quinta-feira, 15 de abril de 2010

Interfaces Antropologia e História do urbano. CIDADESSERTÃO: A CIDADE RECEBE E ACOLHE O SERTÃO: 1 - BARRACAS E CASAS DE ERVAS

Interfaces Antropologia e História do urbano.
CIDADESSERTÃO: A CIDADE RECEBE E ACOLHE O SERTÃO:
1 - BARRACAS E CASAS DE ERVAS

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" - Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.”
(Guimarães Rosa – “Grande Sertão: Veredas”)


Vicente Deocleciano Moreira
vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com
FONTE DIRETA – Blog http://www.viverascidades.blogspot.com


O trecho de Guimarães Rosa (epígrafe) me dispensa e me alivia dos quefazeres de esbagoar-me e de me esvair (em conceitos) sobre o que venha a ser Sertão.


Na maior parte das cidades brasileiras, existem barracas de feiras e de mercados populares e mesmo estabelecimentos comerciais formais dedicados à venda do que se denomina, genericamente, de ervas. São as ‘arracas de ervas’e as ‘asas de ervas’. Que não vendem apenas ervas no seu sentido ‘botânico’, fitoterápico. Vendem também incensos, defumadores, garrafadas, imaginárias do Catolicismo (terços, santos, fotos de papas, terços, crucifixos), do Candomblé e da Umbanda (aguidás e outros tipos de vasos, velas comuns e velas de sete dias, além de indumentárias e objetos de uso geral dos orixá, imagens do preto velho, da pomba gira, de exu cristianizado como o diabo. Tais produtos religiosos e mágico-religiosos (Catolicismo, Candomblé, Umbanda) estão – em maioria – ligados ao mundo urbano.


Não há separação e distinção, nas prateleiras e na teoria antropológica, entre os objetos sagrados e aqueles que, profanos, cumprem funções terapêuticas para o corpo (doenças de fígado, enxaquecas, coração, rins, estômago, etc.), o psiquismo (equilíbrio emocional, “mau olhado”, cura de obsessões, manias, psicoses, etc.) e a vida afetiva (retorno do ser amando que partiu, proteção contra ciúmes, favorecimento da atração sexual ou de encontro amoroso, etc.).
Nosso destaque, no momento, vai especificamente para as ervas usadas, que são, para fins religiosos e terapêuticos de toda ordem. É que elas trazem para algum espaço urbano (barraca ou loja) conhecimentos milenares, originários do sertão, sobre o uso terapêutico clínico e terapêutico-religioso das ervas, de determinadas folhas. Um pouco do que chamamos, com alguma sofisticação, fitoterapia (sim, fitoterapia tanto clínica como religiosa).


A CIDADE RECEBE E ACOLHE AS ERVAS DO SERTÃO


No ponto zero de tudo estão os animais. Melhor dizendo, os animais como objetos da observação dos seres humanos que testemunharam, sobreviveram e, no geral, viveram os primeiros capítulos econômicos e sociais da nossa história neste planeta. Chamava a atenção dos humanos - em meio a tantos tipos de comportamento dos animais - aquelas condutas em que estes (os animais) se ‘curavam’ de sinais e sintomas de variados sofrimentos físicos, como por exemplo através da ingesta (ruminante ou não) de determinadas folhas: capim e determinados tipos de folhas. Os humanos aprenderam com os animais a terapia através das folhas, das ervas, - embora estes não tivessem, a rigor, nos ensinado. Um caso pitoresco de aprendizagem sem mestre.


Seria talvez cansativo historiografar como as ervas (camponesas, sertanejas, de origem) invadiram e se estabeleceram nas cidades, ao longo do tempo, da história das cidades e através das civilizações. É fato bastante conhecido que pessoas que, massivamente, se movimentaram do sertão para as cidades, ao menos no Brasil (correntes migratórias, êxodo rural), trouxeram para mundo urbano, cada vez mais cosmopolita, um conhecimento tão ancestral e fascinante, quanto ainda tão pouco estudado à luz da Gnosiologia (Teoria do Conhecimento).


Também as ervas fizeram o sertão estar em toda parte. Nos primórdios da história econômica, sob a divisão sexual do trabalho, os homens faziam determinadas tarefas, as mulheres outras, diferenciadamente, com base e sob inspiração na força física e na massa muscular deles e delas. A guerra, a caça a grandes animais no interior das florestas e longe do mundo doméstico (do latim domus, domi = casa), trazer para a casa a carne vermelha e a proteína animal, por exemplo, eram ‘coisas de homem’. Quase sempre grávidas, às mulheres cabiam responsabilidades como a caça e a criação de pequenos animai e aves, a coleta de frutos e raízes, agricultura e horticultura, trazer carne branca e proteína vegetal para o sustento da família.


Porém, havia cinco outros papéis que gostaria de destacar: 1) a educação (tal como a chamamos hoje); 2) o nascimento (parteiras, ‘aparadeiras’); 3) a morte (carpideiras, consoladoras dos que perderam entes queridos):, 4) a sexualidade e 5) a saúde (explicação para morbi-mortalidades, identificação de agravos, sinais e sintomas, prevenção e cura de doenças).


Ontem e hoje, a mulher tinha (e tem) mais facilidade de entender os primeiros sinais de ingresso no mundo da linguagem pelo filho, pelo infante (isto é, a criança que – ainda – não fala); e de responsabilizar-se pelos primeiros passos do ensino do idioma nativo, das “boas maneiras” e de tudo quanto a educação exige de permanência e fixação (sedentarismo inevitável) em uma determinado espaço para acontecer.


Nos extremos da existência, nascimento e morte, lá estava a mulher: aparando (nascimento) e amparando (morte). Especialmente sensível, artífice do feminino, foi dirigente e protagonista da sexualidade masculina e de sua própria sexualidade. Protagonismo que, depois, foi vitimado pela força física masculina em sua versão de brutalidade e perversão. Quando essa brutalidade passou a funcionar como um estranho consolo para a frustração e a incompetência da leitura do eterno feminino, por ele.


De mãe para filha, o conhecimento sobre as relações ervas e saúde chegou à Idade Média, instância histórica em que esse conhecimento custou, às mulheres, o rótulo de “bruxas”, “cúmplices do diabo” e ... a morte na fogueira pelos inquisidores da Igreja Católica de então. Na Idade Média, contra as mulheres marchavam cinco tipos de poderes masculinos: Estado, Igreja Católica, Exército, Pai e Marido.


A cidade recebe e acolhe o sertão através das ervas. Nos primeiros tempos e no sertão, as mulheres vendiam ervas e dominavam o respectivo conhecimento. Ao chegar à cidade, o conhecimento (e o comércio) sobre o poder das ervas passa a ser praticado e dominado pelos homens nas feiras, mercados populares e estabelecimentos comerciais - na rua, no espaço público, enfim. Além de vender, no mesmo espaço comercial, muitos homens passaram a clinicar e prescrever. A casa, o espaço privado, doméstico e não comercial por excelência, continua sob domínio das rezadeiras e raizeiras.


É assim que, através das ervas, a cidade recebe e acolhe o sertão

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