AS CIDADES ABRAÇAM OS CEMITÁRIOS E AS INSTITUIÇÕES TOTAIS
I – Cidade e Cemitério: aquele abraço.
Vicente Deocleciano Moreira
vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com
FONTE DIRETA – Blog http://www.viverascidades.blogspot.com
Apesar de vivermos repetindo que ‘a morte faz parte da vida’ somos traídos, enquanto indivíduos, grupos e coletividades, pelas inúmeras justificativas, discursos e práticas rituais de evitação da morte. Desemborcamos os calçados e chinelos nossos e os das pessoas que conosco convivem. Quando nos referimos a uma pessoa falecida temos o cuidado de adicionar-lhe a ‘honraria’ finado ou finada antes do nome de batismo. “Essa noite, eu sonhei com Fulana (falecida); que Deus a tenha em sua glória”. “O finado Fulano (“Deus chame lá o que é que está chovendo”, “Deus o tenha muitos anos sem nenhum de nós” ...) sempre pensou assim”. “Querida, adorada é essa pessoa quando viva mas agora, depois de morta, ela lá eu cá” Prevalece a crença de que um ente querido possa vir buscar alguém que está vivo..
Nos velórios, cidade ou zona rural, o defunto está deitado com os pés apontados para a porta para que ele saia e jamais volte ao convívio com familiares e parentes vivos. Logo que despertamos de um sonho com uma pessoa falecida, dizemos coisas como: “Ele(a) que fique por lá”, “Deus guarde sua alma” e coisas assim.
Quando chegamos de um enterro imediatamente colocamos as roupas que usamos, no evento, no cesto de roupas sujas; é como no cemitério, a morte e os que lá estão sepultados contaminassem nossas roupas e que, por isso, poderíamos nos contaminar ou aos outros da família, amigos, vizinhos ... e todos correriam risco de morrer. Muitos são os que evitam olhar para o interior de uma loja funerária pelo horror que sentem em encarar os caixões. Ocidentais, elegemos a caveira como símbolo da morte. Não poderia ser diferente, a caveira e o esqueleto são ossos limpos é tudo o que de men os repugnante ficou da sujeira da decomposição e do apodrecimento bioquímicos das carnes e das vísceras. Agora, uma nova face: a face da suportável higienização do que um dia foi vida.
Mas não somente indivíduos e pequenos grupos têm por hábito desenvolver e difundir (geração após geração) técnicas de evitação da morte. Cidade também o fazem,ao longo dos desenhos feitos pelo seu caminhar histórico entre o céu e a terra. Nos primórdios, nos primeiros passos desse caminhar, a cidade, a gestão laica e religiosa da cidade se vê obrigada a construir uma “cidade” para os mortos. Afinal, cidades são povoadas por seres vivos. E seres vivos nascem, crescem, se reproduzem – ou não! – mas certamente têm morrido, morrem, morrerão. Ou estejam morrendo. O hospital cumpre seu destino de albergar e cuidar. Ao cemitério, cabe o papel de servir, se nos prendemos ao seu significado original grego, de lugar para descansar, repousar antes da partida final e sem volta. Entre humanos a situação se torna complexa. Isto porque, apesar de ‘vida’ e ‘morte’ serem que conceitos socialmente construídos, se concordamos com o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (1905 – 1980), somos “seres para a morte”.
“Seres para a morte” ... isso é tão difícil aceitar quanto parar de sonhar, de fazer projetos e promessas para o presente, para o futuro. Tão difícil de aceitar como internalizar a resposta de Sileno para Midas: “O que de melhor pode acontecer a um ser humano é não nascer, não ter nascido. Mas, para os que nasceram e estão vivos ainda, há uma segunda chance: morrer agora!”.
Cidades são obras dos seres humanos e jamais foram ou poderão ser diferentes deles. A gestão (laica ou religiosa) da cidade, em seus titubeantes passos iniciais, construiu cemitérios o mais afastado possível dos olhos e dos caminhos das pessoas. As irmandades religiosas católicas constroem seus cemitérios em lugares discretos ainda que na propriedade do templo ou convento. Os hospitais – desde então e ao menos até esses dias quentes de 2010 d.C – reservam, para a sala de velório, um lugar escondido, por onde as pessoas não costumam transitar, um espaço pouco prestigiado arquitetônica e socialmente.. Além de “seres para a morte”, segundo Sartre, sepultamos os mortos e somos seres apaixonados pelas incertezas da vida; daí não querermos saber da certeza da morte. Gostamos de “incertezas” e de viver: Diferentemente de Nietzsche (1844 – 1900), segundo o qual “a idéia do suicídio ajuda a atravessar uma noite difícil”, o ditado popular consola ao afirmar que “a pior vida do mundo é melhor do que morrer”.
Dinâmica, a cidade cresce e o cemitério que era distante fica, mais e mais , próximo. A cidade dos vivos frente a frente com a “cidade dos mortos”. Dinâmica, a cidade cresce para cima em espigões que parecem querer reeditar a história de Babel. Porém se um prédio (não precisa ser tão alto) é por algum infortúnio e para muitos desafortunados construído próximo a algum cemitério que os ‘olhos’ principais desse prédio (as janelas mais importantes, as das salas e dos quartos), que eles não olhem para o cemitério; na falta de outro jeito, a janela do sanitário ... bem, ainda vá lá; é alta para preservar a intimidade e privacidade de quem o utiliza.
Cemitérios criam, no seu entorno, solos desvalorizados economicamente. Construir, mesmo sem o dizer, um edifício com vistas para o cemitério é uma piada insólita e de mau gosto numa cidade como Salvado (Bahia – Brasil). Numa cidade como Salvador de tanto mar, uma quase São Luiz (Maranhão – Brasil) de tão quasilha (quase ilha) que é. Numa cidade em que o mar é uma moeda imobiliária, como acontece em outras cidades grandes costeiras.
Os desafortunados sobre que falei no penúltimo parágrafo, são as pessoas que, por causa do baixo valor dos solos próximos aos cemitérios, e na falta de outro lugar (a não ser as ruas e os viadutos) constroem ali suas precárias habitações, suas vidas de pobreza e abandono; aí, o medo dos mortos é., talvez, superado pelo medo de morrer de fome e de desabrigo.
Vale a pena utilizar o Google Earth sobre os cemitérios de sua cidade, e você verá como ela, com o tempo, terminou por abraçar a “cidade dos mortos”. Cidade e Cemitério, aquele abraço.
Um outro e bem diferente abraço para você.
Vicente.
FONTE DIRETA: Blog http://www.viverascidades.blogspot.com
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