quinta-feira, 4 de março de 2010

FEIRA DE SÃO JOAQUIM (CONTINUAÇÃO)


MOREIRA, Vicente Deocleciano – LAUDO ANTROPOLÓGICO DA FEIRA DE SÃO JOAQUIM – SALVADOR – BAHIA. Brasília – DF, República Federativa do Brasil, Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, janeiro de 2005.



SALVAR OS SAVEIROS


Quando o “mau aspecto” das barracas e os odores “ indesejáveis” de peixe e outros produtos, apesar dos esforços da Câmara para organizar a feira e “melhorar” a situação, começam a incomodar os moradores das Portas do Carmo (Terreiro de Jesus) - área residencial de famílias “finas” e ricas – a feira ali situada é extinta. Como o peixe tem o “poder” de atrair outros produtos, a população passa a contar com a chamada “Feirinha do Peixe” ... exatamente nas imediações da igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, onde os pescadores moravam, ancoravam seus barcos, salgavam os peixes ... enfim trabalhavam ...já a algum tempo.

A localização das mais importantes feiras populares de Salvador - “Feirinha do Peixe”, Feira do Sete, Água de Meninos ... São Joaquim sempre ocorreu à linha do mar e em terras a ele conquistadas.


O ABACAXI TÁ DOCINHO, MOÇA. FAÇO DOIS POR TRÊS REAIS.


A Feira das Sete Portas, distante do mar, é sem dúvida importante, mas não se constitui exceção, porque não nasceu como feira, propriamente, e sim a partir de um mercado (por volta de 1930) cujas portas (versão original), imitando a arquitetura dos mercados antigos europeus, eram numeradas de um a sete.


VAI QUERER ALHO AÍ, MEU TIO?


A Feira do Japão, existe desde 1965, é abastecida em grande monta pela Feira de São Joaquim e tem especial importância para o bairro em que está situada, a Liberdade – considerado o de maior população negra de Salvador. Localizado a dezenas de metros acima do nível do mar, de alguns trechos deste bairro, (como por exemplo do Shopping Liberdade) vê-se o mar, a Baía de Todos os Santos e, num quadrante panorâmico, a própria Feira de São Joaquim

O mar,
Quando quebra na praia,
É bonito,
É bonito
.
(Dorival Caimmy,compositor baiano)


Ter o mar quebrando na praia representou não apenas um privilégio estético ou da natureza (o habitat do peixe, por exemplo), mas também um condicionante histórico e econômico em última instância: A localização debruçada sobre o mar se deveu, porém, não só à proximidade do habitat do peixe, mas também à comodidade do desembarque de mercadorias – produzidas ou escoadas desde Itaparica e outras ilhas, e de diversas localidades do Recôncavo – dos saveiros (e outros tipos de embarcações) diretamente na veia e nas artérias da própria feira.

Como uma feira banhada pelo mar pode viver sem vender peixes?


BOTE TAMBÉM UNS GRAUDINHOS, CUMPADE!



Os saveiros têm forte presença na obra de Jorge Amado: eles estão por merecer estudos que o situem no interior da obra deste escritor baiano. É dentro de um saveiro, por exemplo, que Quincas Berro d’água faz ecoar por toda a baía e Salvador seu grito – águaaaaaa ! ! ! ... - sua revolta por ter bebido, enganado por outros, água em vez de cachaça.

A GRANDE noite de paz da Bahia veio do cais, envolveu os saveiros, o forte, o quebra-mar, se estendeu sobre as ladeiras e as torres das igrejas. (Jorge Amado – Capitães da Areia)


A história e o apogeu dos saveiros, se confunde com a presença dos negros e dos momentos de apogeu das feiras soteropolitanas a beira mar: feiras decadentes, decadência dos saveiros. Estas naus praticamente desapareceram do cotidiano dos estaleiros e das águas da Baía de Todos os Santos; o espetáculo que eles oferecem, anualmente, na procissão do Senhor dos Navegantes sugere a exata medida do que poderá ser o retorno destas embarcações sob influência da requalificação ambiental e das melhorias gerais – ouvidos os feirantes – que poderão acontecer na Feira de São Joaquim. Evidentemente que o declínio dos saveiros no cotidiano da baía de Todos os Santos se deve a outras causas (a construção de estradas, a valorização do caminhão como alternativa de transporte de cargas, por exemplo), mas é preciso reconhecer que a nova Feira de São Joaquim - ouvidos os feirantes – poderá trazer de volta o saveiro, um dos marcos mais fortes da identidade cultural de Salvador.


VAMO VAMO, MINHA GENTE. COMPRÁ BARATO É AQUI.


O Tombamento como bem imaterial é um passo decisivo para esta nova Feira de São Joaquim na particularidade do retorno dos saveiros. Este retorno poderá contribuir para a redução dos custos de transporte das mercadorias e dos preços finais ao consumidor. Tradicionalmente, o vento é a energia que move os saveiros; mas, mesmo no caso do uso de combustíveis, o diesel, ainda assim as vantagens econômicas se mantêm. Basta comparar estas embarcações com meios de transportes movidos a gasolina, ou mesmo a diesel, que percorrem longas distâncias e sofrem elevada depreciação inclusive mecânica.

Outra vantagem do retorno dos saveiros é a continuidade – hoje ameaçada – da produção, reprodução e transmissão às gerações mais jovens dos saberes, artes e técnicas que singularizam a construção destas embarcações. Onde estão os velhos mestres construtores de saveiros?

Tombar a Feira de São Joaquim e reformulá-la ecologicamente – ouvidos os feirantes - é salvar os saveiros do naufrágio na nossa contumaz falta de memória.



O SUJO, O FEIO ... UMA CIDADE E UMA FEIRA PRA INGLÊS VER



Era de se esperar que a Feirinha do Peixe localizada numa área de aterro sobre o mar (portanto, de solo aparentemente pouco valorizado) não agredisse os padrões estéticos e higiênicos das elites políticas, empresariais, negocistas ... habitantes da parte elegante de Salvador, a Cidade Alta, e conduzidas em cadeirinhas de arruar carregadas por escravos. Mas não foi isto o que aconteceu. Apesar de a parte nobre da cidade ser a parte alta da cidade, ao menos na segunda metade do século XIX, o Governo e as Forças Armadas tinham prédios e as elites negócios no chamado Cais Dourado e adjacências, considerados incompatíveis com a vizinhança das “feias” barracas da “suja” feira da “Feirinha do Peixe”.


ESSA É COPIOBA VERDADEIRA, TORRADINHA. PODE PROVAR PATRÃO.


Apesar de os edifícios públicos mais imponentes se situarem na parte alta de Salvador, na Cidade Baixa estavam localizados marcos do poder do Estado e do capital financeiro (trapiches, armazéns, mercado de escravos ...). Mattoso (1978 : 171-172) faz descrição apropriada do entorno histórico (século XIX) e do embrionário nicho urbano onde quase um século depois (1964) seria construída a Feira de São Joaquim:


Na parte ribeirinha da cidade, o comércio desenvolvia suas atividades num espaço limitado por duas construções religiosas: a belíssima basílica de N. S. as Conceição da Praia edificada perto do bairro denominado da Preguiça, de um lado, e a Igreja de N. S. do Pilar, do outro. Nesse espaço, que compreendia até por volta de 1870 uma única rua no sentido longitudinal, encontravam-se os prédios da Alfândega, o Celeiro Público, o Arsenal da Marinha, o Consulado, o elegante prédio da Bolsa de Mercadorias construído na época do governo do conde dos Arcos, numerosos trapiches e armazéns de onde se aviavam as mercadorias que demandavam os mercados externos e se recebiam as que eram importadas. Nessa parte ainda da cidade havia as lojas comerciais, a praça do comércio e os principais mercados da cidade. Mercado de atacado com lojas e depósitos abarrotados por todo tipo de mercadorias que iam dos produtos de luxo aos produtos alimentícios de primeira necessidade (337); mercado de escravos onde as transações se efetuavam ora nas ruas e praças (...) ora em prédio próprio (...).


Este é o quadro geral de uma efervescente parte da cidade cujos moradores pobres, escravos e trabalhadores de um modo geral andavam a pé, de montaria, carroças, carros de bois ... mas, desde a segunda metade do século XIX, Salvador passa a contar com o progresso e o conforto do transporte coletivo: bondes movimentados por tração animal (inicialmente explorados por um austríaco) e carros de aluguel. Neste quadro não há lugar para equipamentos como a “Feirinha do Peixe”; esta era inadequada, na verdade, ao livre curso dos interesses dos tantos negócios e tantos negociantes, e do Poder Público pode ser de algum modo compreendida, a partir da leitura de documentos localizados no Arquivo Público do Estado da Bahia (Salvador) e aqui transcritos. Neste momento (2005) em que, dia a dia, ganham mais força o Tombamento da Feira de São Joaquim, a Via Náutica e o projeto de Revitalização do Comércio, cabe como instrumentos de reflexão a leitura dos aludidos documentos e das obras de Mattoso (1978 e 1992) sobre a Salvador do século XIX – estas últimas aqui apenas sugeridas ao leitor, por imposição dos limites formais deste Laudo.

PRESIDÊNCIA DA PROVÍNCIA - 1871
MERCADO NA PRAINHA DO PEIXE –

Tenho a honra de participar a V. Exa. que hoje assinei o contrato para a edificação do Novo Mercado da Prainha do Peixe com o Engenheiro Civil Hugh Wilson, que se deve achar pronto no final de dois anos; portanto desejo saber de V. Exa., se os terrenos da dita praça que foram requeridos no mês de Julho do ano próximo passado, tem sido desapropriados e se já estão disponíveis para se principiar as obras; ao contrário peço que V. Exa. Adiante tais desapropriações a fim de evitar maior demora.
Em breve tempo conto ter o prazer de convidar a V. Exa. para deitar a primeira pedra de uma obra que tanta utilidade promete ao povo desta capital.
Deus Guarde a V. Exa.
Bahia 30 de Maio 1871.



PRESIDÊNCIA DA PROVÍNCIA
MERCADO NA PRAINHA DO PEIXE – 1871

Bahia 4 de outubro de 1871 (cópía)

Tive a honra de assinar com V. Exa., na data de 30 de Maio próximo passado o contrato para a edificação do novo Mercado da Prainha do Peixe, incorporando como parte do dito contrato as cláusulas do contrato efetuado com o Governo Provincial de Dara de 29 de Dezembro de 1869 – cuja condição 2a. diz o seguinte:
“O Governo da Província obriga-se a entregar livre e desembaraçado de qualquer ônus o terreno da prainha do Peixe a Preguiça, o qual fica situado entre as casas novas dos herdeiros do finado Comendador Motta e o Arsenal da Marinha.” (...)


PRESIDÊNCIA DA PROVÍNCIA– 1877
MERCADO NA PRAINHA DO PEIXE

A Empresa Edificadora tendo levantado um importante edifício nas suas Marinhas ao Caes Dourado, com a denominação de Praça do Ouro; para nele estabelecer mercado de gêneros alimentícios, açougues e outros ramos de Comércio, a fim de que seja removido do Cais da Cidade baixa, onde tão triste espetáculo oferece aos viajantes, que diariamente aqui desembarcam de passagem nos vapores transatlânticos; não só pela falta de asseio, como pelo atropelo que causam, por ser o lugar onde descarregam e carregam os gêneros de Exportação e Importação e ser limitadíssimo o espaço para todos e ser no foco comercial a praça de gêneros alimentícios que não só a bem da salubridade pública como a bem da nossa civilização deve ser mudada daquele centro comercial pensam os Suppes terem construído um Edifício, talvez o mais importante da Bahia, que se presta às necessidades que acabam de apontar; tendo melhorado assim aquele bairro, porque, onde se acha hoje aquele importante Edifício, parte era um insalubre monturo, e parte foi conquistado ao mar; mas para que ela se torne mais importante e para que se possa alargar o acanhado bairro comercial é de grande necessidade e urgência a continuação da rua da Praça Riachuelo, até encontrar com a Praça do Ouro, conforme a planta que juntam, do que faz sem dúvida se prestarão todos os proprietários e aquele que não quiser, o fará a Empresa suplicante ficando-lhe pertencendo os terrenos, se o Governo não entender pô-los em concorrência pública; sendo os Becos e as travesias pagos pelo Governo são mais espaçosas ruas, onde se construirão grandes estabelecimentos comerciais e assim alargará a Área Comercial, do que o Governo tirará grande proveito assim; como desaparecerão essas legendárias pontes, que servem para a sua sombra ou com a escuridão da noite se esconderem os ladrões de mercadorias a bordo dos barcos e alvarengas, que continuadamente se estão dando no Porto; abrirá mais duas comunicações com o Pilar, hoje só feita pela estreita e tortuosa Rua do Julião, por onde passa uma linha de bondes e grande movimento de carroças com direção aos Trapiches, a Estrada de Ferro e bairros da Calçada, Bomfim e Solidade.
A V. Exa. que testemunhou o estado daquela localidade quando honrou o estabelecimento com sua visita, recorre a Empresa Edificadora animada pelo gênio empreendedor de V. Exa., que não será indiferente ao mais importante melhoramento, que reclama o Bairro Comercial, e animará o estabelecimento que deve mudar as condições desagradáveis deste importante bairro: mudando a feira da Rua mais importante e mais comercial desta Capital, que da forma que é feita parece mais uma aldeia do que uma das Cidades mais civilizadas e mais importante do Brasil, como V. Exa. já pessoalmente teve a ocasião de ver.
Bahia 30 de abri de 1877.



A natureza deste documento num Laudo, me permite fazer tão longa citação – o que seria talvez condenável se este trabalho fosse acadêmico, universitário. Bem se observa que a revitalização do Comércio é uma idéia nutrida há mais de um século. A leitura (que, espero, não cansativa), mesmo se referindo à Salvador do século XIX, pode servir de alerta para defender o Tombamento da Feira de São Joaquim e situá-lo como peça importante dentro do projeto de Revitalização do Comércio. Pode servir de alerta, também, contra interesses alheios às demandas populares e à preservação de suas conquistas. Nas CONSIDERAÇÕES FINAIS deste Laudo, retomaremos esta reflexão.



(AMANHÃ É SEXTA. AMANHÃ EU TENHO LAMBRETA, SURURU, SIRÍ E CARANGUEIJO ... TUDO GRAUDINHO E BARATINHO ... E COM UMA QUEBRA BOA ...)

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