domingo, 21 de março de 2010

MEMÓRIA E HIPOMNÉSIA NOS PROJETOS DE VIDA ... (FINAL)

CONSIDERAÇÕES FINAIS


A realização de um projeto é sempre cercada de incerteza porque depende de muitos fatores, fatores estes que nem sempre estão sob nosso controle. Além disso, o grau de compromisso na realização de um projeto pode variar influenciando a sua execução ou realização.


Neste sentido, passamos a uma breve análise de alguns projetos construídos (em 1999) e não realizados (em 2002), tentando uma compreensão aproximada da evidência de não ter sido realizado, mas de ter estado sempre sob alguma perspectiva de realização.


Retomando os depoimentos das estrelas (MACEDO, 2000), Betegelse queria, em 1999,“estudar e trabalhar em computador”. Depois quando o encontramos (2002), estava trabalhando como ajudante de pedreiro e assim nos justificou a não realização do seu projeto: “...chego muito cansado do trabalho, não tenho condição de ir à escola... é muito cansativo “bater massa” até 5, 6 horas da tarde, talvez no próximo ano eu volte à escola”.


Em 1999, Avior, tinha como sonho, como projeto de vida “ser piloto de avião”. Três anos depois, reconhecia a sua situação: “falta interesse, precisa de muito estudo, e não estou estudando...”


Neste sentido recorremos a Baldivieso e Perotto (1995), quando referem que o projeto de vida pode ser platônico, ou seja, não vai além da auto-ilusão, o salto para o futuro é fictício.


Ao analisarmos a fala de Avior, vemos que ele não está fazendo nada para a concretização do seu projeto. Capella sonhava “ser garçon”. Mas reconheceu (2002) a sua falta de motivação, o pouco interesse em realizar o seu projeto: “não tô fazendo nada”.


Para a concretização do projeto de vida deve existir uma relação muito estreita entre as estruturas representativas, executivas e motivacionais. E nos perguntamos: em meio a tantas dificuldades, tantas frustrações, como essas três estruturas funcionariam para mobilizar internamente estes adolescentes?


Apesar de tudo, os sonhos não acabaram. Não consideramos que esses adolescentes fracassaram, ao contrário eles são jovens resilientes que conseguiram superar os efeitos danosos da adversidade e ainda não perderam a esperança. Seguem em frente, lutando, acreditando num futuro melhor. Não estão na saudade, nas lamentações do tempo “perdido” – são capazes de construir a manhã desejada.


Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói
A manhã desejada
Aquele que sabe que é negro
o coro da gente
E segura a batida da vida o ano inteiro
Aquele que sabe o sufoco de um jogo tão duro
E apesar dos pesares ainda se orgulha de ser brasileiro
Aquele que sai da batalha
Entra no botequim, pede uma cerva gelada
E agita na mesa logo uma batucada
Aquele que manda o pagode
E sacode a poeira suada da luta e faz a brincadeira
Pois o resto é besteira
E nós estamos pelai ...


(Gonzaguinha)



Passaram-se mais de dez anos (estamos em 2010) desde a promulgação do ECA e para que este seja efetivamente aplicado o Brasil tem ainda um longo caminho a percorrer. Enquanto isso, milhares de crianças e adolescentes continuam sem ter acesso à alimentação, escola, moradia, lazer, sendo obrigadas a trabalhar muito cedo e sob condições extremamente desgastantes, insalubres, inseguras, violando os direitos mais elementares preconizados pelo Estatuto.



Dos 33 adolescentes estudados em 1999 conseguimos localizar e entrevistar 20, ou seja, 66,6%. Em 2002, 65/% encontra-se entre 19 e 21 anos, considerados adultos, se tomarmos como parâmetro o ECA. Quanto à escolaridade apenas 10% conseguiram ascender ao ensino médio e 60% continuaram morando na instituição. No que diz respeito ao local de trabalho, 70% desses adolescentes trabalhavam na Fazenda do Menor ou seja, no próprio local de moradia e 10% na UEFS. Foram absorvidos na fábrica de bolas, agricultura, padaria, serviços gerais, instrutor de banda e pecuária e apenas 10% como office-boy na UEFS; no que tange a remuneração encontramos apenas 10% que ganhavam um salário mínimo (2002).


Quando nos reportamos à realização do projeto de vida, apenas 20% dos adolescentes lembravam, em 2002, do projeto de vida construído em 1999.; 65% dos adolescentes consideravam estar realizando seu próprio projeto de vida, conclusão que chegamos a partir dos seguintes depoimentos: “Não estou estudando no momento, mas quero me formar em Direito”. (Shaula)


“...tô lutando prá comprar uma casa”

Tem esposa e uma filha de um ano e dois meses. “A partir do momento que comecei a trabalhar já comecei realizando o meu sonho ... Deus é maravilhoso, sempre na dificuldade não falta...”(Rigel)


Sirius tem companheira e uma filha, faz biscate (limpa fossas, capina) falou das dificuldades que vinha enfrentando para arranjar um emprego, e apesar de tudo, considera estar realizando o seu projeto pois nos dizia: “...continuo sendo honesto e trabalhador”.

Quanto a Deneb e Hamal, vimos que trabalham na fábrica de bola na FAMFS e consideram estar realizando o seu projeto de vida pois estão numa área que tem a ver com esportes e Deneb entusiasmado nos dizia: “...estava treinando mas parei, fraturei o dedo, tava até inscrito no campeonato feirense”...

Kochab, Spica, Castor, Hadar, estão trabalhando na Fazenda do Menor, na fábrica de bola, agricultura, ou como office-boy da UEFS, e realizam seu projeto, ”estudando”, “se dedicando ao trabalho” ou “tomando curso”.

Os resultados dessa pesquisa apontam para a necessidade de continuidade desse estudo, por entendermos que a construção é sempre um processo inacabado e tratando-se da realização de projeto de vida, é um constante “ir e vir”, “fazer e refazer”, próprios do dinamismo da vida.


Numa (possível) retomada deste trabalho e de seus sujeitos de pesquisa (esses adolescentes), oxalá nos lembremos de perguntar aos jovens, às nossas estrelas, o que – afinal – eles vêm entendendo, desde sempre, por projeto de vida (?)




REFERÊNCIAS


ABERASTURY, A. & KNOBEL, M. Adolescência normal: Um enfoque psicanalítico. Tradução de Suzana Maria G. Ballve. 8.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

BALDIVIESO, Laura E. Y. PEROTTO, Pier Carlo. Prevención y Proyecto de vida. In: La Salud del adolescente y del joven. OPS/OMS. Publicación Científica. n.552. 1995. p.36-45.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução por Luís Antônio Reto e Augusto Pinheiro. Lisboa: Edições 70, 1977.

BRASIL, Ministério da Saúde. Ministério da Criança. Projeto Minha Gente. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1991.

CAMPBELL, Robert J. Dicionário de Psiquiatria. Tradução de Alvares Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

CAMPOS, Angela V. D. de S. O menor institucionalizado: um desafio para a sociedade. Petrópolis: Vozes, 1984.

DESCARTES. Discurso do Método. As paixões da alma. Tradução Newton de Macedo. 2.ed. Lisboa: Sá da Costa, 1976.

FERREIRA, Tereza de S. Axé, menino! Salvador: Tereza de Sá, 1994.

GONÇALVES DE ASSIS, Simone. Traçando caminhos em uma sociedade violenta: a vida de jovens infratores e de seus irmãos não infratores. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1999.

LÜDKE, M., ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.

MACEDO, Edna Lucia do Nascimento. Projeto de Vida do Adolescente Institucionalizado. O caso: a Fazenda do Menor. 2000, 232p. (Dissertação de Mestrado) - Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana.

OSORIO, Luiz C. Adolescente hoje. Rio Grande do Sul: Artes Médicas, 1989.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Tradução de José O. de A. Marques. São Paulo: UNICAMP, 1995.

SILVA, Roberto da. Os filhos do governo: a formação da identidade criminosa em crianças órfãs e abandonadas. 1996, 253p. (Dissertação de Mestrado) - São Paulo: Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.

TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

VAINSENCHER, Semira A. O projeto de vida do menor institucionalizado. Recife: UNICEF, 1989.

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