AS CIDADES ABRAÇAM OS CEMITÉRIOS E AS INSTITUIÇÕES TOTAIS (FINAL)

AS CIDADES ABRAÇAM OS CEMITÉRIOS E AS INSTITUIÇÕES TOTAIS (FINAL)


II – As Cidades abraçam as instituições totais

Vicente Deocleciano Moreira
vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com
FONTE DIRETA – Blog http://www.viverascidades.blogspot.com



Adotamos, para início de reflexão, o conceito de Instituição Total defendido por Goffman: “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.” (GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos”. São Paulo, Perspectiva, 1999, p.11).



Está fora da ambição desse texto [para o Blog http://www.blogspot.com] avançar em considerações sobre as instituições totais. Além de Goffman, são inúmeros os estudiosos de cada uma e de todas as instituições totais. Interessa-nos, olhar cada vez mais perto o Mundo, produzindo discursos desde o lugar das cidades.


Manicômios


A “História da Loucura” de Michel Foucault (1926 – 1984) é o nosso Vade Mecum. Vade Mecum é uma expressão latina que significa, em português, “vem comigo”, “anda comigo”. É tido como Vade Mecum um livro que tem uso muito freqüente pelos estudiosos e serve de norte para posturas teóricas ou decisões práticas. Um livro de que ninguém pode/deve se separar um só instante. Apesar de muito usada no campo do Direito, a expressão cabe em qualquer outra área do conhecimento. Apesar disso, não avançaremos para além da citação da obra foucauldiana e da recomendação de sua leitura. Diga-se o mesmo para “Vigiar e Punir” – outra consagração do autor, para interessados em estudar prisões, presídios.

A exemplo dos cemitérios, manicômios, prisões e conventos são construídos, durante a aurora das cidades, bem distante delas ou de seu núcleo genético, de seu centro – por assim dizer – urbano. Em outra linha de raciocínio, a pergunta poderia ser: “quem chegou aqui primeiro? As pessoas que já moravam aqui ou o cemitério? Quando o cemitério chega primeiro e não encontra um vizinho sequer, ele também pode “perguntar”: “Quem chegou primeiro, eu (cemitério que estou aqui há séculos) ou vocês que estão chegando agora?

Porém, enquanto dificilmente alguém construiria um cemitério novo num terreno baldio ou bosque já emoldurado com entorno urbano preexistente, instalado, uma instituição psiquiátrica, um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) – não necessariamente um manicômio – não encontraria muita resistência ao ser instalado numa casa, vizinha de outras casas residenciais e/ou comerciais. Digo que não encontraria MUITA resistência, porque a presença e circulação de pessoas em tratamento psiquiátrico quase sempre é motivo de queixa e manifestação de mal estar pelos vizinhos, ainda que o CAPS faça reconhecida e publicamente atendimento ambulatorial.

A cidade se vê obrigada a ‘abraçar’, embora com frieza, resignação e sem muito entusiasmo, um manicômio que já estava lá, há dezenas de anos, há séculos. A população dos manicômios é a população de uma instituição total bastante estigmatizada. Existe o temor de que pessoas com transtorno mentais possam agredir ou causar desconforto à população urbana em geral.

Moradores das cidades temem o contato e contágio ao cruzarem com pessoas portadoras de transtornos mentais. Na Idade Média eles tinham pavor em passar pela mesma calçada onde estivessem caminhando portadores de hanseníase (lepra, leprosos). Sabemos que, num episódio da história dos manicômios, os hansenianos foram expulsos dos quartos e instalações dos lazaretos (hospitais especializados em hanseníase) para dar lugar aos portadores de transtornos mentais (os loucos). Leiamos, pois o Resumo do artigo Entre a "loucura" e a hanseníase: interfaces históricas das práticas e políticas instituídas de autoria de José Ricardo Lopes Garcia (publicado em Hansen. Int., 26(1): 14-22, 2001):



A "loucura" e a hanseníase, dois quadros patológicos muito
diferentes, apresentam em suas histórias diversas
semelhanças e complementações no que diz respeito às
práticas e políticas públicas de saúde. Foi a esta relação que
este estudo atentou-se, verificando através do resgate da
literatura, as interfaces existentes entre ambas, no que diz
respeito aos seus aspectos históricos, sociais e culturais. Entre
as principais semelhanças verificou-se todo um contexto de
isolamento social, segregação, estigma e, em muitos
momentos, descaso com as políticas de Saúde Mental e de
Dermatologia Sanitária. Desde a disseminação dos antigos
leprosários europeus na Idade Média, que posteriormente
passaram a pertencer, por herança histórica, aos insanos,
que a hanseníase e a "loucura" vivem na instituição do
asilamento. Nos dias atuais, em especial no contexto
brasileiro, onde presenciamos ainda um considerável índice
epidemiológico da hanseníase e há mais de uma década o
movimento antimanicomial, que busca garantia de direitos
básicos de cidadania às pessoas com transtorno mental,
vemos que estas duas realidades mantêm traços de seus
processos históricos. As incapacitações físicas e dores da
hanseníase e o sofrimento mental, não são as únicas
dificuldades enfrentadas por seus portadores. Estes
continuam à margem da sociedade, ainda incompreendidos
por um contexto social que segrega o diferente.



Prisões

Para entender melhor a cidade vista das prisões e o mundo especial destas instituições totais, é preciso beber “Vigiar e Punir” de Michel Foucault;.

Vamos considerar não apenas prisões, mas também presídios, penitenciárias. Não só penitenciárias, mas também instituições de ressocialização de crianças em ‘erro social’ (as antigas FEBEM) são equipamentos temidos, por causa da especificidade de sua população.

O diferencial em referência aos cemitérios é que, nos primórdios do Brasil Colônia, enquanto cemitérios eram construídos o mais distante possível dos núcleos urbanos, as prisões funcionavam na andar térreo das Casas de Câmara. Daí o nome Casa de Câmara e Cadeia. No Recôncavo baiano, (Bahia – Brasil), os antigos prédios das mencionadas casas localizadas no chamado ‘centro antigo’ de Cachoeira, Santo Amaro e Salvador ainda apresentam resquícios físicos destas prisões que expunham os condenados ao olhar, às zombarias e à execração dos passantes.

Desde então, mudaram os presídios ... e em muitas cidades brasileiras as penitenciárias convencionais inicialmente afastadas do centro da cidade agora estão sendo abraçadas pelas cidades que rejeitam, sem sucesso, a vizinhança desta instituição total que chegou lá primeiro ... antes que os pobres construíssem no entorno suas precárias habitações. É o caso, por exemplo, da Penitenciária Lemos de Brito (construída na década de 50, século XX), no bairro Mata Escura,em Salvador.


Hoje, no Brasil, os presídios de segurança máxima não são considerados bem vindos, pela população do estado onde os mesmos estão localizados ainda que estejam distantes de núcleos urbanos. Existe o temor de que presidiários possam fugir e vitimar a população urbana em geral.



Conventos


Os conventos, eles mesmos, tendem a fugir de aglomerados urbanos – porém muitos podem cumprir o destino dos cemitérios ... e receber o abraço das cidades. Mesmo no interior de grupos não católicos, não se observa altos graus de rejeição das cidades quanto aos conventos. Seguindo a tendência de fugir de aglomerados urbanos, muitos conventos mudam para locais distantes (subúrbios, áreas rurais).suas instalações de internamento de pessoas interessadas em seguir carreira religiosa reclusa.


No século XVI, o embrionário núcleo urbano de Salvador era, em linha reta, uma faixa compreendida entre a Porta de Santa Luzia ao Sul (imediações da atual Praça Castro Alves) e a Porta do Carmo (atual Largo do Pelourinho), ao Norte. Para além das portas Sul e da Norte, existiam o mundo rural ... hortas, criações de animais, riachos, pequenos aqüíferos utilizados na irrigação; e também duas instituições conventuais: extramuros da Porta do Carmo, o Convento dos Carmelitas (Convento do Carmo), fundado em 1586 pelos frades da Ordem Primeira dos Freis Carmelitas. Fora da Porta de Santa Luzia, o Mosteiro de São Bento, fundado pelos monges beneditinos em 1589.


Hoje (março de 2010, mês dos 461 anos da capital baiana) os dois imóveis seculares felizmente ainda existem, mas ambas os imóveis foram abraçadas pela expansão da cidade e estão plenamente no centro antigo de Salvador, em meio à movimentação de automóveis, ônibus, turistas e transeuntes em geral. O prédio do Convento do Carmo não mais abriga os moradores e equipamentos típicos da instituição total de seus primórdios; em suas dependência funciona um hotel cinco estrelas. São Bento continua mosteiro, deu nome à praça e à região onde está localizado. O lugar, dentro da extensa área do secular prédio, onde vivem os monges está física e acusticamente afastado do barulho provocado pelos camelôs, automóveis, ônibus, sirenes e buzinas.


Quem tem medo dos mosteiros e dos conventos?


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Por mais autoritária que se possa imaginar uma gestão urbana não cabe sequer o devaneio de pensar que tal gestão possa conter os passos de uma cidade na direção de cemitérios, manicômios, prisões e conventos. Muros e ‘faixas de segurança’ não conseguiriam evitar o abraço. É evidente que as cidades são desiguais. As cidades são o maior e mais visível palco das desigualdades e da exclusão sociais de um estado, país ou continente. As cidades são a medida de todas as desigualdades. Não é de surpreender que os braços deste amplexo (cidade & cemitérios e instituições totais) sejam magros, doentes, famintos, atirados para a convivência com esgotos a céu aberto, focos de insetos e vetores patológicos, doenças endêmicas, violências e abusos de toda a ordem ...


As generalizações são perigosas. Por esta razão, é preciso trazer à luz crítica a face da cidade que termina por abraçar cemitérios e instituições totais no curso da historia.


FONTE DIRETA – Blog http://www.viverascidades.blogspot.com