sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

LILITH, PRIMEIRA MULHER DE ADÃO, FILHA DA ALMA DAS CIDADES

A cidade é mulher. Já o dissemos antes. Como as cidades, sobre as mulheres quanto mais se fala menos nos aproximamos da felicidade de pentrar em seu mistério, no insondável do feminino.

Uma vez, 1932, Sigmund Freud estava fazendo uma palestra quando alguém da platéia pediu: "Dr. Freud, fale-nos sobre as nulheres, por favor". Freud responder: "Sobre as mulheres perguntem aos poetas"

Diríamos: sobre as cidades, perguntem aos poetas; nada original eu sei - porém nada mais verdadeiro. Cito - de memória - Maiakovisk, endereçando seu coração à sua amada Tatiana:

"Na estatura/
Só tu me ombreias/
Fica, pois, sombranceira a sombranceira ao meu lado/
De qualquer modo tomar-te-ei, um dia/
Sozinha ou com toda a cidade de Paris".


A cidade, inquieta e inquietante que é, produz novos e inquietantes valores. Incômodos tanto quanto os valores disseminados por Lilith, a primeira mulher de Adão ... cassada da versão da Bíblia - que nos tem sido dado a conhecer - pelas mãos peludas dos homens masculinos.

Lilith desestrutura ... põe o mundo organizado e comodista "de ponta cabeça" ... a cidade desestrutura. Vamos a Lilith ... de corpo, alma (e olhos) bem abertos:

LILITH, A PRIMEIRA MULHER DE ADÃO: “POR QUE DEVO DEITAR-ME EMBAIXO DE TÍ? POR QUE DEVO ABRIR-ME SOB TEU CORPO?”: MEMÓRIA E CONTEMPORANEIDADE DE UM MULHER INSUBMISSA

Vicente Deocleciano Moreira

A D’us, Shalom - שלום - Graça e Paz. Para Claude Lévi-Satrauss (1908 – 2009), In Memoriam
Dobro os joelhos
Quando você, me pega
Me amassa, me quebra
Me usa demais...

Perco as rédeas
Quando você
Demora, devora, implora
E sempre por mais...

Eu sou navalha
Cortando na carne
Eu sou a boca
Que a língua invade
Sou o desejo
Maldito e bendito
Profano e covarde...

Desfaça assim de mim
Que eu gosto e desgosto
Me dobro, nem lhe cobro
Rapaz!
Ordene, não peça
Muito me interessa
A sua potência
Seu calibre, seu gás...
Sou o encaixe
O lacre violafdo
E tantas pernas
Por todos os lados
Eu sou o preço
Cobrado e bem pago
Eu sou
Um pecado capital...

Eu quero é derrapar
Nas curvas do seu corpo
Surpreender seus movimentos
Virar o jogo
Quero beber, o que dele
Escorre pela pele
E nunca mais esfriar
Minha febre...

(Izabella Taviani – “Luxúria”)


RESUMO
Lilith foi criada, por Deus, como a primeira esposa humana de Adão, mas foi excluída do Gênesis pelos homens depois de ter sofrido o castigo divinopor causa de seu questionamento a Adão e às regras sexuais vigentes: “Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?. Lilith, foi excluída da Bíblia porque ameaçava os tnteresses masculinos de dominação no sexo e na sociedade em geral. Lilith simboliza o desejo de reconhecimento da sexualidade feminina e da livre gestão erótica do clitóris. Ontem e hoje, aqui e ali, Lilith provoca medo e reações masculinas que vão desde a infibulação e a extirpação do clitóris até práticas contemporâneas mais sutis e menos sutis de repressão à sexualidade feminina inclusive em universidades
Palavras Chave – Lilith, Sexualidade Feminina, Mutilação, Excisão do clitóris, Repressão Sexual
ABSTRACT

Lilith was created by God, as the first human wife of Adam, but was excluded from the Genesis of men after suffering the punishment divinopor because of his questioning of Adam and sexual rules in force: "Why should I lie down beneath ti? Why should I open myself in your body?. Lilith, was excluded from the Bible because it threatened the tnteresses male dominance in sex and society in general. Lilith symbolizes the desire for recognition of female sexuality and the erotic free exercise of the clitoris. Yesterday and today, here and there, Lilith causes fear and reactions ranging from male infibulations and excision of the clitoris to contemporary practices more subtle and less subtl e repression of female seuality in universities inclusive.
Keywords - Lilith, Female Sexuality, mutilation, excision of the clitoris, Sexual Repression

INTRODUÇÃO
Qual a contemporaneidade da insubmissão feminina de Lilith, a primeira mulher humana de Adão? Por que os homens, as mulheres e a sociedade em geral têm medo de Lilith? Por que os homens, as mulheres e a sociedade em geral, ontem e hoje, aqui, ali e acolá, são tão capturados por esse medo que tentam – nos templos e nos textos laicos e religiosos - esconder Lilith, sufocar-lhe o grito de libertação e amputar-lhe o dedo que aponta para o futuro? Em que, por que, para que, como e onde Lilith ameaça a “supremacia” masculina e o status quo da sociedade contemporânea, sua ordem nacional/internacional e seus quadrantes axiológicos? Lilith - a primeira heroína bíblica, da tradição da sabedoria rabínica definida na primeira mulher/companheira humana de Adão.
Eva, a segunda heroína dessa influente tradição, foi a segunda companheira humana do primeiro herói (ou antiheroi?) bíblico.
No imaginário, Eva está sempre ao lado do bíblico companheiro, Eva, a segunda mulher de Adão, é mais conhecida e mais citada que Lilith; graças aos interesses e aos medos masculinos ancestrais que – num alto/baixo calão bem brasileiro - “cassaram” Lilith, que a excluíram da versão corrente do livro Genesis da Bíblia.
Teria Lilith sido extraditada para utopos? Teria sido removida, consciente ou inconscientemente, no momento em que ocorreu a transposição da versão jeovítica para a sacerdotal antecessora, que foi, das modificações operadas pelos Pais da Igreja? Ou essa exclusão de Lilith, enquanto myhtos, teria ido responsabilidade da interferência do logos cristão/católico e seu ceticismo racional (as Sagradas Escrituras dos cristãos) sobre o texto cristalino da Torah assírio-babilônica e hebraica?
Entre os labirintos do não dito e do que não pode ser revelado, eis que Lilith vive. Resta-nos o reconhecimento das sensibilidades etnográfica e hermenêutica, dos testemunhos de fé,e da iluminação pelo carisma dos Rabis – testemunhos abrigados na Torah (o Ensinamento) e nos Midrash (a Procura) presentes na Misnach (acervo de Códigos)
Companheiro(a)s, desde outrora, significa(m) aquele(a)s que come(m) – come + moram - junto(a)s o mesmo pão: com + panheiro. Não há come + moração sem comida (bebida) sem a liturgia do comer e do beber ... juntos e unidos pelo mesmo pão: a festa dos pães ázimos (Chag haMatzot) que vem depois da Pessach dos judeus em 14 de Nissan; a reifeição que assinala o fim do mês de Ramadan entre os muçulmanos; os pães e o vinho na festa das bodas com a presença de Jesus Cristo, na Bílblia cristã).
O pão, evidentemente, também pode ser simbólico, metafórico. Assim, perguntamos: que pão comum uniu Adão e Lilith e, depois, Adão e Eva? O pão primeiro da solidão humana primitiva de Adão; e, depois do pecado da desobediência a Deus, o pão da angústia da finitude (morte) de Adão como problemas. E, ab origine, a solução adotada por Deus, isto é, a impossibilidade do amor. Deus se antecipa ao “Não há relação sexual” de Jacques Lacan. Antecipa-se ao “No coração de quem ama fica faltando um pedaço” do compositor e cantor Djavan.
“Não há relação sexual”, assegura Lacan. Vale dizer, pode até acontecerem relações sexuais – mas não relação sexual porque – na cópula sexual - um(a) companheiro(a) não completa o(a) outro(a) ... há sempre uma falta, uma incompletude, uma satisfação não plenamente satisfeita por melhor que tenha sido o ato sexual. entre os pares. Daí que “omina animal trist post coitum” (todo animal fica triste após o coito sexual). A “tristeza” da incompletude.
E assim, quando mais tarde me procure/
Quem sabe a morte, angústia de quem vive/
Quem sabe a solidão, fim de quem ama/
Eu possa me dizer do amor (que tive):/
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
(Vinicius de Moraes – “Soneto da fidelidade”)

Deus fez Adão, quer dizer, o primeiro humano masculino à sua imagem e semelhança, e o fez macho e fêmea. “Filho de peixe peixinho é”, Adão andrógino que era, descendia do Deus/Pai também andrógino. Vamos usufruir do O Banquete, uma conhecida obra de Platão. Neste evento, entre comidas e bebidas filósofos estavam competindo pela apresentação da melhor tese sobre o amor. Venceu Aristófanes com a seguinte tese: havia um deus tão perfeito que era, num só corpo, masculino e feminino. Tal androginia não era apenas psíquica, era também somática.
Esse deus decidiu construir uma criatura humana à sua imagem e semelhança e, por conseguinte, também andrógino, também perfeito a ponto de a genitália masculina copular com a feminina num mesmo corpo. Depois, movido pelo ciúme e pela ira, esse deus separa as duas metades afastando-a bem longe uma da outra; desesperadas cada uma delas passa a copular com o chão e, a seguir, cada uma das partes começou a correr na busca da outra para voltarem a ser um mesmo corpo – porém jamais se encontrariam, jamais voltariam a se completar.
Aristófanes concluíra, então, pela impossibilidade do amor. Cada homem ou mulher ama a si mesma no seu companheiro, na sua companheira. A frase verdadeira é “Eu me amo em você” e não a falsa, conveniente e apaziguadora “Eu te amo”.
Andrógino, o primeiro homem estava só. Deus avaliou: “Não é bom que o homem esteja só”. O escritor (ou escritores?) desse momento bíblico estava, como um bom cronista, atento à realidade à sua volta. Isto porque, nas sociedades (camponesas por excelência) dessa época, homens (em maior escala que mulheres) mantinham relações sexuais com animais (o que depois passou a ser conhecido e patologizado como ‘zoofilia’, ‘bestialidade’ ...), reeditando e atualizando uma prática sexual muito comum entre os homens recém evoluídos do ancestral que, na frieza do clima e na carência de mulheres, faziam sexo com quadrúpedes disponíveis. Ainda hoje (2009 d.C), manter relações sexuais com quadrúpedes é comum em áreas rurais.
Vamos ao Genesis, primeiro livro da Bíblia judaica., ( II, 20): “Assim, o homem conferiu nomes a todos os animais, a todos os voláteis do céu e a todos os animais selvagens. Mas para o homem não achou ajudante que fosse semelhante a ele.”
Adão estava só e carente. Paternalmente, Deus permite que seu filho tenha relações sexuais com animais; e isto fica bastante claro na sutileza do texto que informa que o primeiro homem dá nome aos animais. Ora, dar nome (e conhecer), nesse espaço/tempo era – diríamos hoje (2009 d.C) - um eufemismo para afirmar a existência de relações sexuais. Dar nome e conhecer significam - ontem e hoje (2009) - uma mesma coisa: manter relações sexuais.
Em nossas sociedades contemporâneas, urbanas, modernas, internetizadas ... a mulher, ao casar com um homem, herda-lhe o sobrenome alterando, assim, a integridade de seu nome de solteira. Essa herança, esse novo sobrenome, significa o seguinte: o que deu o sobrenome e aquela que o recebeu mantêm relações sexuais legitimadas, legalizadas e sacralizadas. Isto dispensa e evita qualquer pergunta indiscreta vindo de quem quer que seja. “Quem dá o nome é porque come” – escancara o dito popular.
Quando o casal se separa, a maioria das mulheres exclui, formal e legalmente, o sobrenome do ex-marido, resgatando a integridade do nome de solteira. Afinal, supõe-se que ela não mais faz sexo com aquele homem. Há mulheres porém que, por várias razões, conservam o sobrenome do marido mesmo depois da separação, do divórcio – o que cria um certo mal estar pois ela já não mais faz amor com o ex-marido mas, simbolicamente, continua fazendo amor com ele.
(AMANHÃ, 27 de fevereiro, A SEGUNDA PARTE DO ARTIGO)

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