE (NUAS/DCHF/UEFS)

Autores/Pesquisadores do Núcleo de Antropologia da Saúde (NUAS/UEFS):
Prof. Ms. Vicente Deocleciano Moreira - antropólogo
Profa. Dra. Maria da Luz Silva - enfermeira
Prof. Ms. Edna Lucia do Nascimento Macedo - enfermeira
Profa. Eronize Lima Souza - historiadora


RESUMO
Eurico Alves Boaventura, poeta nascido em Feira de Santana – Bahia, (falecido em 1974) estaria com 100 anos de idade em 2009. Este artigo classifica este poeta como profeta-poeta do conceito de Saúde como Qualidade de Vida porque muito de sua escritura poética, ao enaltecer as belezas naturais, climáticas e ambientais da cidade em que nasceu, antevê muitos indicadores qualitativos e qualtitativos do referido conceito no campo da Saúde Pública.
Palavras Chave: Feira de Santana; Poesia; Saúde; Qualidade de Vida; Ecologia
ABSTRACT
Eurico Alves Boaventura, poet born in Feira de Santana, Bahia, (dead in 1974) would be 100 years of age in 2009. This article classifies the poet as prophet-poet of the concept of Health as Quality of Life because of its very poetic writing, to enhance the natural beauty, climate and environment of city in which he was born, he predict qualitative and quantitative indicators of the concept in the field of Public Health.
Keywords: Feira de Santana, Poetry, Health, Quality of Life, Ecology


Uma lata existe para conter algo,
Mas quando o poeta diz lata
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo,
Mas quando o poeta diz meta
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo-nada cabe,
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta,
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora.
(Gilberto Gil – Metáfora)
INTRODUÇÃO
Eurico Alves Boaventura nasceu em Feira de Santana (Bahia) em 1909. Em 1923, mudou-se para Salador. Na capital baiana fez curso ginasial e, em 1933, se formou em Direito. Ainda estudante, participou do movimento modernista baiano e do grupo que fundou a revista Arco e Flexa. De 1928 a 1929, Eurico Alves Boaventura participou de um grupo de precursores do movimento modernista e publicou, até a década de 60, poemas, contos e crônicas em jornais da Bahia e de alguns outros estados nordestinos. Profundamente inspirado na vivência do sertão baiano, escreveu diversas obras sobre esta região, a exemplo do livro “Fidalgo e Vaqueiros”, além de poesias e contos.. O poeta feirense fez parte de um grupo de intelectuais e artistas defensores de um ideário denominado “tradicionalismo dinâmico”. Foi magistrado e, depois, juiz concursado tendo percorrido, nesta condição, diversos municípios e regiões da Bahia. Aposentou-se e retornou a Feira de Santana em 1965. e faleceu, em Salvador, em 1974..
Vinculado à Área de Conhecimento de Antropologia do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, o Núcleo de Antropologia da Saúde (NUAS) desde a sua criação oficial (1999) sempre abrigou e fez avançar discussões em torno dos conceitos de Saúde. Isto porque faz dez anos, pesquisadores, alunos e bolsistas de diversos campos de conhecimento consideramos a adoção e a orientação de um conceito de Saúde como fator decisivo para as políticas públicas, gestões de cidadania e ações práticas em Saúde. Daí que por consideramos Saúde como ausência de doença e mesmo o conceito clássico da Organização Mundial de Saúde (OMS) – saúde é o completo bem estar físico, psicológico, social ... “.
O fato é que, desde sempre, defendemos o conceito de Saúde como Qualidade de Vida como o mais apropriado para a realidade socioeconômica do Brasil e, pelo menos, vários outros países da América Latina, África. Enquanto o conceito de Saúde como ausência de doença se prendia e se reduz às dimensões biologicistas do processo Saúde/Doença, e o da OMS é idealista (“completo bem estar ...”) está sintonizado com o irrealizável, a concepção Saúde/Qualidade de Vida incorpora elementos políticos, ambientais e dá ênfase aos aspectos socioeconômicos e culturais da produção da doença no próprio processo Saúde/Doença. Não apenas isso; o conceito que defendemos é mensurável por diversos indicadores qualitativos e quantitativos: renda, habitação, educação/instrução, lazer, saneamento básico, assistência médica, prevenção e promoção da saúde, dieta equilibrada, estados psicológicos positivos, alegria de viver, alegria no que faz e no que trabalha, bom relacionamento e afetividade com familiares, vizinhos, amigos, e, na rua ou na cidade em que se mora e trabalha, arborização, espaços verdes, vida simples e sem muito estresse, conforto ambiental (incluindo o visual, o sonoro, redução da poluição sonora ...), qualidade do ar e dos recursos ambientais em geral, segurança pública etc, etc.
Na radicalidade, vale dizer, no ir à raiz do conceito de Saúde/Qualidade de Vida, mesmo que os exames laboratoriais (sangue, fezes, urina, biópsias, etc), poligráficos (ultrassonografias, eletrocardiograma, etc.) dentre outros tipos de exames médicos, de uma pessoa apresente resultados morbo-negativados – isto é, não indicativos de doenças – ainda assim isto não garante que essa pessoa tenha saúde se, no seu cotidiano, ela enfrenta condições insatisfatórias, insalubres e arriscadas relativas aos índicadores de Saúde/Qualidade de Vida mencionados no parágrafo anterior. Porém, se os resultados do exame médico de alguém apontar para alguma situação morbo-positivada (indicativo positivo de alguma doença),mas se ela viver sob condições ao menos razoáveis de indicadores de Saúde/Qualidade de Vida ela será considerada uma pessoa saudável
METODOLOGIA
A passagem da concepção de Saúde como Qualidade de Vida para a poesia de Eurico Alves Boaventura, e para dela partir, transitou por três atalhos: o Hino a Feira de Santana (letra e música de Georgina Erismann, 1928) a monografia “Terra de Sã Natureza – a construção do ideal de cidade saudável em Feira de Santana. 1833-1920” e a dissertação de Mestrado “Natureza sã, civilidade e comércio em Feira de Santana: elementos para o estudo da construção de identidade social no interior da Bahia (1833-1927)” - ambas do historiador Aldo José Morais Silva (SILVA, 1997, SILVA, 2000). Na dissertação, encontrei importantes escritos do médico Dr. Joaquim Remédios Monteiro – um outro “Eurico” a cantar loas sobre a hospiatlidade hospitalar de Feira de Santana.
Eurico, nome de origem hebraica, significa responsável pela descendência. Dito e feito: sua filha Maria Eugênia Boaventura, professora da Universidade de Campinas (Unicamp), São Paulo, organizou texto, pesquisa, seleção e notas, dando origem à obra Poesia (ALVES, 1990) nossa fonte de pesquisa sobre a produção poética de Eurico Alves.

EURICO ALVES E MANUEL BANDEIRA: POESIA EPISTOLAR
A exemplo de todos quanto se envolvem, intelectual, afetiva e emocionalmente, com a poesia de Eurico, adotaremos também o costume de fazer referência primeira aos poemas epistolares de/entre Eurico (“Elegia para Manuel Bandeira”) e Manoel Bandeira (“Escusa”). E, no caso particular do nosso artigo, esta prioridade não é somente uma força de hábito; é um imperativo.
Eurico:
ELEGIA PARA MANUEL BANDEIRA

Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta ...

Serra de São José das Itapororocas,
Afogada no céu, quando a noite se despe
E crucificada ao sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens
tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdí completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.

Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.

Manuel Bandeira, a subida da serra é um plágio da vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados

tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro.
Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
E na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.

Aqui se come carne cheia de sangue, cheirando a sol.

Que poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.

Feira de Santana! Alegria!
***
Alegria nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina das vaquejadas, que levam para a vida
e arrastam também para a morte!

Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!

Que lindo poema cor de mel esta alvorada!

A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.

Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana
e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados das noites eternas
venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e o tabaréu até se parece com Nosso Senhor.

A beleza deste tão reverenciado poema, urbe et orbe, impõe que ele seja citado na íntegra. Noblesse Oblige. Eurico o leu para o poeta José Luiz de Carvalho Filho que lhe disse: “Uma das melhores coisas que você já fez”. Eurico: “Não creio. Palavras ocas, ouvidos moucos.”. Carvalho Pinto arrebatou-lhe a cópia do poema das mãos e a enviou a Manuel Bandeira, no Rio de Janeiro. Eurico não gostou muito da atitude do amigo e asseverou: “Podia parecer cabotinismo” (carta de Eurico a Aline Olivais, datada possivelmente de 1931, em Alves, 1990, p. 65).

A resposta à missiva poética de Manuel Bandeira:
ESCUSA
Eurico Alves, poeta baiano.
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito,
Sinto muito,mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.

Sou poeta da cidade.
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar
o gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores
das madrugadas.
Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.

O poema de Eurico transpira sensualismo e, também, indicadores de saúde/ qualidade de vida melhores do que aqueles denunciados pelo texto de Manuel Bandeira. No Rio de Janeiro, cinéfilos lotavam e poluiam o interior abafado das quatro paredes dos cinemas (sem a circulação de ar e o conforto térmico de hoje evidentemente) com a exalação de gás carbônico proveniente da expiração. Em Feira de Santana, o ar puro de uma serra sem paredes e de um céu sem limites. No Rio já nas primeiras décadas do século passado, a crítica de Bandeira aos alimentos industrializados (“Bebo leite de lata”), às condições desconfortáveis do viver urbano carioca de então (“Como o pão que o diabo amassou”) e ao sedentarismo (“Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores da madrugada”). Por contraste, na Feira de Santana de inícios do século XX o ar puro, a simplicidade do estilo de vida urbana – ainda salpicado de ruralidades.
Na linguagem escrita (poemas, cartas, na Web, e mail ...), na instância virtual ou na oralidade a céu aberto, o diálogo entre duas pessoas parece estar marcado pela lógica matemática da teoria dos conjuntos. Por ser in-divíduo (não divisível, portanto), cada pessoa significa um conjunto diferente do outro. Mas quando os dois conjuntos estão interagindo se delineia um espaço de intersecção que é exatamente onde estão os elementos comuns aos dois diferentes conjuntos em meio aos seus exclusivos elementos. Assim, o não dito de Eurico está no dito de Bandeira – nos dizeres específicos de cada poeta – e vice-versa. Oscar Wilde tem razão: “Não existem perguntas indiscretas, existem respostas indiscretas”. Por outro lado, oculto sob a sombra da solaridade do explícito e do explicitado, o não dito de Eurico sobre o Rio de Janeiro está presente no dito de Bandeira sobre esta cidade. O não dito de Bandeira sobre Feira de Santana está presente no dito de Eurico sobre Feira. Não há resposta descompromissada com a pergunta, nem pergunta descompromissada com a resposta; mesmo quando existe silêncio numa parte ou mesmo nas duas das partes do evento dialógico.
A RUA, EURICO ALVES E JOÃO DO RIO
Há outros poemas apologéticos da natureza, cidade e campo de Feira de Santana, brotados de Eurico Alves, sobre os quais podemos refletir – como por exemplo A alma da rua (dedicada a Clóvis da Silveira Lima) e Poema leve da Rua Barão de Cotegipe.
Mais próximo do cidadão do que o município (mesmo com o processo de municipalização da Saúde) está a rua. A rua é um elemento formados do território em Saúde Pública, da área de abrangência do Programa de Agentes Comunitários de Saúde PACS/Ministério da Saúde - Brasil)e da comunidade de atuação do Programa de Saúde da Família (PSF/Ministério da Saúde - Brasil). A rua não deve apenas ser alvo de práticas preventivas de combates a epidemias (a exemplo da atual, março de 2009, epidemia de Dengue); ela deveria funcionar como um importante fragmento dos Sistemas Locais de Saúde (SILOS/Ministério da Saúde – Brasil). As ruas têm alma. E para não dizer que não falamos de poesia, vale arriscar um diálogo entre Eurico Alves e outro poeta: João do Rio, carioca, em seu livro “A alma encantadora das ruas”.
EURICO ALVES:
As ruas vivem ... as ruas choram ... as ruas têm alma ...
As ruas choram com saudades do dia as lágrimas pálidas dos fracos lampeões acesos.
As ruas riem pela gargalhada gostosa da claridade do sol.
Têm alma estas solitárias ruas, uma alma vagabunda,
Boêmia, ébria do vinho claro que cascateia da lua ... (Eurico Alves - “A alma da rua”)
JOÃO DO RIO:

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benares ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte.
EURICO ALVES:
É uma alma sem gozo, triste, triste como um soluço da mata
E perdida no ar, à-toa, no ar sem vida daquela viela estreita ...
Um quiosque, ao longe, silencioso, feio,
Pisca olhos de bêbados, tem olhares nervosos de agonia.
E aquele importuno automóvel vem macular
O silêncio triste da alma triste da rua ...
A rua tem uma alma vagabunda, pálida e boêmia ... (Eurico Alves - “A alma da rua”)

JOÃO DO RIO - A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer:

Je suís la rue, femme êternellement verte,
Je n’ai jamais trouvé d’autre carrière ouverte
Sinon d’être la rue, et, de tout temps, depuis
Que ce pénible monde est monde, je la suis...

(Eu sou a rua, mulher eternamente verde / jamais encontrei outra carreira aberta / senão a de ser a rua e, por todo o tempo; desde / que este penoso mundo é mundo, eu a sou...)
EURICO ALVES:
A rua larga é assim
Feito a gargalhada enloirecida da tarde.
Há meninos ricos tentando
Estragar o céu com pequenas bolas de borracha
Meninas ricas também,
Que lêem revistas
Em cadeiras de vime na calçada.
A tarde está vendo tudo, tudo,
E sorrindo ... (Eurico Alves – “Poema alegre da Rua Barão de Cotegipe”)

Sensualistas, Eurico Alves na ruas da Feira de Santana de seu tempo e João do Rio nas ruas do Rio de Janeiro de seu tempo, caminham como que flutuassem entre as levezas do cotidiano. Disponibilizando todos os sentidos para estas ruas, eles encontram em alguma praça, o sensualismo de Michel de Certeau. (CERTEAU, 1990a, 1990b) e o sensualismo “pensar é estar doente dos olhos” de Fernando Pessoa na pessoa de Alberto Caeiro. (PESSOA, 1993)

OUTRAS PALAVRAS E OUTROS EURICOS: GEORGINA ERISMANN
Via de regra, hinos de países e de muitas cidades, em todo o Mundo, têm conotações marciais.Exibem imodestas autorreferências de energia, força, coragem, disposição viril para a luta, para a guerra enfim: “Verás que um filho teu não foge à luta” (Hino Nacional do Brasil).. “Aux armes citoyens / Formez vos bataillons” (“La Marseillaise” – Hino Nacional da França)
O hino da cidade/município de Feira de Santana é uma das exceções:
Salve ó terra formosa e bendita
Paraíso com o nome de Feira
Toda cheia de graça infinita
És do norte a princesa altaneira
Bem nascida entre verdes colinas
Sob o encanto de um céu azulado
Ao estranho tu sempre dominas
Com o poder do teu clima sagrado
Sorridente como uma criança
Descuidosa da sua beleza
Do futuro és a linda esperança
Terra moça de sã natureza
Poetisa do branco luar
Pelas noites vazias de agosto
Fiandeira que vive a fiar
A toalha de luz de sol posto
De Santana és a filha querida
Noite e dia por ela velada
E o teu povo tão cheio de vida
Só trabalha por ver-te elevada

Este hino (letra e música) foi composto, em 1928, pela feirense Georgina de Mello Lima Erismann (27/01/1893 – 23/02/1940), musicista que dava aulas de de piano na Rua Conselheiro Franco – na época Rua Direita, ou melhor, Rua Direta. Direta pois ligava diretamente a Praça da Matriz à Praça Bernardino Bahia, as duas mais frequentadas praças e respectivos coretos.. Era o que chamamos hoje de “corredor cultural” de Feira de Santana, onde aconteciam espetáculos teatrais e musicais, desfiles carnavalescos depois micaretescos, de filarmônicas e de festas religiosas católicas (sermões, procissões, atos da Semana Santa).

OUTRAS PALAVRAS E OUTROS EURICOS: DR. JOAQUIM REMÉDIOS MONTEIRO

A altitude de Feira de Santana e a crença em sua “sã natureza” colocaram Feira de Santana até as primeiras décadas do século XX numa posição privilegiada e concorrida para todos quantos necessitavam de ar puro, de regiões elevadas e de bons miasmas para curar seus males de saúde – conforme a teoria epidemiológica miasmática então hegemônica. Para Feira de Santana correu o médico Joaquim Remédios Monteiro - o Dr. Remédios - ,na busca da saúde e da cura para a tuberculose de que sofria – cura atribuída ao ar, a altitude e o clima da Feira de Santana de então.
Dr. Remédios – nome de logradouro em Feira de Santana – formou-se em Medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro, em 1851, estudou em Paris (1855), retornou ao Rio de Janeiro (1858). Viajou a Desterro em Santa Catarina, na busca de cura para a tuberculose, mas não foi bem sucedido – a julgar pelo desalento de suas palavras no seu livro (manuscrito) intitulado ”Memórias” (SILVA, 2000, p. 114)):

Em maio de 1863 partí de Santa Catarina na persuasão de que a deixava para sempre e de que pouco tempo me restava de vida. Desde então ocorre-me freqüentemente a idéia de morte. Este pensamento gera no meu espírito um aniquietamento (sic) total que rouba-me toda alegria, me abate toda energia física e moral. Nem a confiança na misericórdia divina, nem a recompensa do bem que tenho praticado diminui a intensidade dessa idéia. Apavora-me a eternidade e a idéia da morte acompanha-me como a sombra segue o corpo.
Uma franca situação de desespero se abate sobre o Dr. Remédios até que, em 1877, a conselho do Dr. Antonio José Pedreira de Araújo, se muda para Feira de Santana, onde fixa residência, insere-se rápida e confortavelmente nas elites locais, adquire alto prestígio e ocupa a presidência da Câmara de Vereadores de 1887 a 1890. Em 4 de agosto de 1884, Dr. Remédios escreve e publica artigo, na Gazeta Médica da Bahia, com o título “A Feira de Sant’Anna como “Sanatorium” da Tuberculose Pulmonar”. Neste artigo, as palavras do Dr. Remédios são bem mais animadoras que as do texto em que se despede de Santa Catarina:

A cidade da Feira de Sant’Anna dista 22 léguas da cidade da Bahia.
Acha-se colocada num planalto de muitas léguas de extensão.
As ruas são em geral largas. De dez anos para cá tem se construído muitos prédios novos.
A temperatura mínima é de 17° cent. No inverno e a máxima no verão de 30º.
Com estas duas temperaturas extremas pode-se bem considerar a Feira de Sant’Anna apropriada a uma residência fixa de verão e de inverno.
O solo é extremamente duro e seco, de sorte que para se obter água é necessário cavar poços de 15 metros de profundidade.
No inverno predominam os ventos do quadrante sul e no verão os do norte, ambos sem impetuosidade.
A atmosfera é pura e agradável e por vezes sentir-se-á embalsamada pelas emanações aromáticas do alecrim silvestre que viceja nos terrenos incultos das circunvizinhanças.
Nos meses de setembro, outubro e novembro há dias frescos, bonitos, agradabilíssimos e esplendidos.
A Feira de Sant’Anna é uma estação sanitária encantadora, alegre como o sol que a doura.
Junte-se a isto a facilidade de comunicação com a capital e a vantagem de gozar de uma vida confortável, de uma alimentação rica, de muito bom leite e excelente carne.
Já em um dos meus escritos denominei-a – Petrópolis da Bahia.
As mulheres, os homens, as crianças enervadas, definhadas pela malária urbana da capital, sem molestais caracterizadas, vigoram-se neste clima, aliás pouco conhecido e ainda não estudado por homens profissionais. Já se faz sentir a necessidade de um estudo a respeito da Feira, onde tardiamente os doentes vem procurar o restabelecimento, um estudo em que se atenda ás suas condições térmicas, hygrometricas, anemológicas, altitude, etc. (citado por SILVA, 2000, p. 133).

Vasos comunicantes, os poemas “Elegia para Manuel Bandeira”, de Eurico Alves, “Escusa”, de Manuel Bandeira, o Hino a Feira de Santana de autoria de Georgina Erismann (“Com o poder do teu clima sagrado” e “Terra moça de sã natureza”) e o artigo “A Feira de Sant’Anna como “Sanatorium” da Tuberculose Pulmonar”, do Dr. Remédios fazem exaltação às belezas naturais, ao clima e à saúde com qualidade de vida de Feira de Santana; são vasos comunicantes da Saúde/Qualidade de Vida, sim. Quem os reler verá.


CONSIDERAÇÕES FINAIS
“O poeta não, sou vaqueiro” Eurico Alves Boaventura sem o saber, e sem o saber das teorias e das políticas contemporâneas da Saúde Pública, foi um importante sanitarista ao profetizar poetizando o conceito de Saúde como Qualidade de Vida. E sem o saber, e sem o saber do urbanismo contemporâneo foi um urbanista apaixonado. E sem o saber, e sem o saber dos ecologistas e ambientalistas contemporâneos foi um teórico e um militante da Ecologista e do Ambientalismo.
Imaginamos que Eurico Alves, aos cem anos de idade, gostaria de se saber possuidor de tantos saberes proféticos, mesmo que na sua Feira de Santana de hoje (2009 seu centenário) muito do que seus versos atestam como Saúde/Qualidade de Vida estivessem (como estão) “soterrados” nos aterros das lagoas e nascentes, no holocausto da feira livre que acaba de completar 32 anos, no asfaltamento, verticalização e crescimento desordenados, na miséria, nas epidemias e endemais sem controle, na violência contra gentes e coisas, no aniquilamento de seu patrimônio material e imaterial e nos diversos tipos de poluição: do ar, sonora, visual ....
Sem saudosismos, “sem mania de passado, sem querer ficar do lado de quem não quer navegar ...” – como nos socorre Paulinho da Viola (“Argumento”, 1975) - vale indagar sobre o que foi feito da/na Rua Barão de Cotegipe?. Imaginamos, ainda, que Eurico gostaria de se saber possuidor de tantos saberes proféticos sim, porque seus versos continuam sendo lições e fontes luxuosas de inspiração de como, por exemplo, o Programa Cidades Saudáveis, (Ministério da Saúde – Brasil) deve sonhar, pensar e fazer, em todo o Brasil, cidades saudáveis
- Teria Eurico buscado no Hino de Georgina Erismann e nos escritos do Dr. Monteiro a inspiração para seus poemas sanitaristas, urbanistas, ecologistas, ambientalistas?
- Há certas perguntas, cuja melhor resposta é não dar resposta. Afinal, aprendemos desde crianças, de nossos pais e de nossos avós, que “as melhores respostas são as que não se dão”.
Mas, não vamos deixar o leitor, a leitora atônito(a) em meio à insensatez e à insalubridade desse insólito diálogo, e posto que, wildeanamente falando, não existe pergunta indiscreta e sim resposta indiscreta. Talvez pudéssemos consolá-lo principalmente se estiver capturado pela avidez de conhecer as origens das coisas, dizendo-lhe que - talvez quem sabe(?) - não bastasse a sua Feira de Santana, Eurico Alves teria buscado inspiração na inutilidade da poesia, ou seja, “na filosofia, na contemplação .das nuvens – e alguma coisa pouca mais.” - como assim bem respondeu Antonio Brasileiro, outro poeta feirense, à pergunta de um jornalista sobre a inutilidade da poesia. (DIAS, 2009)
Feira de Santana tem como orago e padroeira Santana que, segundo a hagiologia católica, mãe de Maria e avó de Jesus Cristo. Daí que, por força dessa mesma hagiologia, Santana é considerada a padroeira das avós. Dia 26 de julho, Dia de Santana é, também, Dia das Avós. Portanto, temos vivido numa cidade tanto protegida quando inspiradora de ancestralidades. Como diziam os romanos de ontem, quod abundant non noscet e os profissionais de Direito de hoje, o que abunda não vicia, apesar de tanta proteção, mesmo assim, sedento da então sorridente Feira de Santana, o juiz e poeta Eurico Alves Boaventura não se satisfez. Beatificou e santificou Feira de Santana através de seus versos. Agindo assim, Eurico acomodou todo um Vaticano em seu espírito. O Vaticano para consagrar/canonizar alguém ser humano como santo, é necessário que o(a) candidato(a) à santidade tenha praticado ou esteja envolvido, comprovadamente, em algum milagre que tenha sido responsabilizado pela cura de alguém; ou que, com o mesmo rigor de comprovação, o(a) aspirante à santidade tenha suportado, graças à fé em Deus e a inúmeros sacrifícios (sacro-ofícios) o sofrimento físico e psíquico que algtuma doença lhe impôs. Desta ou de qualquer outra forma, santidade tema ver com sanidade – não apenas no idoma francês: saúde, sanidade = santé; santidade = santeté.
Sem galicismos e com muitos sertanismos, ao consagrar muitos de seus versos à sanidade, à saúde – diríamos hoje ambiental, qualidade de vida – Eurico Alves canoniza Feira de Santana, cidade já tão abundante da proteção de Santa Ana, em santidade. Vida longa, pois, a Eurico Alves para que ele possa continuar cuidando, zelo, ciúme e cio, de seus descendentes que todos somos.

REFERÊNCIAS
ALVES, Eurico. Poesia. Salvador: Fundação das Artes/Empresa Gráfica da Bahia, 1990, 226p.(Pesquisa de Maria Eugênia Boaventura)
BRASILEIRO, Antonio. Da inutilidade da poesia. Salvador, EDUFBa, 2002.
CARVALHO FILHO, José Luiz de, Notícia sobre Eurico Alves. Poesia/Eurico Alves. Salvador, Fundação das Artes/Empresa Gráfica da Bahia, 1990, 226 p. (Pesquisa de Maria Eugenia Boaventura).
CERTEAU, Michel de. L’invention du quotidien. T I: arts de faire. Paris, Gallimard, 1990a
_____________ . L’invention du quotidien. T II: habiter, cusiner. Paris, Gallimard, 1990b.
DIAS, Marcos. . Poesia de toda forma. Entrevista com Antonio Brasileiro. A Tarde, Salvador, 8 de março de 2009, (Caderno Muito, p. 40))
DO RIO, João. A alma encantada das ruas. Brasília (DF), Ministério da Cultura/Fundação Biblioteca Nacional/Departamento Nacional do Livro.
OLIVIERI, Rita. Para ler Eurico Alves Boaventura. Sitientibus. Feira de Santana, Ba, Universidade Estadual de Feira de Santana, 4(7): 35-47, 1987.
OLIVIERI-GODET, Rita (Org). Eurico Alves: imagens do campo e da cidade. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo. Fundação Cultural, EGBA, 1999, 220 p.
PESSOA, Fernando. O guardador de rebanhos, seguido de O Pastor Amoroso. SãoPaulo, Princípio, 1993.
SILVA, Aldo José Morais. Terra de Sã Natureza – a construção do ideal de cidade saudável em Feira de Santana. 1833-1920. (monografia de Especialização em História da Bahia). Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 1997.
____________. Natureza sã, civilidade e comércio em Feira de Santana: elementos para o estudo da construção de identidade social no interior da Bahia (1833-1927). (dissertação de Mestrado em História), Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2000.
SOARES, Valter Guimarães. Outros sertões: a Bahia de Eurico Alves. Sitientibus. Feira de Santana, Ba, Universidade Estadual de Feira de Santana, /jun. 2001

OBSERVAÇÃO SOBRE O ARTIGO DE EURICO ALVES

Por razões de algum modo alheias ao digitador, ficou a promessa da parte final do artigo para amanhã (sexta). Na verdade, o artigo está postado na íntegra hoje, 25 de fevereiro de 2010.

Obrigado

EURICO ALVES, POETA & PROFETA DO CONCEITO DE CIDADES SAÚDÁVEIS

EURICO ALVES, POETA & PROFETA DO CONCEITO DE CIDADES SAÚDÁVEIS

O conceito e a práticas de políticas públicas do que se habitou chamar CIDADES SAUDÁVEIS descende do conceito da Saúde como Qualidade de Vida. Faz décadas, não se entende mais Saúde como ausência de doença ou completo bem estar físico, psicológico , etc. etc. Tais concepções, hoje fortemente superadas, não se mostraram capazes de dar conta dos aspectos políticos, econômicos e culturais do processo saúde/doença; nem conseguiram lugar nas dimensões socio-econômicas, ambientais, urbanísticas e culturais da doença e do adoecer.
A Saúde como Qualidade de Vida é ‘medida’ através de indicadores quali-quantitativos como por exemplo: educação, renda, violência, ambiente, habitação, criminalidade, saneamento básico (água, esgoto, deposição de lixo ...), arborização, emprego, mobilidade urbana, trânsito, assistência médica, assistência social, lazer, etc. Esses indicadores fornecem elementos para a definição do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) para cidades, regiões, países -
A idéia e o sonho de viver em CIDADES SAUDÁVEIS pode ser encontrado na poesia de Eurico Alves Boaventura, poeta, falecido, que nasceu em Feira de Santana – Bahia – Brasil). Vigorosa expressão do Modernismo, seu centenário de nascimento foi comemorado no ano passado (1909-2009).
Fala melhor que a aligeirada introdução acima, o artigo, a seguir (integrante das comemorações do centenário do poeta feirense), que publicado na revista do Instituto Histórico e Geográfico de Feira de Santana (Feira de Santana, Bahia, ano VI, nº 6 – 2009, pp. 131-150.

Obrigado pela atenção,

Vicente
vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com


#####

EURICO ALVES BOAVENTURA: PROFETA-POETA DO CONCEITO DE SAÚDE COMO QUALIDADE DE VIDA

Autores/Pesquisadores do Núcleo de Antropologia da Saúde (NUAS/UEFS)

Prof. Ms. Vicente Deocleciano Moreira - antropólogo
Profa. Dra. Maria da Luz Silva - enfermeira
Profa. Ms. Edna Lucia do Nascimento Macedo - enfermeira
Profa. Eronize Lima Souza - historiadora


RESUMO

Eurico Alves Boaventura, poeta nascido em Feira de Santana –Bahia, (falecido em 1974) estaria com 100 anos de idade em 2009. Este artigo classifica este poeta como profeta-poeta do conceito de Saúde como Qualidade de Vida porque muito de sua escritura poética, ao enaltecer as belezas naturais, climáticas e ambientais da cidade em que nasceu antevê muitos indicadores qualitativos e qualtitativos do referido conceito no campo da Saúde Pública.
Palavras Chave: Feira de Santana; Poesia; Saúde; Qualidade de Vida; Ecologia
ABSTRACT
Eurico Alves Boaventura, poet born in Feira de Santana, Bahia, (dead in 1974) would be 100 years of age in 2009. This article classifies the poet as prophet-poet of the concept of Health as Quality of Life because of its very poetic writing, to enhance the natural beauty, climate and environment of city in which he was born, because he predict qualitative and quantitative indicators of the concept in the field of Public Health.
Keywords: Feira de Santana, Poetry, Health, Quality of Life, Ecology


Uma lata existe para conter algo,
Mas quando o poeta diz lata
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo,
Mas quando o poeta diz meta
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo-nada cabe,
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta,
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora.
(Gilberto Gil – Metáfora)
INTRODUÇÃO
Eurico Alves Boaventura nasceu em Feira de Santana (Bahia) em 1909. Em 1923, mudou-se para Salador. Na capital baiana fez curso ginasial e, em 1933, se formou em Direito. Ainda estudante, participou do movimento modernista baiano e do grupo que fundou a revista Arco e Flexa. De 1928 a 1929, Eurico Alves Boaventura participou de um grupo de precursores do movimento modernista e publicou, até a década de 60, poemas, contos e crônicas em jornais da Bahia e de alguns outros estados nordestinos. Profundamente inspirado na vivência do sertão baiano, escreveu diversas obras sobre esta região, a exemplo do livro “Fidalgo e Vaqueiros”, além de poesias e contos.. O poeta feirense fez parte de um grupo de intelectuais e artistas defensores de um ideário denominado “tradicionalismo dinâmico”. Foi magistrado e, depois, juiz concursado tendo percorrido, nesta condição, diversos municípios e regiões da Bahia. Aposentou-se e retornou a Feira de Santana em 1965. e faleceu, em Salvador, em 1974..
Carvalho Filho (1990, p. 10) nos oferece um perfil sucinto, mas esclarecedor, do homem Eurico Alves Boaventura e de seu tempo:

Quando, pelos seus próprios passos, ele surgiu entre nós, vindo da então romântica Feira de Santana, terra sempre presente ao seu espírito e ao seu sangue, para o curso superior de Direito, foi logo notado pela agitação dos gestos, pelo comportamento inquieto, pela excitação do diálogo, pela estridência da voz mas, sobretudo, pela efervescência das idéias, às vezes delirantes, denunciando o prenúncio de uma certa resistência,mais intuitiva do qe racional, contra a atmosfera literária que se estendia por todo o país. Estávamos vivendo as primeiras luzes da década de trinta era evidente a inconformação generalizada que preocupava o espírito da juventude,emsua insatisfação mental e em sua curiosidade cultural, nos planos da política, cujos líderes eram homens respeitáveis, da ciência, das artes plásticas e da liteatura. Entre nós, aqui na Bahia, as nuvens eram espessas. As nossas letras literárias encontravam-se esgotadas.

Vinculado à Área de Conhecimentode Antropologia do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, o Núcleo de Antropologia da Saúde (NUAS) desde a sua criação oficial (1999) sempre abrigou e fez avançar discussões em torno dos conceitos de Saúde. Isto porque há dez anos, pesquisadores, alunos e bolsistas de diversos campos de conhecimento consideramos a assumção e a orientação de um conceito de Saúde como fator decisivo para as políticas públicas, gestões de cidadania e ações práticas em Saúde. Daí que por consideramos Saúde como ausência de doença e mesmo o conceito clássico da Organização Mundial de Saúde (OMS) – sáude éocompleto bvem estar físico, psicológico, social ... “
O fato é que, desde sempre, defendemos o conceito de Saúde como Qualidade de Vida como o mais apropriado para a realidade socio-econômica do Brasil e, pelo menos, vários outros países da América Latina, África. Enquanto o conceito de Saúde como ausência de doença se prendia e se reduz às dimensões biologicistas do processo Saúde/Doença, e o da OMS é idealista (“completo (?) bem estar ...”) está sintonizado com o irealizável, a concepção Saúde/Qualidade de Vida incorpora elementos políticos, ambientais e dá ênfase aos aspectos socio-econômicos e culturais da produção da doença no próprio processo Saúde/Doença. Não apenas isso; o conceito que defendemos é mensurável por diversos indicadores qualitativos e quantitativos: renda, habitação, educação/instrução, lazer, saneamento básico, assitência médica, prevenção e promoção da saúde, dieta equilibrada, estados psicológicos positivos, alegria de viver, alegria no que faz e no que trabalha, bom relacionamento e afetividade com familiares, vizinhos, amigos, e, na rua ou na cidade em que se mora e trabalha, arborização, espaços verdes, vida simples e sem muito estresse, conforto ambiental (incluindo o visual, o sonoro, redução da poluição sonora ...), qualidade do ar e dos recursos ambientais em geral, segurança pública etc, etc.
Na radicalidade, vale dizer, no ir à raiz do conceito de Saúde/Qualidade de Vida, mesmo que os exames laboratoriais (sangue, fezes, urina, biópsias, etc), poligráficos (ultrassonografias, eletrocardiograma, etc.) dentre outros tipos de exames médicos, de uma pessoa apresente resultados morbo-negativados – isto é, não indicativos de doenças – ainda assim istonão garante que essa pessoa tenha saúde se, no seu cotidiano, ela enfrenta condições insatisfatórias, insalubres e arriscadas relativas aos índicadores de Saúde/Qualidade de Vida mencionados no parágrafo anterior. Porém, se os resultados do exame médico de alguém apontar para alguma situação morbo-positivada (indicativo positivo de alguma doença),mas se ela viver sob condições aomenos razoáveis de indicadores de Saúde/Qualidade de Vida ela seráconsiderada uma pessoa saudável
A passagem da concepção de Saúde como Qualidade de Vida para a poesia de Eurico Alves Boaventura, e para dela partir, transitou por três atalhos: o Hino a Feira de Santana (letra e música de Georgina Erismann, 1928) a monografia “Terra de Sã Natureza – a construção do ideal de cidade saudável em Feira de Santana. 1833-1920” e a dissertação de Mestrado “Natureza sã, civilidade e comércio em Feira de Santana: elementos para o estudo da construção de identidade social no interior da Bahia (1833-1927)” - ambas do historiador Aldo José Morais Silva (SILVA, 1997, SILVA, 2000). Eurico, nome de origem hebraica, significa responsável pela descendência. Dito e feito: sua filha Maria Eugênia Boaventura, professora da Universidade de Campinas (Unicamp), São Paulo, organizou texto, pesquisa, seleção e notas, dando origem à obra Poesia (ALVES, 1990) nossa fonte de pesquisa sobre a produção poética de Eurico Alves.
EURICO ALVES E MANUEL BANDEIRA
A exemplo de todos quanto se envolvem, intelectual, afetiva e emocionalmente, com a poesia de Eurico, adotaremos também o costume de fazer referência primeira aos poemas epistolares de/entre Eurico (“Elegia para Manuel Bandeira”) e Manoel Bandeira (“Escusa”). E, no caso particular do nosso artigo, esta prioridade não é somente uma força de hábito; é um imperativo.
Eurico:
ELEGIA PARA MANUEL BANDEIRA

Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta ...

Serra de São José das Itapororocas,
Afogada nocéu, quando a noite se despe
E crucificada ao sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens
tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdí completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.

Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.

Manuel Bandeira, a subida da serra é um plágio da vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados

tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro.
Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chãopequeno para a galopada.

Aqui come-se carne cheia de sangue,cheirando a sol.

Que poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.

Feira de Santana! Alegria!
***
Alegria nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina das vaquejadas, que levam para a vida
e arrastam também para a morte!

Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!

Que lindo poema cor de mel esta alvorada!

A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.

Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana
e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados das noites eternas
venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e o tabaréu até se parece com Nosso Senhor.

A beleza deste tão reverenciado poema, urbe et orbe, impõe que ele seja citado na íntegra. Noblesse Oblige. O poeta feirense o leu para o poeta José Luiz de Carvalho Filho que lhe disse: “Uma das melhores coisas que você já fez”. Eurico: “Não creio. Palavras ocas, ouvidos moucos.”.Carvalho Pinto arrebatou-lhe a cópia do poema das mãs e a enviou a Manuel Bandeira, no Rio de Janeiro. Eurico não gostou muito da atitude do amigo e asseverou: “Podia parecer cabotinismo” (carta de Eurico a Aline Olivais, datada possivelmente de 1931, em Alves, 1990, p. 65).

A resposta de Manuel Bandeira:
ESCUSA
Eurico Alves, poeta baiano
Salpícado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito,
Sinto muito,mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.

Sou poeta da cidade.
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar
o gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores
das madrugadas.
Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar purodoscurrais da roça.

O poema de Eurico transpira saúde/indicadores de qualidade de vida superiores àqueles denunciados pelo texto de Manuel Bandeira. No Rio de Janeiro, cinéfilos lotavam e poluiam o interior abafado das quatro paredes dos cinemas (sem a circulação de ar e o conforto térmico de hoje evidentemente) com a exalação de gás carbônico proveniente da expiração. Em Feira de Santana, o ar puro de uma serra sem paredes e de um céu sem limites. No Rio já nas primeiras décadas do século passado, a crítica de Bandeira aos alimentos industrializados (“Bebo leite de lata”), às condições desconfortáveis do viver urbano carioca de então (“Como o pão que o diabo amassou”) e ao sedentarismo (“Há anos que não vejo romper o sol, que nãolavo os olhos nas cores da madrugada”). Por contraste, na Feira de Santana de inícios do século XX o ar puro, a simplicidade do estilo de vida urbana – ainda salpicado de ruralidades.
Na linguagem escrita (poemas, cartas, na Web, e mail ...), na instância virtual ou na oralidade a céu aberto, o diálogo entre duas pessoas parece estar marcado pela lógica matemática da teoria dos conjuntos. Por ser in-divíduo (não divisível, portanto), cada pessoa significa um conjunto diferente do outro. Mas quando os dois conjuntos estão interagindo se delineia um espaço de intersecção que é exatamente onde estão os elementos comuns aos dois diferentes conjuntos em meio aos seus exclusivos elementos. Assim, o não dito de Eurico está no dito de Bandeira – nos dizeres específicos de cada poeta – e vice-versa. Oscar Wilde tem razão: “Não existem perguntas indiscretas, existem respostas indiscretas”. Por outro lado, oculto sob a sombra da solaridade do explícito e do explicitado, o não dito de Eurico sobre o Rio de Janeiro está presente no dito de Bandeira sobre esta cidade. O não dito de Bandeira sobre Feira de Santana está presente no dito de Eurico sobre Feira.
Não há resposta descompromissada com a pergunta, nem pergunta descompromissada com a resposta; mesmo quando existe silêncio numa parte ou mesmo nas duas das partes do evento dialógico. Quem reler verá.
(Na postagem de amanhã, sexta, a parte final deste artigo)
OUTRAS PALAVRAS E OUTROS EURICOS
Via de regra, hinos de países e de muitas cidades, em todo o Mundo, têm conotações marciais.Exibem imodestas autorreferências de energia, força, coragem, disposição viril para a luta, para a guerra enfim: “Verás que um filho teu não foge à luta” (Hino Nacional do Brasil).. “Aux armes citoyens / Formez vos bataillons” (“La Marseillaise” – Hino Nacional da França) O hino da cidade/município de Feira de Santana é uma das exceções.
Salve ó terra formosa e bendita
Paraíso com o nome de Feira
Toda cheia de graça infinita
És do norte a princesa altaneira
Bem nascida entre verdes colinas
Sob o encanto de um céu azulado
Ao estranho tu sempre dominas
Com o poder do teu clima sagrado
Sorridente como uma criança
Descuidosa da sua beleza
Do futuro és a linda esperança
Terra moça de sã natureza
Poetisa do branco luar
Pelas noites vazias de agosto
Fiandeira que vive a fiar
A toalha de luz de sol posto
De Santana és a filha querida
Noite e dia por ela velada
E o teu povo tão cheio de vida
Só trabalha por ver-te elevada
Este hino (letra e música) foi composto, em 1928, pela feirense Georgina de Mello Lima Erismann (27/01/1893 – 23/02/1940), musicista que dava aulas de de piano na Rua Conselheiro Franco – na época Rua Direita, ou melhor, Rua Direta. Direta pois ligava diretamente a Praça da Matriz à Praça Bernardino Bahia, as duas mais frequentadas praças e respectivos coretos.. Era o que chamamos hoje de “corredor cultural” de Feira de Santana, onde aconteciam espetáculos teatrais e musicais, desfiles carnavalescos depois micaretescos, de filarmônicas e de festas religiosas católicas (sermões, procissões, atos da Semana Santa).
A exemplo de “Elegia para Manuel Bandeira”, o hino faz a exaltação às belezas naturais e ao clima de Feira de Santana. Dele, podemos destacar dois versos: Com o poder do teu clima sagrado e Terra moça de sã natureza pela referência ao clima e à natureza saudável que emoldura a cidade. A altitude de Feira de Santana e a crença em sua “sã natureza” colocaram Feira de Santana até as primeiras décadas do século XX numa posição privilegiada econcorrida para todos quantos necessitavam de ar puro, de regiões elevadas e de "bons miasmas" para curar seus males de saúde – conforme a teoria epimediológica então hegemônica.: o médico Joaquim Remédios e o poeta Castro alves




REFERÊNCIAS
ALVES, Eurico. Poesia. Salvador: Fundação das Artes/Empresa Gráfica da Bahia, 1990, 226p.(Pesquisa de Maria Eugênia Boaventura)
CARVALHO FILHO, José Luiz de, Notícia sobre Eurico Alves. Poesia/Eurico Alves. Salvador, Fundação das Artes/Empresa Gráfica da Bahia, 1990, 226 p. (Pesquisa de Maria Eugenia Boaventura).
DÓREA, Juraci. Eurico Alves e a Feira de Santana. In: OLIVIERI-GODET, Rita (Org). Eurico Alves: imagens do campo e da cidade. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo.Funbdação Cultural, EGBA, 1999, p. 71-80.
OLIVIERI, Rita. Para ler Eurico Alves Boaventura. Sitientibus. Feira de Santana, Ba, Universidade Estadual de Feira de Santana, 4(7): 35-47, 1987.
SILVA, Aldo José Morais. Terra de Sã Natureza – a construção do ideal de cidade saudável em Feira de Santana. 1833-1920. (monografia de Especialização em História da Bahia). Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 1997.
SILVA, Aldo José Morais. Natureza sã, civilidade e comércio em Feira de Santana: elementos para o estudo da construção de identidade social no interior da Bahia (1833-1927). (dissertação de Mestrado em História), Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2000.
SOARES, Valter Guimarães. Outros sertões: a Bahia de Eurico Alves. Sitientibus. Feira de Santana, Ba, Universidade Estadual de Feira de Santana, /jun. 2001