VIOLÊNCIA: DÁ UM TEMPO E TUDO FICA NATURAL
Leitura de fatos violentos publicados na mídia
Ano 10, nº 08, 22/03/10
Entre as variadas percepções relativas ao universo da violência há duas que, na aparência, se apresentam sob forma de oscilação. Diante de ocorrências sentidas como graves e extraordinárias, o pavor e a desorientação levam os indivíduos à produção de catarses baseadas em queixas e insatisfações heterogeneamente dirigidas. Quando, ao contrário, as ocorrências violentas são habituais, tem-se um temor discreto incorporado ao corpo e à mente e imposto por um clima de insegurança constante. Essa segunda forma de sentir costuma produzir alterações nos hábitos dos indivíduos que passam a adotar comportamentos considerados adequados às necessidades de proteção nos dias atuais. Se no primeiro caso é possível notar uma reação de intolerância em relação a determinados tipos de violência, no segundo, inversamente, os indivíduos se dotam de condições subjetivas e objetivas para suportarem a rotina de medo.
Esses dois pólos, entretanto, não devem ser vistos como definitivas referências dentro do imaginário da violência, especialmente pelo fato de se constatar um processo de migração na apreciação de feitos violentos do primeiro para o segundo pólo. O que um dia esteve contido no âmbito das ocorrências extraordinárias, a exemplo dos seqüestros, passa a ser considerado como fato normal em relação ao qual são desenvolvidos experimentos de proteção subjetivos e objetivos.
O jornal Folha de São Paulo de 8 de março de 2010 em seu caderno intitulado Cotidiano traz uma reportagem que sinaliza esse “trabalho” de atualização do imaginário dento do âmbito da proteção de condomínios de setores privilegiados da sociedade. Com o sugestivo título “Prédio troca porteiro ‘amigo’ por segurança” o jornal noticia a última forma de proteção que tem sido adotada por muitos condomínios da capital paulista.
Além da incorporação de equipamentos de vigilância como as guaritas blindadas, câmeras com central de monitoramento etc. a Folha informa sobre a ultrapassagem do cargo de porteiro. O lugar de um personagem simpático e conhecido por todos é substituído pelo posto do segurança. E agora, para o bem dos condôminos, este novo profissional não deve prestar favores como “ajudar um morador a levar compras ao elevador”. Agora ele não pode sair da guarita.
Conforme a matéria alguns porteiros fizeram curso para atuarem de acordo com o novo perfil. Para um empresário que oferece os cursos “não há mais espaço para aquele senhorzinho de idade que fica atrás do balcão lendo jornal, o mercado exige uma pessoa mais profissional”. Ele deve ter formação e, para tanto, há cursos de seis a dez horas realizados em um único dia, com valor entre R$ 30 a R$ 90. O diplomado sabe usar “rádios comunicadores, maneiras de abordar moradores e visitantes, controle de acesso a veículos, acompanhamento das câmeras de vigilância e até mesmo noções básicas de códigos Penal e Civil”.
Ao lado do declínio da profissão de porteiro encontram-se novidades na vida dos moradores. Eles agora passam por revistas constantes a cada entrada e saída do seu próprio endereço. Há casos em que os bagageiros dos veículos são revistados a cada vez que seus condutores pretendem adentrar a garagem; o morador que chega a pé ao condomínio deve mostrar a identidade, a senha de acesso e saber de cor o código de acesso ao elevador.
Toda essa revisão é coordenada por empresas que se especializaram na concepção deste novo tipo de serviço e muitas delas ofertam a mão-de-obra a um custo que supera em mais de 20% o valor do modelo de portaria que se encontra em declínio, e se o vigilante tiver curso reconhecido pela Polícia Federal o acréscimo chega a 45%.
Por trás destas novidades é insinuada a incorporação de riscos que um dia surgiram sem “respaldo” no âmbito das práticas de proteção cotidianas, amedrontando de modo agudo aquele grupo social. Agora estes indivíduos passaram a representar aqueles riscos, antes vistos como agudos, a partir do princípio de que os mesmos têm natureza crônica em torno da qual são concebidos produtos e serviços capazes de funcionar como mecanismos de convivência ofertados pelo mercado da proteção.
Eis um dos modos freqüentes de dotar a violência de uma funcionalidade para os negócios que giram e crescem em torno do medo. É também uma das vias que se colocam como opção ao desenvolvimento de lutas políticas amplas relacionadas com a busca de maior vigor da cidadania. Estas posições têm ensinado que a distância entre os dois pólos indicados no início dessa leitura é quase inexistente pois a naturalização das manifestações violentas tem sido uma questão de tempo ante a tendência de que com uma maior duração tudo é convergido para a normalidade.
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