FEIRA LIVRE DE FEIRA DE SANTANA, 33 ANOS DE EXTINÇÃO (1977-2010): UM CASO DE AUTOFAGIA URBANA
Vicente Deocleciano Moreira
Há 33 anos, um decreto municipal sentenciava de morte a feira livre de Feira de Santana - Bahia - Brasil. A feira que deu nome e renome à cidade era devorada pela própria cidade.
Um acontecimento da riqueza e complexidade da feira e sua extinção (a
exemplo de qualquer outra ocorrência social) não pode ser verdadeiramente compreendido sem o destaque e o exame de seus vínculos com as condições estruturais e
conjunturais da sociedade que produziu esse acontecimento. Desde a década de 60
(apenas para particularizar o Século XX), a feira vinha sofrendo ataques de interesses variados e contrários à sua existência. Esses ataques derivaram comportamentos e atitudes de tendências ideológicas facilmente identificáveis. Mas, somente nos anos 70, esses ataques cresceram em intensidade e agressividade a ponto de, em inícios de 1977, sentenciar a extinção da centenária feira livre.
O Brasil dos anos 70 é o país em que o Governo busca, através da invenção dos
milagres (dentre os quais, o milagre económico), alguma saída ideológica contra a
reação popular ao autoritarismo c ao cerceamento das liberdcdes, O milagre econòmico era responsabilidade de um expressivo hagiológio de "santos milagreiros".
A industrialização, um destes santos, (nascido nos anos 60) redimiria o país de seus
"pecados" sócio-econômicos, através da modernização tecnológica e da exportação,
e nos colocaria em direção ao progresso, a todos os progressos, percorrendo os
mesmos caminhos do Japão e de outros países. O Nordeste brasileiro, por sua vez,
andaria pela trilha de São Paulo e outros estados sulistas. A modernização, aí, não
dizia respeito apenas à tecnologia ou ao moderno, mas, também, ao novo, ou seja, ao
sectarismo na valorização do novo, da. juventude, do empresariado, do neo-ufanismo.
"Eu te amo meu Brasil, eu te amo
Eu te amo (...)
Ninguém segura a juventude do Brasil"
A Feira de Santana dos anos 70 também pensa enxergar em seus horizontes
a salvação sócio-económica pela industrialização e, consequentemente, a cidade é
dominada pela febre visionária do progresso.do moderno, do novo que se alastra,
diretamente, entre as chamadas classes produtoras: instalava-se (anos 70) o Centro
Industrial do Subaé (CIS).
Nos municípios vizinhos a Salvador, agravavam-se as tensões e pressões do
exército de reserva, dos desempregados produzidos pelo Centro Industrial de Aratu
(CIA). Feira de Santana prosseguia no desempenho de seu papel de entreposto da
força do trabalho que migrava do interior baiano e de outros espaços nordestinos,
principalmente em direção à Capital. Cresciam as tensões c pressões sobre Salvador,
municípios vizinhos e sobre Feira de Santana. Entre estimular o CIA naquele exato
momento (exacerbando os problemas) e criar um novo centro industrial mais distante, o Governo do Estado optou por essa última alternativa. Através do Programa
de Industrialização do Interior (PROINTER), O Governo Luiz Viana Filho desenvolveu estudos iniciais que, depois, contaram com o apoio do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), mais especificamente da agência UNIDO.
Técnicos dessa agência e da Secretaria de Indústria c Comércio concluíram estudos
e apontaram a implantação, em Feira de Santana, do Centro de Desenvolvimento
Industrial (CEDIN), sob forma de fundação.
O plano diretor do Centro Industrial do Subaé (CIS) foi encaminhado peia
Prefeitura de Feira de Santana , para o Instituto de Urbanismo e Administração Mu-
nicipal (IURAM), em 1970, tendo como garantia (dentre outras) uma ampla área
desapropriada no ano anterior, em "caráter de urgência", através do Decreto n.
3 304, de 12 de julho de 1969, para a implantação do Centro. O Centro industrial
do Subaé foi criado em 1970, sob forma de autarquia, pela Lei Municipal n. 690 e,
em novembro de 1971, declarado "de interesse para a economia nordestina" pela
SUDENE.
Os primeiros estabelecimentos industriais do CIS foram implantados às margens da Rodovia Feira – Salvador (BR 324). Logo após a instalação, 70'/c desses estabelecimentos pediram concordata ou simplesmente desapareceram.
Mas, nem mesmo esses malogros iniciais do CIS arrefeceram da Imprensa feirense, de frações da burguesia local e de alguns setores do comércio, da política, dos
artistas e intelectuais e de segmentos outros da população, o entusiasmo pela novidade economicamente "redentora" do CIS. O progresso, o moderno, o novo - imaginados como produtos do CIS - não apenas redimiriam a vida económica de Feira de Santana; eles ajudariam, também, a apagar o "antiquado" título de cidade comercial e lhe concederiam um "prestígio" jamais alcançado por Feira de Santana vivia, enfim, sua "revolução industrial"; era uma cidade que se industriali/ava. uma cidade
industrial (não mais comercial). Estava devendo menos, então, a Salvador c a São
Paulo; tinha, enfim, um centro industrial.
A industrialização trouxe nais gente para Feira de Santana trouxe trabalhadores pouco qualificados profissional e ocupacionalmente (muito sem qualificação) para a atividade industrial. Grande parte deles constituía a grande massa de mão-de-obra expulsa de suas regiões e îspaços produtivos e culturais, pela expansão do capitalismo.
Uma pequena parcela desses trabalhadores serviu na construção civil dos
galpões e prédios do CIS e, assim mesmo, somente na etapa de edificação desses
imóveis. Na fase das instalações mecânicas e energéticas (e nas subsequentes fases
produtivas) esses trabalhadores foram dispensados, dando vez à mão-de-obra qua-
lificada originária, em grande parte, de São Paulo e de outros estados sulistas.
Apesar das crises (mais "fabricadas" ou menos "fabricadas") a construção civil
é um dos setores do trabalho urbano que mais absorve mão-de-obra. É onde os
trabalhadores menos qualificados têm mais chance de emprego. Entretanto, no
exemplo de Feira de Santana, até mesmo o setor da construção civil vem se mos-
trando retraído, não reage satisfatoriamente à agressividade do significativo volume
de trabalhadores cm busca de emprego. Trata-se de uma cidade cuja expansão se dava, nas últimas décadas do século XX, grandemente, no sentido horizontal e não no vertical como é o exemplo geral e o retrato de hoje (2010). Havia, nos anos 70 (século XX) poucos edifícios e nenhum espigão.
Por menos que o processo de urbanização tenha sido influenciado pela industrialização, esta última, de algum modo, acentuou a vocação da cidade feirense para expandir-se horizontalmente. A pobreza foi afastada para espaços mais e mais distantes do centro urbano, espalhou-se e espalhou a cidade, decretando a "inchação" de Feira de Santana (um fenômeno que, equivocadamente, muitos julgam tratar-se de crescimento). As áreas periféricas de pobreza continuam abandonadas pelos Poderes Públicos. Faltam calçamento, saneamento, assistência, transporte, etc.
A burguesia e a pequena burguesia de Feira de Santana pouco investiram, nos anos 70 do século passado, no mercado imobiliário e, assim, impossibilitaram que a cidade se expandisse, também, verticalmente naquele momento. Aliás pouco investiram na cidade, seja no comércio, seja na construção civil. Preferiram construir apenas suas próprias mansões (vizinhas aos casebres dos deserdados da terra e do asfalto), investir na fazenda, na roça, na agricultura, na pecuária. Investiram em Salvador, comprando e mobiliando apartamentos na Orla Marítima, ou casas em loteamentos sofisticados na Ilha de Itaparica e ao longo da Costa.
A construção de edifícios, de espigões, ordinariamente implica num dispêndio
de tempo e de dinheiro bastante expressivo... mas também numa absorção maior e
mais prolongada de operários, de trabalhadores. Havendo poucos edifícios e poucos
espigões a construir, há, também, reduzidas oportunidades de emprego para pedreiros, mestres e serventes de obras..., notadamente numa cidade como Feira de Santana que, quando constrói, o faz, via de regra, horizontalmente. A verticalização nos anos 70 (século XX) era mínima, para não dizer inexpressiva. Hoje (março de 2010) domina o horizonte, e todos os horizontes, da cidade.
Desqualificados para a indústria, desempregados pelas fábricas e pela vagarosa
e limitada construção civil, restava aos trabalhadores uma alternativa nada desprezível: a venda ambulante, o subemprego e, principalmente, a feira livre. Esta última, recebendo semelhante massa de desqualificados e desempregados, durante os anos 70, vai apresentar um amplo crescimento físico, demográfico e econômico. Por força desse crescimento, a feira vai conquistando, regularmente, mais espaços, mais e
mais fregueses, mais produtos... e, também, aumentando o volume de negócios, ao
tempo em que vai conduzindo ao desespero comerciantes de todos os portes e ramos
estabelecidos nas ruas centrais de Feira de Santana. Esse crescimento é comprova-
do, também, pelo fato de a feira ocupar, gradativamente, não apenas a segunda-
-feira, mas, (embora em menor escala), outros dias da semana, para desespero e insatisfação do Poder Público e das classes dominantes locais.
O desespero de uns, a insatisfação de outros e reações outras e diversas diante
de uma mesma situação concreta - o crescimento, a expansão física da velha feira
livre - engendraram arranjos ideológicos. Esses chegaram ao ponto de produzir, inclusive, juízos estéticos, para condenar a permanência da feira livre nas ruas centrais, sentenciando-lhe a pena de morte.
Foram as seguintes as principais acusações, noticiadas pela imprensa, contra a feira e os dias de feira:
- incompatível com o progresso de Feira de Santana;
- medieval, antihigiênica e poluidora;
- provocava evasão de 50% da renda;
- número crescente de feirantes e inversamente proporcional à disponibilidade de espaço;
- atrapalhava a circulação de veículos e de pedestres;
- atraía ladrões e aumentava o número de furtos e roubos na cidade;
- as barracas apresentavam “péssimo” aspecto e faziam concorrência “desleal”,. “ostensiva” e de “baixo nível” com o comércio estabelecidos (lojas, armazéns, etc.);
- causava prejuízos aos estabelecimentos bancários;
- “péssimo” cartão de visitas para o turismo;
- fazia a cidade ficar “feia”.
A Feira de Santana dos anos 70 unia uma cidade que, além de possuir um centro
industrial, passa a dispor de uma universidade. Autorizada a funcionar pelo Conselho Federal de Educação em 27 de janeiro de 1976, a Universidade Estadual de Feira de Santana representou outro marco do progresso na visão de grande parte
dos feirenses. Estavam seguros de que com um centro industriai e uma universidade Feira de Santana devia, então libertava-se dos "grilhões" do passado e dava mãos ao futuro que se avizinhava. Como Feira de Santana, tão “promissora”, poderia continuar abrigando em suas ruas mais centrais e mais visíveis, no "coração" da cidade, o "arcaísmo" de uma feira livre? (indagavam, perplexos, alguns feirenses).
A rua é o "espelho" ou a "vitrine" da cidade, de qualquer cidade. Temos o hábito de julgar uma cidade.
Se ela é "limpa" "arborizada", "abandonada", "esburacada", "verde", "cinza", etc. pelo que vemos das ruas ditas centrais dessa cidade, A rua (a praça) é o locus onde se movimenta e se resolve o cotidiano, pública e socialmente visível, de moradores, trabalhadores e de quem está de passagem pela cidade.
Na concepção dos setores dominantes de Feira de Santana anteriormente referidos, a rua ("espelho" ou "vitrine") da nova cidade mo poderia continuar abrigando - mesmo às segundas-feiras - a velha feira livre. Essa, vítima de tamanho combate entre o novo e o antigo, passava a receber diariamente novos e velhos adjetivos nada elogiosos, verdadeiras estigmas que ofereceram sua parcela de contribuição para o extermínio da centenária feira livre, em 10 de janeiro de 1977, por decreto municipal.
*****
No dia seguinte ao do extermínio, uma verdadeira ‘romaria’ de comerciantes visitou o Prefeito, para agradecer o gesto do Poder Municipal que calou para sempre o mais temível concorrente daqueles homens; que silenciou para sempre o alvoroço de uma das mais importantes feiras livres do Nordeste brasileiro e que em Feira de Santana serviu de bode expiatório de centenários problemas. Feira de Santana continua mantendo no comércio sua vocação mais forte e mais tradicional, a despeito de mais de 30 anos dos imprevisíveis passos de sua industrialização.
(CONTINUA TERÇA FEIRA, DIA 16 DE MARÇO)
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