terça-feira, 1 de março de 2011

TRÊS TEXTOS DE MOACYR SCLIAR (1937 - 2011)


 

 

                                                                                                                                   

A mão no metrô

 

Metrô: Pesquisa aponta que 66% dos passageiros acham muito ruim ou ruim a prevenção contra as investidas nos vagões. As queixas femininas mais comuns envolvem as "encoxadas" e a "mão-boba". Folha Cotidiano, 05.09.2005

Assim que o metrô chegou ela preparou-se para incomodação. Porque o vagão estava cheio, completamente lotado, e ela já sabia o que a esperava tão logo embarcasse: sem demora, algum homem, ou vários homens, encostariam nela, tentando tirar proveito da situação. Mulher ainda jovem, bonita, estava sujeita a essas situações, que a deixavam indignada. Mas, como outras usuárias na mesma situação, resignava-se. Era, achava, o preço que tinha de pagar por ser pobre, por não ter carro, como outras colegas de escritório.


Pensou em não entrar, em esperar outro metrô mais vazio. Mas já era tarde, e ela precisava ir para casa. Num impulso, entrou, e imediatamente viu-se na clássica posição de sardinha em lata, imprensada entre corpos, vários deles masculinos. Só faltava a mão.


Que não tardou a se fazer presente. Aos poucos, suavemente, ela sentiu a pressão de dedos sobre seu corpo.

Mas, surpreendentemente, aquilo não a enojou, não a alarmou. Porque era diferente, o contato daquela mão. Não se tratava de uma "mão-boba"; não havia malícia naqueles dedos, não havia safadeza. Para começar, eles estavam em lugar neutro, não nas nádegas, não nas coxas, mas nas costas, as costas que ela tinha doloridas depois de um dia de árduo trabalho. E a mão não estava em busca de prazer, de sacanagem; estava simplesmente pousada, quieta. Como se dissesse estou em busca de contato humano, é só isso que eu quero.


Ela poderia olhar ao redor, tentar descobrir quem, daqueles homens e mulheres à sua volta, estava a tocá-la. Mas não queria fazer isso. A verdade é que a gentil mão não a incomodava. Pelo contrário, fazia com que lembrasse uma passagem na infância, o dia em que o pai a levara à escola pela primeira vez. Tinham também ido de metrô; ela estava assustada, chorosa. O pai então colocara-lhe a mão nas costas, como a ampará-la, dizendo qualquer coisa do tipo "não chore, a escola é boa, você vai gostar". E ela se acalmara, não tanto por causa das palavras, mas pelo contato da mão paterna. E era a mesma sensação que tinha agora: a sensação de amparo, de conforto.


Estava chegando, precisava descer. Como se houvesse percebido, a mão, discretamente, retirou-se de seu dorso. A porta se abriu e ela saiu do vagão. Ainda teve a tentação de olhar para trás, mas resistiu. Não queria associar nenhum dos rostos que ali estavam com a mão que a tocara. Queria, isto sim, guardar a lembrança dessa mão como uma entidade misteriosa que, de algum modo, a fizera viver uma estranha e perturbadora aventura.
Folha de São Paulo (São Paulo) 12/09/2005


 

O amor à distância

Os brasileiros estão ficando cada vez mais móveis. Nascem em uma cidade, estudam em outra cidade, arranjam trabalho (quando arranjam trabalho) numa terceira, numa quarta, numa quinta cidade. Uma situação que repercute nas amizades, na relação com parentes e até na vida dos casais. Não é raro hoje que homem e mulher passem algum tempo, às vezes um longo tempo, separados. No caso de gente jovem, esta situação pode resultar de vestibular: o rapaz vai cursar a faculdade num lugar, a moça em outro. Curiosamente, problemas também surgem quando os dois fazem vestibular para uma mesma faculdade. A Folha de São Paulo publicou uma matéria a respeito, mostrando os conflitos que emergem quando o casalzinho está disputando uma vaga. Um psicoterapeuta foi ouvido a respeito e acabou confessando que ele próprio terminara um relacionamento quando, ao contrário da namorada, passara no vestibular: “Eu não tinha com quem comemorar.”
***
Mesmo quando os dois podem comemorar juntos, a perspectiva de uma separação geográfica não é agradável. Verdade que no passado, quando a comunicação e as viagens eram difíceis, isto era ainda pior. Freqüentemente a paixão dependia da correspondência, do correio. Cartas de amor acabaram fazendo história, e isto foi o que aconteceu com os tristemente famosos amantes do século doze, Abelardo e Heloísa.
Pedro Abelardo era um famoso professor de filosofia e teologia em Paris. Entre seus alunos, estava a bela e brilhante Heloísa, por quem o mestre apaixonou-se perdidamente: "... nossa paixão não omite qualquer dos graus do amor e se orna de tudo aquilo que o amor pode inventar de raro." Chegaram a ter um filho, casaram secretamente, mas o tio de Heloísa, o cônego Fulbert, era contrário à união e ameaçou os dois. Abelardo levou a amada para uma abadia; pensando que ele tivesse abandonado a sobrinha, Fulbert contratou bandidos que atacaram e emascularam Abelardo. Definitivamente separado de Heloísa, ele tornou-se monge. Os dois mantiveram uma longa correspondência, que até hoje nos impressiona pela intensidade da paixão.
***
Será que o e-mail susbtitui as cartas de amor? Será que Abelardo e Heloísa passariam à História usando a linguagem típica das mensagens eletrônicas, tipo “Naum esqueci de vc”? E onde está o papel, manchado de lágrimas? E a trêmula caligrafia?
Não adianta chorar pelo leite derramado (nem pelo pranto derramado). Vivemos novos tempos e temos de nos adaptar a eles. O importante é que as pessoas continuam se querendo. A tecnologia e os hábitos mudam. O amor, mesmo à distância, continua igual.


Trinta anos sem Vinicius de Moraes

 

9 de julho, assinala um melancólico aniversário: há 30 anos morria Vinicius de Moraes, uma das figuras mais marcantes da cultura brasileira, um talentoso poeta (ou poetinha, como, modestamente, se denominava) e compositor. Carioca, Vinicius teve uma vida movimentada e sob muitos aspectos pitoresca.

 

Era, para começar, um boêmio inveterado, apreciador do uísque, e grande conquistador: casou-se nada menos que nove vezes e teve inúmeros casos. Viveu numa época de grande agitação política, mas sua atuação nessa área foi, às vezes, desconcertante: começou como integralista, a versão cabocla do fascismo europeu, que enganou a ele e a muitos outros: Dom Hélder Câmara, Santiago Dantas, Adonias Filho, José Lins do Rego. Depois tornou-se um esquerdista, mas moderado. De profissão, era diplomata, mas, de novo, não muito atuante; o porteiro de uma das embaixadas onde atuou resumia assim o seu expediente: De manhã não trabalha, de tarde não vem. Em vez de servir no Uruguai, para onde estava designado, ficou no Rio, apresentando-se em botecos, o que deu ensejo à ditadura para cassá-lo. Como poeta, Vinicius certamente não teria meios de ganhar a vida; mas cedo descobriu que poderia colocar seu talento na música, tornando-se parceiro de grande compositores: Toquinho, Baden Powell, João Gilberto, Chico Buarque e Carlos Lyra e, sobretudo, Tom Jobim, com quem compôs Se Todos Fossem Iguais A Você, A Felicidade, Chega de Saudade, Eu Sei Que Vou Te Amar, Insensatez, e, claro, Garota de Ipanema.

Ninguém duvida de que esta canção é um símbolo do Brasil. A Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos lista-a entre as 50 principais obras musicais de todos os tempos, e é conhecida em todo o mundo, inclusive pela famosa gravação com Frank Sinatra. Para isso concorreram vários fatores. Em primeiro lugar, o ano em que foi composta, 1962, marcou o auge da bossa nova, importante movimento musical. Depois, era Rio de Janeiro, cidade que deixara de ser capital, mas que continuava sendo o centro artístico e cultural do país. Aliás, Garota de Ipanema tem muitas afinidades com o vibrante Cidade Maravilhosa, da qual é o lado lírico, brejeiro. Porém, mais que Rio, era Ipanema, o bairro mais sofisticado do país, o equivalente brasileiro do Village em Nova York, da Rive Gauche em Paris, de Bloomsbury em Londres. E mais que Ipanema era a garota, a beleza brasileira celebrada de maneira eloquente. Foi inspirada em Helô Pinheiro, uma bela moça que, a caminho da praia, costumava passar pelo Bar Veloso (hoje Bar Garota de Ipanema), onde Vinicius e Tom Jobim faziam ponto.

A letra inicial, logo abandonada, era um tanto depressiva e não muito brilhante: Vinha cansado de tudo/ De tantos caminhos/ Tão sem poesia/ Tão sem passarinhos/ Com medo da vida/ Com medo de amar... E aí, a grande ideia: em vez de queixumes, de lamentos, a vibrante celebração: Olha que coisa mais linda mais cheia de graça/ É ela a menina que vem e que passa/ Num doce balanço a caminho do mar/ Moça de corpo dourado do sol de Ipanema/ O seu balançado é mais que um poema/ É a coisa mais linda que eu já vi passar...

Helô Pinheiro deixou de ser garota, e procurou outros caminhos, que não o do mar. Casou (mais de uma vez), tornou-se apresentadora de tevê, empresária e dona de uma cadeia de lojas chamada, claro, Garota de Ipanema - a expressão também figura em destaque em seu blog. Ah, sim, e continua uma bela mulher.

Sua história enseja uma curiosa questão: serão platônicas as grandes paixões? Será que nascem, não na cama, mas na mesa de um bar, brotando do coração de alguém a olhar uma menina que vem e que passa, num doce balanço, a caminho do mar? Uma indagação que o grande Vinicius



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