OS DESEJOS COLETIVOS E OS FLUXOS DA METRÓPOLE
Francisco Antônio Zorzo
Professor da UFBA
O modo como os movimentos grupais se manifestam varia de lugar para lugar dentro das grandes metrópoles. Uma questão que parece decisiva para Salvador é saber quais são os significados desses fluxos e seus recorrentes impactos simbólicos? O que representam no processo de renovação quanto à inserção de cada lugar nos fluxos da capital?
Para melhor compreender esse tema, pode-se partir de alguns acontecimentos selecionados que ocorrem em locais marcantes de Salvador, seja na Orla ou no interior da Baía de Todos os Santos. O problema é conhecer mais a fundo os fluxos que convergem por tais lugares e como se configuram seus movimentos. Para isso nada melhor, nesse momento, que tratar das festas que fecham o calendário de verão.
Para entender as modalidades específicas dos fluxos coletivos de Salvador basta comparar o que ocorre no Rio Vermelho, durante a festa que marca o bairro em fevereiro, com a que ocorre em outro ponto importante da cidade, no mês anterior, a do Bonfim.
Pode-se começar constatando como convergem nos dois bairros, intensamente, os fluxos urbanos. Nesses lugares de Salvador, em que autênticos modos de vida se cruzam, tem ocorrido a atração irresistível de uma gama de eventos. É importante constatar que, enquanto que, na festa do Bonfim, as pessoas atam o seu desejo no gradil do santuário, no caso da festa de 2 de Fevereiro, em reverência à Iemanjá, o voto é jogado no mar.
Na festa do Rio Vermelho o desejo flui de modo mais livre. A festa de Iemanjá ocorre defronte do oceano, em cujo gesto de investimento do desejo as flores são lançadas ao infinito. Os votos são remetidos para as profundezas e lonjuras do sublime desejo coletivo e individual. Partindo-se da idéia de que o que flui são os desejos coletivos da metrópole, nesse simples ato de devoção ocorre a manifestação explícita de uma modalidade do sentimento comunitário.
Esses são fluxos internos, que devem ser reconhecidos como tal, que marcam Salvador como uma cidade contemporânea conectada com suas tradições. Vale observar o caráter político que acompanha o registro simbólico do ato se volta para as demandas atuais no Bonfim e no Rio Vermelho. As festas de Oxalá e de Iemanjá abrem um aqui-e-agora interrogante que se volta para o infinito, para o horizonte marítimo em direção oriental, no caso da segunda, e para a vertical da sublimação, no caso da primeira. Ambos os desejos se voltam para um futuro melhor e para uma utópica região do mundo situada entre a África, a Europa, a Ásia e o além.
O desejo em viagem e transe dedicado à Iemanjá se distingue do desejo territorializante e extático ligado ao Senhor do Bonfim e a Oxalá. Gaston Bachelard falando sobre a poética do espaço, assegura que essas dimensões são as categorias filosóficas básicas do desejo. No caso da festa de 2 de fevereiro, na imagem do desejo lançado no espaço profundo do mar, libera-se o sujeito para a contemplação da grandeza das possibilidades da cultura e da subjetividade.
Vale remarcar que na festa de Iemanjá o desejo coletivo é investido, dentro de um contexto fulcral, segundo a modalidade do transe à beira-mar, enquanto que na festa do Bonfim, predomina o êxtase no ambiente do templo. Talvez não seja por acaso que no sítio do Rio Vermelho, específicas forças culturais e políticas confluem fortemente durante todo o ano, a cada noite de encontro coletivo. No caso das visitas à colina sagrada, a busca da ascensão do desejo e das superações tem um caráter mais pontual e vertical, com uma outra forma de intensidade cultural.
Convém notar que, quando se trata dos desejos coletivos, eles ultrapassam os anseios individuais e narcisistas de cada cidadão. Para nenhum turista botar defeito, Salvador é uma metrópole cujos habitantes sabem muito bem por onde anda o seu desejo e o explicitam, sob duas modalidades específicas, em suas performances públicas.
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