segunda-feira, 15 de março de 2010

MACONDO ONDE É MESMO? (PARTE FINAL)

MACONDO ONDE É MESMO?
(PARTE FINAL)


Resenha Dupla dos livros:

GARCIA MARQUEZ, Gabriel. Cem anos de Solidão / Cien años de soledad. Trad. Eliane Zagury. Rio de Janeiro : O Globo, São Paulo : Folha de São Paulo, 2003.

QUEIROZ, Rachel de. - 1ª ed. – Rio de Janeiro : MEDIAfashion, 2008. (Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros: v.6)

Resenhista – Vicente Deocleciano Moreira


Freud e depois Lacan se utilizam dessa narrativa mitológica dos iroqueses para – pela via simbólica – formular e aprofundar respectivamente, a Teoria do “Parricídio Inicial” e, também, a fim de explicar a natureza de instituições como leis, o Direito, as censuras sociais e pessoais, a repressão policial ... enfim os diversos ‘nomes do pai’. A civilização é filha da culpa.
As leis, um dos nomes do ‘pai’, proíbem – sob pena da castração da nossa liberdade individual - que façamos “justiça com as próprias mãos”. Vale dizer proíbem que ocupemos o lugar do ‘pai’

Num jogo de futebol, o lugar do juiz não pode ser ocupado por nenhum dos 22 jogadores e nem mesmo pelos seus auxiliares (bandeirinhas), nem por gandulas, treinadores e diretores dos clubes ou quem quer que seja. . Querer, em vão, ocupar esse lugar, “dar testa” ao juiz, “se meter a besta” com o juiz, pode implicar em cartão vermelho, ou seja, em sangue, expulsão, em ‘morte’ enfim praticada pelo pai da horda, quer dizer, pelo juiz). O cartão amarelo é uma advertência ... para que o jogador não esqueça onde é seu ligar e seus limites. Ao dar cartão vermelho ou amarelo, o juiz (o pai, a lei, as normas) aponta o braço para cima.

Nesse esporte, chutar, espancar o adversário, quebrar-lhe a perna, segurar, dar –lhe um soco ... é “fazer justiça com as próprias mãos”. Só o juiz pode fazer justiça (ou injustiça).

Ao decretar pênalti, ele aponta o dedo para a marca para cumprimento da penalidade máxima defronte da trave. Ao reconhecer o gol ou o final do jogo, o juiz aponta o dedo para o centro do campo. O braço, o dedo são seus falos simbólicos. Tanto quanto xingar a mãe do juiz, um jogador comete infração grave quando coloca, aponta o dedo, em riste, diante do rosto do juiz; botar o dedo na cara do juiz. É caso de infração sujeita a cartão vermelho, que se traduz na expulsão do infrator dos limites do campo, da ‘vida’. Só uma pessoa pode apontar o dedo ou usar o apito (dois falos simbólicos) para alguém ou para alguma coisa ou lugar: o juiz, o ‘pai’ simbólico.

Observem que um jogador expulso – justa ou injustamente não importa! – não pode ficar no banco de reservas, não pode permanecer na mesma linha geométrica e simbólica dos demais, dos que permaneceram ‘vivos’. O atleta expulso vai para os vestiários, que ficam no subsolo, numa espécie – diríamos - de ‘catacumbas’. O juiz do futebol é o “pau enorme nosso pai” que manda no campo. O dito popular está certo: “manda quem pode, obedece quem tem juízo.”. O jogador não pode “se meter a besta” com o juiz. Bestas não têm juízo, não têm discernimento moral. Bestas são construções imaginárias cujo metade do corpo é humana e a outra animal: ... lobis-omem ... mino-tauro ...centauros ... bestas não são seres humanos integrais.

Vem, também ao nosso socorro a advertência do cantor e compositor Chico César (“Benazir”):


“não aponte o dedo
para benazir butho
seu puto
ela está de luto
pela morte do pai
não aponte o dedo
para benazir
esse dedo em riste
esse medo triste
é você
benazir resiste
o olho que existe
é o que vê”



Claro. Benazir Bhutto (1953-2007) quando estava viva e exercia a presidência do Paquistão, tinha o falo simbólico (o poder) que lhe era conferido por esse exercício. Nessa condição, só ela poderia ‘apontar o dedo’ para alguém. “Seu puto”: Putto (italiano) significa (em português) criança, ou seja, “não tem juízo”. Para sermos considerados seres humanos, temos que estar sempre de luto pela morte do ‘pai’.


Perguntando novamente: José Arcádio Buendía é o ‘pai da horda’ , o “pau enorme nosso pai”, num ‘rio’ chamado Macondo em “Cem anos de solidão”?



O lugar do pai (do falo simbólico de José Arcádio Buendía) não poderia ser ocupado; mesmo que esse lugar fosse o ‘vazio’ deixado por José Arcádio Buendía; mesmo que esse lugar seja a canoa deixada pelo pai para que o filho a ocupe, doravante ... e o filho foge desse fado impossível ... foge do ‘cartão vermelho’ da morte, como no conto “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa (“Primeiras Estórias”). Quando Buendía morre, o fato é ‘comemorado’ pela explosão de flores amarelas, flores com a cor que, geralmente, simboliza a alegria. O poder fálico do patriarca atravessa Macondo mesmo depois do final do ‘jogo bélico’, mesmo dos últimos dias do povoado.

Macondo e sua gente, já haviam sido vitimados pela epidemia de insônia, e agora estavam adormecidos, para sempre e em paz para sempre. Uma guerra fatal que deixa três mil mortos. “Quando as pessoas adormecem” – diz Mario Quintana - “é que as coisas acordam, no silêncio da paz recuperada." Macondo daí então passa a ser um lugar e sua gente passa a ser de um lugar, no despertar da humanidade. “Nós não somos de um lugar enquanto não há um morto enterrado nele” dissera outrora José Arcádio Buendía no seu ato da criação do mundo.

Macondo é algum povoado da latinoamérica?, É o apogeu e a decadência do colonialismo europeu/espanhol? Denuncia o patriarcado e o machismo latinos nas desiguais relações de gênero? Garcia Marquez critica o imperialismo que vitimou as nações da América Latina?. Não vou e não gosto de andar nesses tipos de trilhas interpretativas tão fáceis e confortáveis como as portas largas que, segundo a Bíblia, conduzem ao inferno.

Prefiro ousar e correr o risco de tentar fazer minhas a crítica e a ‘ira santa’ de Goethe (em texto por ele escrito no dia 15 de outubro de 1825 e citado por Gramsci /“Cartas do Cárcere”):

“Até hoje o mundo acreditava no heroísmo de uma Lucrécia ou de um Muzio Scevola, inflamando-se e entusiasmando-se com estes exemplos. Todavia eis que agora a crítica histórica nos diz que aqueles personagens nunca viveram, e que devemos considerá-los como símbolos ou fábulas que o grande espírito dos romanos ideou.
Mas para que nos serve tão miserável verdade! E se os romanos foram grandes o bastante para imaginar coisa semelhante, nós devemos ser grandes pelo menos o bastante para acreditar neles”
Macondo é várias cidades e povoados no mundo todo, mas essas cidades e povoados não são Macondo. Macondo é Canudos, embora Canudos não seja Macondo. Macondo está mesmo onde ele não está. Com estas idéias na cabeça e mil olhos na cabeça. Rios são estradas … mesmo quando a seca os expulsa da terra.Existe algum ‘pai da horda’, algum “pau enorme nosso pai” nos ‘rios’ da trajetória de Maria Moura e sua gente, em “Memorial de Maria Moura”? Sim, a própria Maria Moura, mulher corajosa, toda poderosa, vestida com roupas masculinas, fálica que manda em todos os homens que a acompanham … e obedecem com temor, medo e respeito. Todo o exemplo acerca do papel (paterno, fálico) do juiz de futebol, que apresentamos anteriormente, vale mutatis mutandi para Maria Moura e seu séquito. Quem ler, verá e crerá.

Séquito é uma palavra feliz na nossa reflexão. Dentre as três pessoas a quem Rachel de Queiroz dedica Memorial … aparece, em primeiro lugar, “À. S.M. ELISABETH I, Rainha da Inglaterra (1533-1603), pela inspiração”. Maria Moura e a Rainha da Inglaterra … tão distantes e tão próximas e tão “aparentadas”.

Vamos conhecer um pouco Sua Majestade Elisabeth I, última monarca da dinastia dos Tudor. Rainha da Inglaterra e da Irlanda, nasceu em Greenwich (próximo a Londres) com o nome Izabel (de batismo) em 1533 e morreu em 1603. Era filha de Henrique VIII e Ana Bolena (segunda esposa). A mãe morreu decapitada quando ela tinha 3 anos. Quando retorna à Corte (depois de se aperfeiçoar em idiomas, música e dança), pelas mãos de Catherine Parr (sexta esposa de seu pai) chega ao trono da Inglaterra (1558), apóps a morte de seus meio-irmãos Eduardo VI e Maria I. É sob seu reinado que a Inglaterra torna-se potência mundial colonizadora. Enérgica e autoritária, implanta definitivamente a Igreja Anglicana, persegue puritanos e católicos, manda decapitar Maria Stuart, sua prima e rival, em 1587. Desenvolve as artes, a literatura, a economia (a Bolsa de Londres passa a ser o centro financeiro da Europa), declara guerra ao rei católico Felipe II (que tentava impedir o avanço inglês em terras espanholas), impulsiona o comércio (Companhia das Índias, criada em 1600). É de seu tempo o dramaturgo William Shakespeare e outras celebridades do período chamado elizabetano. Não se casou, daí ter passado para a história com o apelido de “Rainha Virgem”.

Do outro lado do Atlântico, a Rainha Maria Moura, o ‘pai da horda’ e o poder fálico de vida e morte de suas facas e armas de fogo, também não perdoava inimigos … desde o padrasto que contra ela, praticou abuso sexual e, pelo atrevimento, pagou com a vida. Maria Moura é uma encarnação literária da “Rainha Virgem”? Separadas por um vasto mar salgado e por mais de cem anos, o que há de comum entre elas?

Rachel de Queiroz, que faria cem anos em 2010, só concluiu esta sua obra mais importante no “Rio [de Janeiro] em 22 de janeiro de 1992, às onze da manhã” É com esta referência (local, data, hora e turno) que, no final da última página, a autora termina Memorial de Maria Moura. De papel passado.

Há dois Macondos: o do patriarca e rei José Arcádio Buendía e o da matriarca e rainha Maria Moura. Bacamartes em riste, a diferença é que, no primeiro Macondo, o rio chamado estrada é visto sob uma cortina brumosa. No segundo (Maria Moura), vista do rio chamado estrada, a cidade é uma névoa perigosa e ameaçadora. O resto é diferente por demais.

Em ambos os monarcas, a loucura os domina para fugirem do ser a “besta sadia” e para buscar a memória (a morte do 'pai') e a identidade (ser o 'pai' post mortem). De serem o que são, de não esquecer e de não serem esquecidos.


Quem ler, verá e crerá.


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(NO PRÓXIMO DOMINHO, DIA 21 DE MARÇO, RESENHAREMOS “A INVENÇÃO DO COTIDIANO: 1 - ARTES DO FAZER”, de MICHEL DE CERTEAU.

Terá destaque exclusivo, o Capítulo VII, ‘Caminhadas pela Cidade”. O capítulo começa com a seguinte frase, que remete a um totem urbano que deixou de existir em 11 de setembro de 2001, mas que ainda estava vivo quando o autor o citou: “Do 110º andar do World Trade Center, ver Manhatan”

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