O DESEJO, O GOZO E A NOITE ETERNA DOS SHOPPING CENTERS – (PARTE 1)
Vicente Deocleciano Moreira
vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com
FONTE DIRETA – Blog http://www.viverascidades.blogspot.com
Comecemos nossas reflexões com a leitura do poema “O Desejo” de Victor Hugo:
Desejo, primeiro, que você ame,
e que, amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer
e esquecendo não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
mas se for, saiba ser sem desesperar.
Desejo também que você tenha amigos
que, mesmo maus e inconsequentes,
sejam corajosos e fiéis,
e que pelo menos em um deles
você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
desejo ainda que você tenha inimigos,
nem muitos, nem poucos,
mas na medida exata para que, algumas vezes,você se interpele a respeito
de suas próprias certezas.
E que, entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
para que você não se sinta demasiado seguro.
Desejo, depois, que você seja útil,
mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
quando não restar mais nada,
essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.
Desejo ainda que você seja tolerante,
não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
mas com os que erram muito e irremediavelmente,
e que fazendo bom uso dessa tolerância,
você sirva de exemplo aos outros.
Desejo que você, sendo jovem,
não amadureça depressa demais,
e que, sendo maduro, não insista em rejuvenescer,
e que, sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
é preciso deixar que eles escorram por entre nós.
Desejo por sinal que você seja triste.
não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
que o riso diário é bom,
o riso habitual é insosso
e o riso constante é insano.
Desejo que você descubra,
com a máxima urgência,
acima e a despeito de tudo, que existem oprimidos,
injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.
Desejo ainda que você afague um gato,
alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
erguer triunfante o seu canto matinal,
porque, assim, você se sentirá bem por nada.
Desejo também que você plante uma semente,
por mais minúscula que seja,
e acompanhe o seu crescimento,
para que você saiba de quantas
muitas vidas é feita uma árvore.
Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
coloque um pouco dele
na sua frente e diga "isso é meu",
só para que fique bem claro quem é o dono de quem.
Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
por ele e por você,
mas que se morrer, você possa chorar
sem se lamentar, sofrer e sem se culpar.
Desejo por fim que você, sendo um homem,
tenha uma boa mulher,
e que, sendo uma mulher,
tenha um bom homem
e que se amem hoje, amanhã e no dia seguinte,e quando estiverem exaustos e sorridentes,
ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
não tenho mais a te desejar.
Lemos o poema e passamos a refletir sobre o mesmo e sua articulação com um modo particular de conceber o Desejo. Lembramos do poema homônimo de Drummond que foi enviado, faz algum tempo, para os componentes dos dois grupos do NUAS, embora nem todos o tivessem recebido. Uma chance para todos conhecer este primor drummondiano:
Desejo a vocês...
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.
Diferentes autores, e diferentes épocas. Victor Hugo nasceu em Besançon, França, em 1802 e morreu em Paris, em 1885. Drummond nasceu em Itabira do Mato Dentro - Minas Gerias - Brasi, em 1902 e faleceu no Rio de Janeiro em 1987. Mas , ainda assim, presentes nos dois poemas as situações comuns da falta de, da falta a ser, da falta de ser e do otimismo e ‘alto astral’. Vitor Hugo e Drummond são ‘vasos comunicantes’? Sim, como só os poetas – “cavalgados” pelo deus grego Entusiasmo (Platão que o diga!) - podem sê-lo.
Algumas questões se nos impõem:
1 – O que é desejo (?) o que é necessidade (?) .. Pensamos o Desejo como exclusividade do sujeito, sujeito humano, do sujeito da Cultura, evidentemente, por se tratar do único (animal, bicho) que fala; na fala há falta, a falta “produz” o desejo, o desejo depende de outrem para ser satisfeito ou para dar a ilusão de satisfação, ou “não ser” satisfeito. A verdade é que não há desejo satisfeito; sempre fica faltando algo (que nem sempre sabemos ao certo o que é) naquele(a) amigo(a), naquele(a) namorado(a), no pai, na mãe, no(a) professor(a) perfeito(a).
“No coração de quem ama fica faltando um pedaço” – assegura Djavan
“O desejo do homem (ser humano) é o desejo do outro”, afirma Lacan; não escolhemos o nosso nome próprio (e talvez um dia nosso sexo seja capricho escolha de alguém e não apenas do acaso). Além disso, nosso desejo está implicado no outro. A “ponta” do nosso desejo nunca se ‘encaixa’ na “ponta” do desejo dos outros: “fica faltando um pedaço” – um pedaço tão invisível e intragável quanto desconhecido. Todo desejo é - no berço e por definição - insatisfeito; nasce insatisfeito para possibilitar a falta, a qual possibilita um desejo ... e assim por diante. Deixa-se de desejar um desejo (sempre e sempre insatisfeito) quando se está morto. Viver é desejar sempre e não se satisfazer nunca com nada, com ninguém, nem com a Ciência, a Religião, nem com os políticos, nem com os santos, nem com Deus. Sartre assegura que o “ser humano é um ser para a morte”; nasce exclusivamente para morrer. O desejo nasce exclusivamente para não satisfazer e também não ser satisfeito.
“Por que você me deixa tão solto?” ... “Eu tenho meus desejos e planos secretos, só abro prá você mas ninguém.” (...)
“Fala que me ama, só que é da boca prá fora.” (Peninha)
O infante (o ‘fofinho’ quase humano) é aquele bebê que ainda não fala (in = não) é um ser da necessidade – não do desejo. O infante não fala, não diz onde está doendo, onde está o mal-estar; comunica a dor e o mal-estar através do grito, do choro (como o fazem gatos e cachorros) e aí fica à mercê do desejo do outro, sujeito-ser humano. O infante não mama; mamar é verbo; verbo é ação; ação é do sujeito; o infante é objeto e, portanto, não age, é agido; não mama ... se deixa amamentar. Não é sujeito, é sujeitado. O infante ‘ainda’ não fala – mas (quem sabe?) o desejo do outro o fará falar e,– quando isto acontecer, no curso do processo de aquisição da linguagem, – ecce homo! (eis o homem!) - alvíssaras! Finalmente temos um ser humano entre nós. E não mais um ser vivente. São também seres viventes o gato, a samambaia, a formiga, o cachorro, o chipanzé. Inteligência, sentidos, capacidade de comunicação, sentimentos, emoções tudo isto coloca no mesmo lugar, seres humanos, infantes, tigres e chipanzés. A linguagem nos separa, nós humanos, de TODOS eles.
A diferença entre o chipanzé e os humanos é de “apenas” 0,46% (manos de 1% portanto). Esse “apenas” é nada mais na menos que a linguagem (exclusividade do Homo sapiens sapiens). A necessidade de água, comida, sono pode ser (e é) satisfeita, preenchida, no caso dos seres da necessidade. Humanos não querem só comida; querem também diversão e arte.
2 – Gênese do sujeito. Freud operou, na tessitura do humano, uma revolução copernicana. Nicolau Copérnico (1477-1543), ‘deslocou’ a Terra do centro do sistema solar e no seu lugar ‘colocou’ o sol (teoria heliocêntrica). Freud (1856-1939) ‘deslocou’ o consciente do centro das ações dos seres humanos e no seu lugar ‘colocou’ o inconsciente. (psicanálise).
É mais que comum ouvirmos alguém dizer: “seu mal, Fulano, é que você faz as coisas sem pensar!”. Se fazer as coisas sem pensar fosse necessariamente um mal, um defeito, toda a humanidade seria – por esta razão apenas – má e defeituosa. A verdade é que TUDO o que fazemos é sem pensar, pois somos guiados pelo nosso inconsciente. Só um pedacinho insignificante desse TUDO é o que resulta do nosso agir no mundo dirigido pelo pensamento, pelas ações conscientes. Lacan nos ajudaria ao afirmar que o inconsciente É onde não pensa (onde não estamos pensando) e onde pensa (onde estamos pensando) ele NÃO É (não está ‘agindo’). O inconsciente se manifesta através do inconveniente ‘esquecimento’ (estou com o nome dele na “ponta da língua” ... costumamos dizer). Ou quando chamamos/denominamos uma pessoa com o nome de outra pessoa (ato falho) – não raras vezes provocando situações embaraçosas.
Em meio à discussão, voltamos a lembrar de Roberto Carlos (em “Detalhes”):
(...)
Se alguém tocar seu corpo como eu, não diga nada
Não vá dizer meu nome sem querer à pessoa errada (grifo nosso)
(...)
Lacan ajuda ao afirmar que “o ato falho é o discurso perfeito” . No ato falho é quando somos mais verdadeiros.
A gênese do sujeito do inconsciente e a (in)constituição do objeto a (ou do a ) causa de desejo. Discutimos também sobre a tríade do registro do humano: o Real (impossível de dizer), o Simbólico (a linguagem, a cultura) e o Imaginário (nossa intrigante fronteira entre o humano e o animal que nunca deixamos de ser).
(CONTINUA AMANHÃ, SEXTA-FEIRA DIA 9 DE ABRIL)
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