sexta-feira, 25 de março de 2011

FCCV - OS GRANDES EVENTOS E AS (S) OBRAS SOCIAIS

 

FCCV - Forum Comunitário de Combate à Violência - Salvador - Bahia - Brasil

Leitura de fatos violentos publicados na mídia

Ano 11, nº 11, 25/03/11 


OS GRANDES EVENTOS E AS (S)OBRAS SOCIAIS

           
Estamos sob influência do signo da Copa 2014 que, em associação com as Olimpíadas 2016, formam uma cosmologia peculiar cuja “configuração astral” tem conformado o nosso presente e futuro próximo no que se refere às prioridades no campo das obras públicas, bem como no que concerne à retórica das instituições quanto ao discurso que responde a demandas sociais. Quanto mais relacionadas forem as reivindicações dos segmentos sociais com a agenda desses acontecimentos esportivos, mais são ampliadas as chances de atendimento às reclamações. Um exemplo desta confluência está na prioridade dada às favelas cariocas para a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora. Aquelas cuja localização está próxima do espaço de abrangência dos acontecimentos esportivos devem ser priorizadas, do ponto de vista do cronograma de implantação das referidas Unidades. 



O clima subjacente a esta espécie de “lei do endereço prioritário” baseada na citada “configuração astral” assumiu status de justificativa inquestionável, à semelhanças das razões sobrenaturais. Na regência desta quadra temporal, cabe aos segmentos sociais desenvolver táticas para colocarem as suas mais inusitadas questões dentro de um formato de bolas em campo, em quadra ou em rede. E isto pode se apresentar como um ideal de pertencimento a este tempo, a esta mono-duração, quando tudo acaba em jogos.
Ao que parece esta atmosfera não é moda nacional. Outros países também se curvam à cosmologia desportiva internacional quando se transformam em sedes de competições de tal porte. Depois destes eventos, os países que os abrigam não são mais os mesmos em quesitos objetivos como: transportes, aeroportos, equipamentos esportivos etc. A passagem dos astros olímpicos e do futebol mundial deixa marcas para além dos resultados das competições esportivas. Este é um exemplo de uma ocorrência que tem impacto modificador do espaço que as abriga. Esta, aliás, é condição para sediar as mencionadas edições dos jogos que são precedidas por uma lista de exigências cujo cumprimento é fiscalizado por organizações internacionais como o Comitê Olímpico Internacional e a FIFA.
Mas em plena vigência desta “conformação astral” são registrados muitos outros eventos, como a visita de chefes de Estado. Estamos às vésperas da chegada do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Ele, a esposa e as filhas estarão no Brasil em 23 e 24 de março, quando visitarão Brasília e Rio de Janeiro.  Abaixo das energias que dotam certos espaços nacionais de condições adequadas para as competições esportivas, é imperativo o trabalho de adequação dos palmos para a passagem do governante americano. Entre os cenários a serem customizados está a comunidade carioca “Cidade de Deus”.
Consultando o sítio eletrônico da Secretaria de Comunicação Social do Estado do Rio de Janeiro verifica-se, em 18 de fevereiro de 2011, uma expectativa muito alvissareira no que se refere à visita: “Há dois anos, a comunidade da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, ganhou a segunda Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Estado, deixou para traz um passado marcado pela violência – internacionalmente conhecida através do filme que leva o seu nome – e renasceu. Hoje, o local se prepara para entrar mais uma vez para a história. No próximo domingo, os moradores da comunidade receberão a ilustre visita de um dos homens mais importantes do mundo, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que irá conferir de perto o sucesso da política de pacificação implantada pelo governo estadual”. 
Diante disto, pode-se sugerir que do presidente americano espera-se a incorporação de um papel afeito a São Tomé, pois cabe a ele a verificação in loco para conferir, crer e (a)provar a mudança apregoada. Para isso, entretanto, será necessária uma prévia operação visando à construção homogênea do sentido da regeneração anunciada. Com esta finalidade, a Cidade de Deus está sendo tratada, conforme revelam os meios de comunicação, a exemplo do Portal IG através da matéria intitulada “Cidade de Deus é ‘maquiada’ para receber Obama”. A notícia informa que, entre os trabalhos realizados no local por onde passará o convidado, está a conhecida ação de tapa-buracos, poda de árvores e pintura de grades. A praça, onde se espera que Obama assista “a algumas apresentações culturais e troque passes de futebol com meninos moradores da favela”, está sofrendo uma intervenção de ocultamento da ferrugem das grades através de uma pintura azul e de soldas sobre as partes quebradas. 
Um dos moradores ouvidos pelo portal vive há 35 anos na comunidade e informa que sua residência não está situada no percurso a ser feito pelo visitante. Ele reclama, há três meses, do esgoto que está entupido, dos buracos e das poças de água, mas suas reclamações não têm tido êxito junto aos órgãos públicos.
Os locais da comunidade a serem visitados, por sua vez, sofrerão uma espécie de “seqüestro”. O jornal Extra, em 18 de fevereiro, informa que o esquema de segurança inclui a ocupação, por policiais, das lajes próximas do percurso. Uma das moradoras ouvidas revela que os policiais têm batido à sua porta desde o dia 15 para “garantir espaço na laje, no terceiro piso do seu sobrado”. No dia do evento, ela “vai acordar cedo para receber os policiais, na casa em frente à quadra onde Obama vai aparecer”. Pelas informações, ela não parece queixosa, ao contrário disse que “pretende tirar uma foto de Obama de perto” e, segundo as suas palavras, os policiais “falaram que a minha laje é um ponto estratégico, mas não deram muitos detalhes”.  Contudo, cabe lembrar que ela, a dona da laje, não poderá usufruir da visão privilegiada. Elevada à condição de ponto de observação policial a laje se tornou inacessível à sua proprietária.
A situação descrita merece reflexão, pois, em sua sutileza, a “mini-cirurgia urbana” pode ser vista como um resumo ilustrativo das intervenções que “vêm do alto” e caem sobre os espaços sociais quase baldios, do ponto de vista de sua integração ao tecido cidadão.
A vinda do presidente americano é, muito mais do que uma chegada, uma partida disputadíssima na qual os olhos de Obama têm de ver um outro filme e, para tanto, os pontos a serem vistos devem conter as deixas simbólicas plantadas à moda de vida normal, sem buracos, com pinturas e, sobretudo, com toda a segurança. Desta passagem ficam silenciadas as marcas de um solo desejoso de ser alvo de políticas públicas e não apenas espaço aberto à sorte dos grandes eventos, afinal é difícil que raios e estrelas caiam muitas vezes no mesmo lugar.




Epílogo

É chegado o dia 19 de março, Obama chega ao Rio, vai à Cidade de Deus, mas não visita a UPP, deixando vã a razão maior de Estado para a sua ida a aquele espaço emblemático. Do feito histórico anunciado é suprimida a possibilidade de se “conferir de perto o sucesso da política de pacificação implantada pelo governo estadual”. É mantida, entretanto, a fantasia de ficar perto de Barack. Tanto esforço, tanta tinta, tanto ensaio e o espetáculo assume o gênero composto entre peça pregada e recitada. Mãos à obra: a Copa e a Olimpíada vêm aí!    



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