segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

"AS CIDADES INVISÍVEIS" - ENSAIO - CONTINUAÇÃO

AS CIDADES INVISÍVEIS - ÍTALO CALVINO
ENSAIO (continuação)
créditos - PasselWeb



Philippe Daros escreve sobre a o procedimento de escritura de Calvino como sendo uma "estratégia do olhar". E é essa estratégia que propicia ao leitor descortinar cada nó proposto, cada mundo microscópico oculto, necessário aos que buscam a percepção desse mundo que se forma nos interstícios, fora do alcance dos olhos comuns que só conseguem enxergar a aparência, o que está na superfície das coisas.Cidades invisíveis e inesgotáveis como Fílide, cujos trajetos são arquitetados entre lugares suspensos no vazio, verdadeiros fragmentos, são metáforas para se pensar a construção de narrativas hipertextuais que apresentam diversos pontos de entrada, cujas partes proliferam-se sem que nunca consigamos ter ao alcance de nossos olhos tudo o que ela contém.
Em As cidades invisíveis as narrativas são agrupadas em blocos: as cidades e a memória, as cidades e o desejo, as cidades e os símbolos, as cidades delgadas, as cidades e as trocas, as cidades e os olhos, as cidades e o nome, as cidades e os mortos, as cidades e o céu, as cidades contínuas, as cidades ocultas. Esse agrupamento nos faz pensar que há um fio condutor entre as narrativas, apesar de que elas são independentes, de poderem ser deslocadas dentro da obra sem prejuízo da compreensão.Seu livro se organiza como um tratado de filosofia. Marco Polo, o viajante, o nômade, comenta de forma inaugural as trilhas percorridas. Uma voz que brame um canto diferente, anunciando um cosmo vário, mas geralmente despercebido por aqueles que se deixam contagiar somente pelo que o olhar capta. E como as cidades não encontram seus espelhos no mundo real, elas se desenvolvem segundo uma linha rizomática e evolucionária, dentro de um contexto utópico. Essas multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito.
A percepção que Ítalo Calvino desperta através do simbólico, da descrição construída por Marco Polo é a dos devires, das diferenças que levam à criação através da imaginação mas também ao pensar. As descrições não seguem um tratado racional. Como num delírio, a lógica é rompida pelo discurso fantástico que extrapola a rede de significações e representações dos signos renovando e subvertendo os fatos reais, abandonando a consciência e explorando o inconsciente, os tempos e espaços livres.Seus comentários constituem um adeus à imutabilidade, aos conhecimentos do mundo cristalizados e é uma entrada no domínio da desterritorialização dos sentidos, apontando cidades com formações paradoxais mas coexistentes. Com isso, torna a narrativa um organismo vivo, que se multiplica, e nessa multiplicação ela se dilui para se compor novamente diferentemente, mas com o mesmo intuito, a criação de mundos suplementares, formando uma floresta labiríntica, sem a preocupação de deixar rastros de sua existência.O que existe de comum entre cidades como Pentesiléia, Cecília, Trude, Leônia? Elas são cidades contínuas, mas esvaecidas no planalto, escondidas, que podem ser aqui ou lá, do outro lado ou em volta, cujo centro está em todos os lugares. Nelas você nunca chega, mas sempre está, mesmo sempre seguindo em linha reta, pois os espaços se misturam estando elas em todos os lugares. Por isso não possuem muralhas que a protegem ou delimitam seu espaço. Você nunca sabe se está dentro ou fora, se passou por elas sem perceber. Não tem começo nem fim, você simplesmente está nas malhas da cidade. Para compreendê-las é necessário deixar-se levar pelo movimento sem querer subjugá-las à ordem normal. As cidades são exemplos do fluir da vida onde tudo muda incessantemente.
Esse percurso que o leitor segue, pulando de cidade em cidade, encontrando espaços rarefeitos que formam uma geometria caótica com as imagens que surgem e se impõem diante do seu olhar perfurante, faz parte da estética literária que trata a obra como uma grande rede, ou ainda como obra aberta e obra em movimento. Um livro fasciculado em blocos que podem ser atomizados sem prejuízo de sua totalidade. As entradas podem se dar em qualquer capítulo, pois são histórias fragmentadas, e cada uma apresenta uma realidade suplementar a si própria e não a outra. Como não há nenhum caminho que conduz às vilas, suas ligações se fazem ao imaginar, num fluir permanente. O movimento da obra dá-se principalmente com o emprego de símbolos que indicam esse fluir permanente e contribuem para a imersão nas percepções sensoriais: o céu, o rio, a chama que arde.Para participar dessa estética, Calvino não abandona a leitura tida pela cultura ocidental como linear, nem tampouco insiste na construção de um romance que priorize a quebra das regras fixas. Ele investe no potencial inventivo e criativo das palavras, explorando mundos atrás de espelhos, construindo universos alternativos, um modelo mágico cujas visões caleidoscópicas e fugitivas edificam sua arte de contar.
As cidade invisíveis trabalha com mundos imagináveis que apontam, por sua vez através da meditação, mundos reais; uma estratégia cognitiva do autor na exploração, através das percepções sensoriais, dos espaços invisíveis.São histórias que deflagram um pensar incessante, verdadeiros micro-mundos ficcionais inseridos numa estrutura maior, cuja organização individual é problematizada, numa fortificação perfeita das partes e do todo. Leônia, por exemplo, num gesto absurdo remove os restos de sua existência todos os dias, jogando fora coisas para que dêem lugar às novas. Nada fica detido, tudo é substituído incessantemente. Assim ela refaz a si própria ininterruptamente, sempre vestida do novo, na constância de sua inconstância. Mas o passado é conservado através do lixo. Este é a sua memória. Existem portanto duas Leônias: uma que sempre acorda nova e a outra que se veste de seu lixo. Quanto mais Leônia se despe das suas recordações enterrando o velho mais fortifica a Leônia que se nutre do passado. A memória está guardada nos objetos que representam no dia seguinte o passado. Uma narrativa que aparece entrelaçada com outras, parábolas que oferecem passagens labiríticas entre o real e o imaginário, sem que possamos, como na fita de moebius, distinguir entre o fora e o dentro, o direito e o seu anverso. Essa estratégia é, segundo Darós, resultado da combinação de um olhar irônico com um olhar mágico que Calvino desfecha à sua criação.Dando preferência a figuras como o rébus, Calvino constrói narrativas descritivas de cidades que se entrelaçam, encadeiam-se não pelos traços comuns que revelam, mas pelos que dissimulam, num processo de continuidade e descontinuidade. São as cidades ocultas que desdobram-se, que apresentam sua dupla imagem, desafinam, mostrando muitas vezes o seu contrário, como Berenice.
Há uma Berenice injusta e uma dos justos, oculta e ainda uma outra Berenice que é o resultado da fermentação dos rancores e rivalidades nascidos da certeza dos cidadãos da segunda Berenice serem justos. É a materialização de sentimentos onde o mal campeia, um inventário das coisas ruins que existem, invocando a imagem da coisa dentro da outra, nos mostrando como o todo pode se fragmentar em diversas variantes.Apesar de estarmos habituados a separar os domínios, essa imagem da coisa dentro da outra se repete em várias cidades. Algo concretizado no meio de algo móvel e em constante devir nas cidades invisíveis. Sempre trabalhamos com um duplo conteúdo: a vida e a morte, o lado positivo e negativo, o claro e o escuro revelando as duas faces da mesma moeda, invocando momentos de plenitude mas paralelamente de conflito. Esse é o sentido que impregna todas as cidades. Marósia dos bandos de ratos, que num piscar de olhos, como que por acaso, num murmurar ou num gesto lépido desaparece e dá lugar a uma Marósia diferente, cristalina, a cidade se transfigura num espaço das andorinhas. Raíssa, cidade infeliz. Mas há a esperança em perfurar a barreira, encontrar-lhe uma fenda, de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem mesmo sabe que existe.Essas são imagens que se desdobram sugerindo nesse ir e vir como a vida está envolta num imenso paradoxo e o contrário pode emergir do seu contrário. Sugestão de algo que surge do fundo, pois a natureza tem um lado repulsivo e misterioso. Como elas trazem no seu bojo tanto o germe da prosperidade como o da destruição, a contradição se faz presente a todo momento. O narrador Marco Polo instaura um processo de incertezas, porque tudo é e não é. Assim, tudo é portador de um princípio positivo, mas admitindo-se sempre a existência de um princípio negativo que pode a qualquer momento aflorar.Como historietas avulsas a qualquer enredo, elas vão se somando e tecendo paulatinamente um fio que atravessa todo o romance da primeira a última página: a fluidez de um mundo que se constitui através da audição, do odor, do paladar e de um olhar que não é o ver, mas o emergir na coisa, o mirar rosiano. Cada cidade porta uma revelação, mundos utópicos que são somente descortinados quando deitamos nosso olhar sobre ínfimos detalhes, à cata das ambigüidades. A descrição espacial da cidade envolvida nessa esfera de ambigüidade é representativa da condição humana, das oscilações pelas quais o homem passa.Marco Polo prossegue investigando as coisas, explorador das profundidades ocultas nos confins do império de Kublai Khan. Ele segue fazendo indagações, efetuando revelações, tentando atravessar as aparências, passando de um labirinto a outro, de uma margem a outra, à descoberta desse outro mundo desmesurado, compondo e desvelando enigmas. Com a descoberta de cidades móveis, evanescentes e variáveis, inseridas numa ordem própria, numa ordem recôndita, onde as coisas não têm formato muito definido, Ítalo Calvino nos inicia numa árdua aprendizagem da utilização de um olhar mágico que mina nossas certezas e nos encaminha para viagens descontínuas no espaço e no tempo, jornadas livres do controle, desertos significativos.
(Continua na próxima postagem)

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