domingo, 27 de março de 2011

CHICO BUARQUE E OS AMORES URBANOS (5)


CHICO BUARQUE E OS AMORES URBANOS (5)

 
"O MEU GURI"/CHICO BUARQUE   FAZ  30 ANOS (1981 - 2011)




Vicente Deocleciano Moreira


Os conteúdos das  quatro postagens anteriores parecem fugir do 'foco' central do tema Amores Urbanos. Isso foi um movimento  não só de introduzir à nossa reflexão particular (CHICO BUARQUE E OS AMORES URBANOS ) mas, sobretudo, uma tentativa de arriscar homenagear os 30 anos de existência de "O Meu Guri" do consagrado compositor, cantor, escritor e drmaturgo  brasileiro.

A atualidade e contemporaneidade do tema e dos problemas urbanos brasileiros, mostrados pela obra  "O Meu Guri" (1981 - 2011),  faz parecer que foi composta ontem. Valos reler e cantar novamente: esta obra prima de Chico Buarque




Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí
Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega no morro com carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assalto tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri.




É materno o amor urbano de que trata "O Meu Guri". Poderia o sujeito lírico ser um homem - ou seja, um representante convencional da paternagem, da função paterna? Poderia ... na medida em que tudo pode(ria). Inclusive, o sujeito lírico poderia ter gênero masculino exercendo mesmo a maternagem, a função materna. O próprio sujeito autoral, o Chico Buarque, nos deixa à vontade, bastante à vontade para que escolhamos - ad libitum  (ao nosso bel prazer) - se queremos que o sujeito lírico (o personagem) seja homem ou seja mulher.


Entretanto e entre tantas considerações e possibilidades, convido vocês - com todo o respeito! - a optar pelo sujeito lírico feminino; isto não só para haver coerência com o meu pensamento, talvez precipitado, que abre o terceiro parágrafo deste texto: É materno o amor urbano de que trata "O Meu Guri":  mas também porque no morro, na favela do Rio de Janeiro (e de outras cidades brasileiras), é uma grande ausência a figura masculina como gestor e mantenedor do barraco, da família,  e dos filhos. Tanto que hoje (2011), no Brasil, a família sociológica símbolo ("oficial") da maior parte da população é formada apenas por uma mulher e seus filhos.


Concordo e subscrevo as avaliações expostas nas postagens anteriores mas, para mim, o toque de mestre de Chico Buarque está na ironia presente em cada estrófe, do princípio ao fim,  e na totalidade do poema (sim, poema!). Mas, além de não ser sábio competente para explorar e aprofundar tal ironia, obrigo-me a me ater ao CHICO BUARQUE E OS AMORES URBANOS.


Vamos lá. Bon Courage!


Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar




Entre 1975 e 1984 viví a experiência (fascinante) de participar de uma trabalho de promoção social numa área de pobreza e, marcadamente, de prostituição (o Maciel) no centro antigo de Salvador - Bahia - Brasil. Uma das primeiras (demo)lições que apreendí foi constatar que crianças já com seus 4 ou 5 anos de idade seimplesmente não tinham nome oficial, convencional. Desde que nasceram - rebentaram - eram chamadas e se autochamavam por apelidos: "Tico", "Zeca", ou "Tio Correa" - nome de uma loja de material de construção então existente na Cidade Baixa. As mães nãi tinham tido tempo ou interesse em registrar a criança nu cartório. Além da fome de pão, aquelas crianças tinham, fome de identidade. E do direito de ter um nome e sobrenome socialmente aceitos.


O amor URBANO  materno é um amor que fecha os olhos para os 'desvios' de conduta do filho? Não teria tido tempo, interesse, força essa mãe para advertir ou para  agir com manus militari a cada produto de roubo e de furto que o filho trazia para casa? Abandono de incapaz? Desinteresse?  Resignação ante o fado, o destino que ela já previra ... (cassandra? pitonisa?) desde sempre e até mesmo antes de ser mãe? A expressão "meu guri" carinhosa - não fosse irônica - não  isenta essa mãe de nossos julgamentos, veredictos e sentenças condenatórias?


O amor materno é um mito (?) como quer a antropóloga Elisabeth Badinter?


Em 1941, há 70 anos, estreou a primeira produção da peça "Mãe Coragem" de Bertolt Brecht. Sempre achei que a mãe de "O Meu Guri" é a própria mulher e mãe buarqueana-brechtiana chamada  Coragem da peça, vale repetir o nome, "Mãe Coragem". É ler para crer.




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