AGUAONIA OCULAR DE UMA CIDADE CEGA (2)
SECA, AGRESSÕES AMBIENTAIS E QUALIDADE DE VIDA EM
FEIRA DE SANTANA (BAHIA) - SÉCULO XIX - SÉCULO XX
(CONTINUAÇÃO)
Vicente Deocleciano Moreira
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Nos momentos mais agudos da seca, não faltava.a solidariedade de religiosos e outros abnegados, a exemplo do Padre Cupertino.
De pessoa que o. conheceu e privo.u quando. vigário. de Camisão., ouvimos. que grande seca de 1898, a casa do.padre Cupertino. era a casa dos flagelados. Ali se alimentavam levas e levas de famintas. E, vezes houve, em que, esgotadas todas as pro.visões da casa acolhedora, de portas abertas para as que passavam batidos pela infelicidade, o. bom, o. velho, o. caridoso. sacerdote curtiu fome para que não. soffressem aqueles que só a pão a pedir conseguiam viver (FOLHA DO NORTE, 1940).
A chuva era a graça que todos queriam alcançar; enquanto ela não vinha usava-se e bebia-se, de qualquer modo, qualquer tipo de água. As crianças eram as maiores vítimas desses tempos difíceis. São, ainda de Spix e Martius, as seguintes palavras:
Encontramos alguns mo radares ansiosamente ocupados em colher água das cavidades formadas na base das folhas do. ananás silvestre. Essa água, embora viciada par insetos e ovo.s de rãs, era uma delícia para esses desgraçados sertanejos. (SPIX e MARTHIUS apud MOREIRA,1993).
Para que caíssem as chuvas, fazia-se de tudo: procissões, orações, missas, cultos, promessas... Em inícios de 1899, tangidos pela seca e pela mística de final de século, uma polêmica agitou a vida dos feirenses. Divergiam sobre o local onde deveria ser recolocado o cruzeiro da igreja do Senhor dos Passos, a fim de que caíssem chuvas sobre a região. Radicalizaram a ponto de a cruz, finalmente, retomar ao interior da igreja. Perderam os dois lados da contenda: aqueles que queriam a cruz na praça João Pedreira (próxima ao templo) e os defensores de sua instalação ao lado da igreja. Para assinalar o episódio, em 12 de fevereiro de 1899, O Propulsar publicou os seguintes versos de Campo.nê, pseudônimo do poeta popular Assis Tavares:
De Herodes para Pilato.s Andastes, meu bo.m Jesus!
No. mesmo. jo.go. d' empurra Anda aqui a vo.ssa cruz!
Na Praça Jo.ão. Pedreira Querem, uns, a cruz plantar!
Ao. lado. de vo.ssa igreja Mandam-na, o.utros deitar!
Foi recolhida à igreja!
Para acabar a discórdia,
Resolvei esta questão.,
Mandando. chover até
Que vos implorem perdão.!.
Era a aguaonia de uma cidade - um "mísero povoado"- que vivia, secamente e sob calor intenso, a olhar algum sinal de chuva num céu azul-desmaiado, pálido e de poucas promessas de nuvens cinzentas e de aves como os urubus que, no conhecimento popular, anunciavam chuvas. Na falta de perspectivas de chuvas, os urubus se limitavam a denunciar a existência de animais mortos, de que se alimentavam.
Em meio à agonia ocular de uma Feira de Santana cega, as fontes e nascentes se constituíam na esperança de dias melhores, para a população e seus interesses, e de solução ime... diata para problemas causados pelas longas estiagens. As fontes do VaIado, do Tanque da Nação, do Mato, Prato Raso, Lago_a Grande, Lagoa Salgada e tantas outras têm muito a contar como testemunhos oculares (olhos d' água) da história ambiental e sanitária qe Feira de Santana. A seguir, nos dedicaremos a apresentar alguns aspectos desses importantes mananciais.
Fonte do Vaiado e Tanque da Nação
A Fonte do VaIado localizava-se na antiga Fazenda Valado. Em 1880, Eduardo Pires Ramos e Raimundo Barbosa de Souza solicitaram e obtiveram concessão para explorar as fontes do Valado (ou F ante do. Alambique) e da Nação (também conhecida como F ante do. Calumbi). Em 1892, a Câmara de Vereadores aprovou por unanimidade,
Desobstruir a cisterna denominada fonte da Nação. a qual apesar de já muito. profunda não. podem [ilegível] procurar a superfície pela grande camada de lama existente; acreditando. que co.m pequeno. trabalho. dará a mencionada fonte a jorrar d' agua; e aonde com facilidade poder-se- ha abastecer grande quantidade .da população. desta cidade (FEIRA DE SANTANA, 1892)
Quando, aqui e ali, secavam os poços abertos pela população, freneticamente uma multidão corria - último recurso - para a Fonte do VaIado, cuja água era tida como de boa qualidade.
Alli, no. principal manancial desta cidade, vê-se continuamente, de manhã, à noite um grupo. enorme: gente de to.da a parte até de mais de lego.a de distância, em torno. aquella fonte, esperando. a sua vez para apanhar o. preciosa líquido., que sahe por pequeno. e único. orifício., em tênue fio. que dia a dia vae diminuindo.. Mas junto. deste orifício. só ha lugar para uma vasilha pequena; e quando. o. venturoso. dono. desta leva-a cheia à boca do. pote vasio., outros braços exhibindo. cuias, canecas e capas, lutando. e se confundindo., conquistam á passe do desejado. logar, tendo. o. venturoso. dano do pote de esperar outra ocasião propicia para continuar a sua tarefa bruscamente interrompida.
Dahi nascem desordens momentâneas e intermitentes, e na luta, a cuia parte-se, o copo quebra-se, salta o caneco, ficando a aza, o punho coiltrha-se, impera o soco, o grito, a blasphemia, a confusão enfim (O PROPULSOR, 1898).
Era o retrato fiel da aguaonia dos feirenses, os quais reivindicavam do Poder Público não somente a resolução de atritos entre populares à beira das fontes, na disputa p'or uma gota d' água. Pressionavam as autoridades para que destinas- sem, aos corpos d'água, serviços de limpeza. e obras em geral.
O Tanque da Nação - que atendia as necessidades dos humanos, cavalos, gado e dos porcos - era alvo de pleitos de higiene pública e de medidas preventivas contra doenças.
Esta alli mesmo"perto das duas fontes o tanque de ver- .
tentes inesgotáveis, e que, por falta de asseio, tornou-se a immundice de um viveiro de micróbios vorazes, feras terríveis, capazes de roer qualquer organismo, embora do irracional. " " Limpai aquelle tanque rasgando a velha trincheira de barro, deixando passar atravez a multidão microscópica! 1irai a lama e aquella vegetação, cujas raízes em bucham as chrystalinas vertentes; mandai depois construir uma muralha decente e já civilisada, de boa alvenaria, com torneiras na sua parte externa para a serventia pública, e Deus vos abençoará (O PROPULSOR, 1898),
Mas, logo, a Fonte do VaIado começava a dar sinais de exaustão.
A Distillação do Vallado não pode mais fornecer; o Vallado está quase exgotado e assim outros mananciaes que forneciam-nos água. Grande parte das cisternas das casas particulares seccaram completçzmente. E nesta desesperadora alternativa está o povo, só contem plantando o movimento das nuvens à esperadas chuvas, único meio para debelar a crise (O PROPULSOR, 1899).
Do desabastecimento e da precariedade generalizada impostos pela seca, se aproveitavam os atravessadores para controlar o mercado e exorbitar nos preços dos gêneros alimentícios. Da crescente exigüidade da Fonte do Valado usufruíam os aguadeiros que elevavam, sem limites, os preços dos barris de água tirada das lagoas e fontes e vendidas sobre lombo de burros, de casa em casa. Esses mananciais, a exemplo do Tanque da Nação, tinham a qualidade da água comprometida pelos esgotos a céu aberto que neles desembocavam, pelo lixo e pela presença de animais sedentos e necessitados de banho e água fria. Cobravam-se providências não só dos poderes públicos, mas também da iniciativa privada. De ambas as instâncias, reivindicava-se, sobretudo, a construção de açudes numa região considerada propícia para esse tipo de obra contra a seca. Sofriam os aguadeiros e também as lavadeiras que tinham nos aqüíferos sua principal fonte de sobrevivência.
(CONTINUA AMANHÃ, QUINTA – FEIRA, DIA 25 DE MARÇO)
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