quinta-feira, 31 de março de 2011

RAUL CUTAIT - TRIBUTO A UM PACIENTE

[FONTE: JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO. SÃO PAULO, SP, BRASILquinta-feira, 31 de março de 2011, P. A3]

 
Tributo a um paciente


RAUL CUTAIT


No Brasil, acho que José Alencar foi o exemplo público máximo de comportamento aberto, dividindo sua doença com a população em geral





Para um médico, a perda de um paciente é sempre sentida e motivo de reflexões: foi feito o melhor? Algo poderia ter sido diferente? Foram respeitados os desejos do paciente? E os de sua família? Fui determinado e, ao mesmo tempo, acolhedor quando necessário?
 Nesta semana, assim como milhões de brasileiros, lamento a perda de um de nossos mais ilustres cidadãos, José Alencar.
Ao longo de quase 14 anos de convívio como um de seus médicos, em que histórias e estórias intermináveis mesclavam-se a discussões sobre suas doenças, aprendi a estimá-lo e a respeitá-lo.
E, com a camaradagem que essa relação mágica que a medicina cria entre médicos e pacientes, sentia-me à vontade para ouvir e falar.
Mais de uma vez, em conversas reflexivas, pude lhe dizer que eu o via como exemplo de sucesso profissional, político e familiar, mas em especial como um exemplo de paciente. Nesse aspecto, o seu comportamento influenciou milhões de brasileiros, que viam nele um porta-bandeira de fé, esperança e determinação.
Quantas vezes, enquanto andávamos pelo hospital, cruzamos com pacientes que faziam questão de lhe dizer que eles se fortaleceram nas lutas contra suas doenças vendo sua força de vontade de vencer seu próprio mal.
Não é exagero dizer que suas atitudes diante da doença, da vida e da morte marcaram também muitos de nós, seus médicos.
Numa de suas cirurgias mais delicadas, há quase dois anos, ao lhe expor os riscos do procedimento com a franqueza que Alencar exigia, ele, ao perceber a inquietude de seus familiares, soltou uma frase digna de sua fé e de sua esperança: "Não quero clima de velório, mas espírito natalício". Sim, porque ele se via renascendo após a cirurgia, o que realmente aconteceu.
Na minha época de recém-formado, era quase rotineiro não contar para as pessoas que elas tinham câncer, uma doença que era, então, um estigma para muitos.
Felizmente, nos dias de hoje, tudo mudou, sendo cada vez mais comum os pacientes participarem ativamente das conversas sobre tratamento e até mesmo prognóstico, podendo sentir que seus familiares e médicos são como seus parceiros, dividindo com ele a angústia, o medo e a esperança.
Como na "Canção do Tamoio", de Gonçalves Dias, muitos logo entendem que "A vida é combate,/ Que os fracos abate,/ Que os fortes, os bravos/ Só pode exaltar".
No Brasil, acho que Alencar foi o exemplo público máximo de comportamento aberto, dividindo sua doença e seus sentimentos com a população em geral.
Foi antecedido por Mário Covas, que, quando governador, chegou a chorar em entrevista coletiva enquanto falava de si e de sua doença; por Ana Maria Braga, que, com sua capacidade de comunicação, mostrou grande dignidade ao falar de sua doença e de como a enfrentava; pela atriz Patrícia Pillar, que aumentou o time das pessoas que expuseram sua doença e ajudaram os brasileiros a entender e a conviver com o câncer.
Diga-se de passagem que, no presente, é possível curar mais de 50% de todos os casos diagnosticados de câncer, bem como ampliar o tempo de sobrevida, com qualidade e dignidade, daqueles que têm doenças incuráveis.

Na sua infindável procura pelo significado da vida, o homem usa explicações racionais, emocionais, científicas e religiosas.

Na busca de sentir que a vida valeu a pena, até mesmo sem entendê-la em sua plenitude, tenta conquistar amor, felicidade, paz, saúde, sucesso e tantas outras coisas.
Para mim, o José chegou lá!


RAUL CUTAIT, membro da Academia Nacional de Medicina e da Academia Paulista de Letras, é professor associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e cirurgião do Hospital Sírio-Libanês.

2 comentários:

  1. José Alencar foi realmente um exemplo de fé, motivação e esperança. Às vezes é difícil compreender de onde pessoas como ele tiram tanta força. Acredito que alguns desses desafios quebram o véu que separa as coisas terrenas e divinas e assim podemos enxergar coisas que só a fé pode mostrar!

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  2. Matheus:

    Hamlet, personagem de Shakespeare, tem uma frase clássica ...

    "Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,
    Do que sonha a tua [nossa] filosofia."


    Abraços,
    Vicente

    ... que conforta mas não esclarece como gostaríamos.

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