O terremoto no centro de São Paulo
Marta Suplicy
(Transcrito do jornal Folha de São Paulo. São Paulo, quarta-feira, 17 de março de 2010., p. A3)
Fica claro nessa tragédia que se tornou o centro de São Paulo que ela é produzida por ação humana, pelo despreparo da atual gestão. Estes são dias tristes, em que países do nosso continente vivem a tragédia que desastres da natureza podem impor a uma sociedade. Solidarizamo-nos da maneira mais intensa com nossos irmãos haitianos e chilenos, que precisam enfrentar enorme desafio para refazer seus mundos.
Mas é importante lembrar que São Paulo, nossa cidade, também vive momentos dramáticos e que afetam profundamente a muitos dos que aqui vivem, direta ou indiretamente.
E, para tornar essa situação ainda mais triste, o que vivemos aqui é consequência de ações e omissões humanas. Nosso desastre, diferentemente do que acontece no Haiti ou no Chile, foi criado aqui mesmo.
Como explicar que um universo estimado em aproximadamente 650 pessoas sem lugar nos abrigos em 2002 tenha se multiplicado e se transformado hoje em um mundo de cerca de 6.000 pessoas sem ter lugar para onde ir? São pessoas que vagueiam pelas ruas do centro, sob viadutos, expondo sua miséria diante de nossos olhos, onde quer que olhemos nessa São Paulo de 2010. Essas pessoas não são importantes por não terem renda, emprego, domicílio?
Quem, de fato, se preocupa com uma cidade, se preocupa com o todo, jamais só com as partes, em especial as mais privilegiadas. Por isso mesmo, uma cidade digna busca o bem comum, cria programas que igualem ou reduzam as desigualdades. Isso não se faz para alguns. Se faz porque todos vivem a cidade, todos precisam de uma cidade mais humana.
Não é assim que pensa a atual administração, e as consequências são desastrosas, mesmo que não haitianas -ainda.
Como explicar de outra maneira que a maravilhosa Oficina Boracea tenha sido desativada por quem hoje governa São Paulo? Numa área de 17 mil m2, eram atendidas 2.000 pessoas por dia: abrigo, refeição, telecentro, atendimento especial para idosos, oficinas profissionalizantes e até canil para os carroceiros. Sim, a prefeitura via os carroceiros como pessoas com direitos, e, como eles tinham cachorros e esses cachorros eram importantes para eles, o abrigo incluía canil. Quem pensa assim pensa no todo e no bem para todos. É isso o que vemos na cidade hoje?
Havia um conjunto de ações voltados à emancipação e à proteção de 490.401 famílias na cidade. O que vemos agora é que o Renda Mínima, que, somado a mais benefícios sociais (Bolsa Família, Bolsa Escola e Renda Cidadã, sem dupla contagem, atendia um universo de 323.792 famílias, hoje deixa de atender muitos.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, 327.188 famílias pobres da cidade poderiam estar recebendo o benefício hoje. Mas só 169 mil famílias recebem. Motivo: a prefeitura não cadastrou as famílias pobres que teriam direito. Pior, deixou de atualizar o cadastro das que recebiam o benefício e, com isso, 65.300 famílias que recebiam o Bolsa Família tiveram o benefício cancelado.
Bolsa Trabalho e Começar de Novo foram extintos. Vemos o Bolsa Aluguel funcionando apenas por exigência do Ministério Público. Vemos CEUs deixando de ser construídos e com os sistemas de inclusão social para a comunidade reduzidos.
O que fica claro nessa tragédia que se tornou o centro de São Paulo é que ela é produzida por ação humana, pelo despreparo da gestão Serra-Kassab para o social. Como diz a pesquisadora Camila Giorgetti em reportagem desta Folha (1º/3), a inadequação dos programas sociais desenvolvidos atualmente pelo poder público é a principal causa do fenômeno do aumento de moradores de rua em SP.
O que afinal pretende quem desmantela bem-sucedidos programas sociais ou abandona um empréstimo de US$ 100 milhões do BID, que beneficiaria profundamente a cidade, permitindo a recuperação de vários prédios para habitação popular, a construção de dois piscinões, no centro, além do resgate de áreas degradadas? Em nome do que isso acontece, além da ganância, da especulação imobiliária e do pouco se importar com a situação dos que têm menos?
A lição que fica: a recuperação do centro de uma cidade implica soluções para os mais frágeis, criar habitação para todos os níveis sociais, utilizar com determinação e ousadia os recursos disponíveis para a melhoria da qualidade de vida dentro de projetos criativos e inovadores.
Os problemas do centro podem parecer localizados e de alguns, para alguns. Mas eles atingem a todos, independentemente de onde vivam, do que pensem, de em quem votem. Diante da indignidade e do sofrimento de uns, sofrem todos os que pensam e sentem a cidade como algo vivo, para todas as pessoas. Em especial em uma cidade criada por todos, para todos, como essa nossa São Paulo.
MARTA SUPLICY foi prefeita da cidade de São Paulo pelo PT (2001-2004) e ministra do Turismo (2007-2008).
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