domingo, 21 de março de 2010

RESENHA DE LIVRO - Michel de CERTEAU. Artes de fazer. A invenção do cotidiano.

RESENHA DE LIVRO

CERTEAU, Michel de. Artes de fazer. A invenção do cotidiano. / L’inventio du quotidien – 1. arts de faire / Trad. Ephrain F Alves. Petrópolis, Vozes.

Resenhista – Vicente Deocleciano Moreira

Como chamei a atenção, faz oito dias, esta Resenha se concentrará, exclusivamente, no Capítulo VII, Caminhadas pela cidade, pois é aquele que mais tem a ver com o tema central do nosso Blog: a cidade. O capítulo começa assim:



“Do 110º andar do World Trade Center, ver Manhatan. Sob a bruma varrida pelo vento, a ilha urbana, mas no meio do mar, acorda os arranha-céus de Wall Street, abaixa-se em Greenwich, levanta de novo as cristas de Midtown, aquieta-se no Central Park e se encapela enfim para lá do Harlen.”
E, mais adiante:


“Subir até o alto do World Trade Center é o mesmo que ser arrebatado até o domínio da cidade. O corpo não está mais enlaçado pelas ruas que o fazem rodar e girar segundo um a lei anônima; nem possuído, jogador ou jogado, pelo rumor de tantas diferenças e pelo nervosismo do tráfego novaiorquino. Aquele que sobe até lá no alto foge à massa que carrega e tritura em si mesma toda identidade de autores ou de espectadores. Ícaro, acima dessas águas, pode agora ignorar as astúcias de Dédalo em labirintos móveis e sem fim. Sua elevação o transfigura em voyeur. Coloca-o à distância. Muda num texto que se tem diante de si, sob os olhos, o mundo que enfeitiçava e pelo qual se estava “possuído”. Ela permite lê-lo, ser um Olho solar, um olhar divino. Exaltação de uma pulsão escópica e gnóstica. Ser apenas este ponto que vê, eis a ficção do saber.

Será necessário depois de cair de novo no sombrio espaço onde circulam multidões que, visíveis lá do alto, em baixo não vêem? Queda de Ícaro. No 110º andar, em cartaz, semelhante a uma esfíngie, propõe um eigma ao pedestre por instantes transformado em visionário: It’s hard to be down when you´re up.”



Mais adiante:

“O World Trade Center é somente a mais monumental das figuras do urbanismo ocidental. A atopia-utopia do saber ótico leva consigo há muito tempo o projeto de superar e articular as contradições nascidas da aglomeração urbana.”


Nascido em 1925 (em Chambéry, Paris), Michel de Certeau – jesuíta de formação e erudito em Psicanálise, Filosofia e Ciências Sociais por consagração – morreu em 1986 e, portanto, não viveu para ver o 11 de setembro de 2001. Esses textos, que acabam de ser transcritos de uma de suas mais conhecidas obras (emoldura-lhes a erudição em Platão, Freud, Foucault ...), guardam a sete chaves a emoção da memória e o registro solene da eternidade. Se eternidade ainda é o que é alto e o que permanece desde o alto.


Andar, pela cidade, faz desse aprazível exercício uma enunciação. Enunciação pedestre. E mesmo que haja, para o transeunte comum, contradição entre o prazer e a ascese (ascese vem, do grego para o português, para nos oferecer a palavra exercício), imploro aos atletas e aos flâneurs para que, diferentes como são, digam uma só palavra ... e minha comparação será salva.


Que cidade é esta, tão utópica, tão urbanística, senão aquela definida pela produção de um espaço próprio, por uma não-tempo e pela criação de sí própria como um sujeito universal e anônimo. Se andamos, se caminhamos, é porque estamos privados de lugar e prenhes de vazios que (nós) o caminhante precisamos nominar, fazer bricolagens

Ver, entregar-se à paixão do escópico e da liberdade para transpor os obstáculos das ruas e calçadas e para reinventar-se reinventando a cidade, a cada passo.. Ser voyuer e não ceder. Ser criança e ainda se surpreender.


(NO PRÓXIMO DOMINGO, DIA 28 DE MARÇO, MINERAR A CIDADE EM "SARGENTO GETÚLIO", DE JOÃO UBALDO)

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