domingo, 28 de fevereiro de 2010

LILITH ... (FINAL)

QUEM TEM MEDO DE LILITH?

Ter medo de Lilith é, sobretudo e antes de tudo, ter medo do clitóris de Lilith. Sim, do clitóris esse componente anatômico de importância decisiva para o prazer, para o orgasmo feminino. Um prazer e um orgasmo que – juntamente com a própria mulher toda ela – faz enigma para os homens, para as demais mulheres e para o mundo. Temido e perseguido, em suas dimensões sobretudo físico-anatômico-fisiológicas e simbólico-imaginárias - em diversos tempos, templos e culturas – o clitóris é o lugar príncipe da masturbação feminina. Vamos, mais uma vez, à contribuição do Malleus Maleficarum (o Martelo das Feiticeiras): Tais mulheres saciam os seus desejos obscenos não apenas consigo mesmas mas com aqueles que se acham no vigor da idade, de qualquer classe ou condição; causando-lhes, através de bruxaria de toda espécie, a morte da alma, pelo fascínio desmedido do amor carnal, de uma tal forma a não haver persuasão ou vergonha que os faça abster-se de tais atos. (KRAMER e SPRENGER, 1991, p. 122)

O ato de saciar os desejos “obscenos’ consigo mesma, ao se masturbar sozinha através da fricção (com o dedo, a mão ou algum objeto) sobre o clitóris pode representar, para muitos homens, uma provocação, um atestado de que elas não precisam deles ... tanto que eles estão excluídos daqueles instantes de prazer. Mas não só isso: o clitóris friccionado .e tudo quanto deriva desse ato - quando solitário – é, também, o empoderamento da mulher sobre seu próprio corpo; dispensa-se o poder masculino. O contemplar uma mulher se masturbando dessa forma na sua frente marca, na psique masculina, um turbilhão de sentimentos: um não-saber-o-que-fazer, sentimentos de impotência, exclusão erótica; e, também, perplexidade, mil interrogações mudas no momento em que ela é dominada pelo orgasmo, pelo gozo sexual que, por ser não-fálico (ou seja, impossível de ser dito, traduzido, relatado ...), deixa-o acorrentado na muralha da sua própria castração masculina.
O Martelo das Feiticeiras não é um tratado apenas sobre a masturbação feminina., sobre Lilith, bruxas, íncubos, súcubos e outros demônios poderosos ... todos poderosos com a permissão de Deus – graças a Deus! - para serem assim tão fortes e sedentos de pactos com as fraquezas do ser humano. Amém. No entanto, todo o texto dos inquisidores trai a perplexidade, as mil interrogações mudas, a prisão na muralha da castração (masculina) dos autores. Ao discurso que atua na condenação estão colados: o discurso do prazer em narrar o “ato indecente”, a “luxúria” e o discurso do voyeur que olha (sem ser olhado) a cena do sexo ou da mulher nua; a mão masculina que tenta acompanhar, com sua própria masturbação, a autônomia da masturbação clitoriana. E ele se irrita por não estar dando “as cartas”, por estar excluído desse modus operandi do orgasmo feminino.
Os inquisidores Kramer e Sprenger estão capturados um certo gozo sexual masculino mas não necessariamente ejaculatório. Estão presos a um gozo discursivo (fálico) sobre o gozo não-fálico da mulher, do ser feminino ... Feminino significa, literalmente minos fé, menos fé, fé de menos, ser de pouca fé ou menos merecedor de fé; evidentemente que esta é uma construção masculina acerca do feminino; o fato é que: “quem não sabe rezar xinga Deus”
O que quer uma mulher? – também os inquisidores – e por que não? - fazem esta pergunta. Caetano Veloso tem razão: “cada um sabe a dor e delícia de ser o que é”. A dor e delícia – ‘dor-delícia’ - é o próprio gozo na perspectiva psicanalítica freudiana-lacaniana.

INFIBULAR, EXTIRPAR O CLITÓRIS – ESTA É A ORDEM!
Lilith, seu ser insubmisso e particularmente seu clitóris provocam ainda (e desde sempre) reações de medo que não partem somente dos homens, mas também das mulheres e das sociedades e culturas. Porém, estas amedrontadas reações não têm se limitado aos discursos e ao plano simbólico. Existem homens e países (principalmente da África saariana, parte da Ásia e do Oriente Médio) que utilizam inúmeras justificativas sagradas e profanas para esconder, conscientemente, seus medos de Lilith e, então, partir para a infibulação e a excisão do clitóris de mulheres jovens não chegaram sequer à adolescência.
Infibular consiste em ‘costurar’ sem qualquer recurso anestésico os pequenos e mesmo os grandes lábios da genitália como recurso de garantir uma segunda pureza, virgindade, da mulher (a primeira é o hímen preservado) para aplacar e “apagar”-lhe a sexualidade. Deixa-se um pequeno orifício para o fluxo do sangue menstrual. Porém se este orifício for muito pequeno e ‘desconfortável ‘ à penetração do pênis do marido, este pode ampliar o tamanho fazendo uso de uma faca de ponta. Pais e mães exibem, com orgulho e cobiça financeira, as marcas da infibulação das filhas. Noivas que sofreram infibulação e excisão do clitória têm preços elevados no mercado de dotes daqueles países que avaliam tais práticas como patrimônios culturais e fazem uso da religião muçulmana para justifica-las perante Alá, a sociedade e o mundo. Por ocasião do parto, elas são desinfibuladas – mas, depois, são reinfibuladas não raras vezes a pedido insistente das mesmas. A infibulação chamada “faraônica” pode destruir a vulva, deixando no lugar desta uma cicatriz.
A excisão (extirpação) do clitóris é praticada geralmente por homens (há casos raros de mulheres praticantes). Pais (e mesmo mães) levam filhas pre-adolescentes e, ato contínuo, prendem por trás as pernas abertas da menina expondo-lhe a genitália a homens que utilizam instrumentos perfuro-cortantes como lâminas de barbear, navalhas, tesoura, lâminas flexíveis ... e espinhos de acácia para fazer a sutura. Também na excisão não se faz uso de anestesia – embora seja freqüente o emprego álcool e de urtiga (cansanção) para que uma dor maior (provocada pelo álcool ou pela urtiga) suporte a “menor” , o corte do clitóris. A excisão pode ser complementada pela infibulação dos pequenos lábios ou de toda a genitália.
Há mulheres, inclusive com formação universitária, que defendem estas práticas, têm orgulho de serem infibuladas ou excisadas. E acusam de racismo e de preconceito ocidental contra as mulheres qualquer crítica estrangeira a estes recursos de repressão física à sexualidade feminina.
“PU-TA!” , “PU-TA!”, “VAMOS ESTUPRAR!” ... : ESTA É A ORDEM!
"CA-LOU-RA"!, "CA-LOU-RA!", "VAMOS JOGAR ÁCIDO NA CARA DELA!" ... : ESTA É A ORDEM!
Estupradores e veterano(a) têm medo de Lilith.
O arquétipo de mulher insubmissa que Lilith encarna sobreviveu em São Paulo, Brasil, na última semana de outubro de 2009 d.C, na estudante Geisy Arruda da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban) – “quarta maior universidade do Brasil em matrículas, está em 159º lugar entre 175 avaliadas” (CASTRO, 2009). Geisy não estava se masturbando nem praticava nenhum “ato carnal” à luz das convenções ou na contra luz das convenções, não questionava os homens com a pergunta: “Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?”. Naquela última semana de outubro, em que o mundo perdera Lévi-Strauss, Geisy irritou os 700 estudantes universitários masculinos na genitália e na ideologia machista, da Uniban, porque usava um vestido curto nas salas e corredores da instituição de educação. Na avaliação de Suplicy (2009, p. A3),
Não. Não foi a impropriedade da roupa, mas o desejo, o medo e a raiva que a roupa despertou – igualmente, mas por motivos diferentes – em homens e mulheres. A inveja e o reprimido provocaram a mesma reação.

Contra Geisy, tais homens não julgaram, não praticaram condenação inquisitorial, não a infibularam ou extirparam o clitóris da jovem. Contra a vontade dela, xingaram-na - “pu-ta!”, ”pu-ta!” (BARROS E SILVA, 2009, p. A2), tocaram e machucaram, filmaram e fotografaram seu corpo.; Desesperada, Geisy se trancou na sala de aula e a turba – recém saída das trevas do século 16 – chutava a maçaneta da porta, pressionava porta e janelas e pedia a professores e funcionários, além de alguns poucos colegas, que a protegiam (até a chegada da Polícia que a escoltou até fora da universidade). Pênis talvez em riste, a turba pedia que seus providenciais protetores a entregasse pois queriam, explicitamente, estuprá-la: “vamos estuprar!”, “solta ela, professor!” (BARROS E SILVA, 2009, p. A2).
Para Calligaris (2009, p. E11),
O estupro (e o trote universitário que é sinônimo do trote da pior barbárie, contra calouras e calouros .. de cursos de Medicina e outros) é, para essas turbas, o grande remédio: punitivo e corretivo. Como assim? Simples: uma mulher se aventura a desejar? Ela tem a imprudência de “querer”? Ela ousa aventurar ser estudante de Medicina (ou de outro curso universitário), ela nos desafia , debaixo de nossos bigodes, mostrando desejo e querer? Pois vamos lhe lembrar que sexo, para ela, deve permanecer um sofrimento imposto, uma violência sofrida – nunca uma iniciativa ou um prazer. Pois vamos mostrar para ela quantos testículos mandam na universidade ...

A violência e o desprezo aplicados coletivamente pelo grupo só servem para esconder a insuficiência de cada um, se ele tivesse que responder ao desejo e às expectativas de uma parceira, em vez de lhe impor uma transa forçada.

A direção da universidade – após sindicância - resolve expulsar a aluna – fazendo lembrar a expulsão de Lilith, por Deus, para o Mar Vermelho a fim de que ela fosse conviver com os demônios que por lá viviam. Conclusão do processo inquisitorial, século XXI da era cristã:
“Foi constatado que a atitude provocativa da aluna buscou chamar a atenção para si por conta de gestos e modos de se expressar, o que resultou numa reação coletiva em defesa do ambiente escolar”. Geisy, diz a nota, ensejou “de forma explícita os apelos dos alunos” (BARROS E SILVA, 2009, p. A2).

Para a Uniban, então, a aluna teria provocado “de forma explícita os apelos dos alunos”. Lilith e seus detratores sobrevivem. Pressionada pela expectativa de prejuízo financeiro graças à possível redução do número de matrículas em 2010, pelo Ministério da Educação, a Ordem dos Advogados do Brasil, a União Nacional dos Estudantes, o Ministério Público, a imprensa e a opinião pública, a direção da Uniban marca entrevista coletiva onde revoga a expulsão. Agora, a promessa de que a aluna circulará por outro espaço distante do palco da tragicomédia anterior. Anterior sim, porque a segunda tragicomédia é enquistar a vítima, quase um cárcere privado. Os torquemadas e outros inquisidores continuarão a circular, livremente. Como se nada tivesse acontecido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?”. Enganou-se quem pensou que estas perguntas feitas a Adão por Lilith, sua primeira companheira humana, ficariam cada vez mais esmaecidas de tão distantes quanto desbotadas no tempo e no espaço – com o passar dos séculos e as transformações das sociedades e, principalmente, dos seus representantes masculinos. Um engano, certamente, de forte aroma iluminista.
Mais que uma memória mitológica, arquetípica, Lilith vive hoje porque insistem em sobreviver as formas mais antigas de violência contra a mulher e as “subsombras desumanas dos linchadores” (Caetano Veloso) tendem a sofisticar mais e mais suas fogueiras e seus baús de perversões e deles retirar armas que julgávamos enferrujadas e imprestáveis ao uso.
Não é nada confortável que, depois do itinerário crítico que fizemos pelos olhares e ações que as civilizações judaicas, cristãs e muçulmanas dirigiram contra Lilith, tenhamos agora que juntar nossas desculpas às desculpas de Calligaris:

Agora, devo umas desculpas a todas as mulheres que militam ou militaram no feminismo. Ainda recentemente, pensei (e disse, numa entrevista) que, ao meu ver, o feminismo tinha chegado ao fim de sua tarefa histórica. Em particular, eu acreditava que, depois de 40 anos de luta feminista, ao menos um objetivo tivesse sido atingido: o reconhecimento pelos homens de que as mulheres (também) desejam. Pois é, os fatos provam que eu estava errado. (CALLIGARIS, 2009, p. E11)

Mas nossa força e nossa vontade de lutar pelo direito às diversidades, e de suportar todas as adversidades, continuam vivas tanto quanto Lilith e Levi-Staruss continuam vivos – não importando as lógicas e as mitológicas que nos ajudam a acreditar nessas sobrevidas. E a acreditar que, como Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, continuaremos construindo o caminho mesmo que não cheguemos a Córdoba. A foto – a seguir - e já referida na NOTA METODOLÓGICA nos ajuda a continuar caminhando ...

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EFERÊNCIAS
ALCORÃO Sagrado. São Paulo, Tangará, 1975.
BARROS E SILVA, Fernando de. Os linchadores da Uniban. Folha de São Paulo. São Paulo, 9 de novembro de 2009. P.. A2.
BÍBLIA Sagrada. São Paulo, Vida, 1984.
CALLIGARIS, Contardo. A turba da Uniban. Folha de São Paulo. São Paulo, 5 de novembro de 2009. p. E11.
CASTRO, Ruy. Perna de fora. Folha de São Paulo. São Paulo, 11 de novembro de 2009. p. A2.
ESCOLÁSTICA, Maria. O gozo feminino. São Paulo, Iluminuras, 1995, 207 p.
HITE, Shere. O Relatório Hite: um profundo estudo sobre a sexualidade feminina / The Hite Report / Rio de Janei

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