terça-feira, 23 de março de 2010

AGUAONIA OCULAR DE UMA CIDADE CEGA (1): SECA, AGRESSÕES AMBIENTAIS E QUALIDADE DE VIDA EM FEIRA DE SANTANA (BAHIA) - SÉCULO XIX - SÉCULO XX.

AGUAONIA OCULAR DE UMA CIDADE CEGA (1):
SECA, AGRESSÕES AMBIENTAIS E QUALIDADE DE VIDA EM
FEIRA DE SANTANA (BAHIA) - SÉCULO XIX - SÉCULO XX.




Vicente Deocleciano Moreira
vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com
http://www.viverascidades.blogspot.com

(Este artigo foi publicado, anteriormente a esta edição do Blog e ao julgamento dos conselhos editoriais dos seguintes veículos:


Revista de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), v. 1. N. 1, (jun./jul. 2002- Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2002).


Humanas. Revista do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia – UEFS.ano2., n. 3, jan/jun. 2003.




(A partir de hoje, dia 23 de março/2010, por ocasião da Semana Mundial da Água, o artigo AGUAONIA OCULAR ... será divulgado em várias postagens editadas por este Blog http://www.viverascidades.blogspot.com.)


RESUMO

Feira de Santana, apesar do antigo título Feira de Santana dos Olhos d'água, sempre sofreu os rigores de longos e intensos períodos de seca que trouxeram prejuízos para a economia, o ambiente e riscos para a saúde da população. Depois que instalou a água encanada (1952), os Poderes Públicos abandonaram as nascentes, lagoas e rios que, até então, eram os únicos responsáveis pelo abastecimento d'água e, com esta omissão, contribuíram para agravar as condições ambientais desses aqüíferos e da própria cidade, comprometendo a qualidade de vida de quem nela reside e trabalha. Este estudo, de caráter histórico-ambiental sanitário, tem os seguintes objetivos: a) trazer ao conhecimento dos cidadãos, autoridades e demais interessados em questões ambientais e sanitárias, momentos importantes do processo de degradação ambiental dos aqüíferos de Feira de Santana, ao longo dos séculos XIX e XX; b) contribuir para a adoção de uma mentalidade política que valorize a preservação e utilização social desses mananciais, visando a melhoria da saúde e da qualidade de vida dos que moram, trabalham ou transitam na referida cidade.

Palavras-chave: Água - estiagem - ambiente - saúde


ABSTRACT

Feira de Santana, apart of having the ancient title of Feira de Santana dos Olhos d'água, suffered from the rigors of long and intense periods of droughts, which caused losses in the economy , the environment and increased risks for the health of the population. Since the installation of piped water in 1952, the local authorities abandoned the natural springs, lakes and rivers which were then the only sources of drinking water. This attitude not only caused the deterioration of the natural water resources, the environment but also the quality of life of those who worked and lived there. This study with historical sanitary aspects has the following objectives: 1) draw the attention of the citizens, the public authorities and those interested in the environmental and the sanitary aspects, to the important moments of the process of the environmental degradation of the natural water resources that has been ongoing during the course of XIX to XX centuries in Feira de Santana. 2)to contribute to the adoption of a mentality that appreciates the conservation and the utilization of this natural resource, with a view of improving the health and the quality of the life of those who live, work or are simply in transit in this city.

Key words: Water resources -environment –health




E o terceiro anjo tocou a sua trombeta e caiu do céu uma grande estrela, ardendo como uma tocha, e caiu sobre a água parte dos rios, e sobre as fontes das água. E o nome da estrela era Absinto, e a terça parte das águas tornou-se em absinto, e muitos homens morreram das águas, porque se tornaram amargas.(Bíblia/Apocalipse)



De 1952 (ano da instalação da água encanada em Feira de Santana), até os dias de hoje (2010) são quase sessenta anos de abandono das questões mais cruciais do abastecimento e dos aqüíferos do município feirense. Os Poderes Públicos se iniciaram no malfadado ritual de – com o perdão do trocadilho – fechar os olhos dos olhos d’água e para os olhos d’água. E assim se transformaram em demiurgos de dias mais amargos que absinto.




Criei o neologismo AGUAONIA para tentar traduzir ujm sentimento coletivo e mistop de agonia e água, de horror ao verde, falta d’água, e da cegueira desvairada que destruiu os olhos d’água e comprometeu a qualidade de vida da população de Feira de Santana nos séculos XIX e XX. Os jornais (O Propulsor e Folha do Norte, de Feira de Santana e A Tarde, de Salvador) e documentos do Arquivo Municipal e das Câmara de Vereadores de Feira de Santana proporcionaram as informnações históricas necessária à elaboração deste artigo.



E assim ... se passaram 191 anos (março de 1819 – março de 2010) desde aquele primeiro dia de uma março, mormarço e distante, do ano de 1819. Os naturalistas Von Spix e Von Martius estavam passando por um povoado conhecido pelo curioso nome de “Feira de Santana” – na avaliação deles “um mísero povoado”. Este nosso artigo mostra que, passados 191 anos, desde que a exprtess~]ao “mísero povoado” foi cunhada, a Feira de Santana do século XXI preservou o solene abandono que sempre dedicou às árvores, ao verde, aos poucos mananciais ainda existentes e à questyão do abastecimento d’água. A expressão “mísero povoado” de outrora prossegue válida na maior cidade do interior do estado da Bahia – Brasil.



Johan Baptist Von Spix e Carl Friedrich von Martius, médicos e naturalistas alemães, viajaram durante 23 anos (1817 a 1830) de São Paulo a Amazonas, utilizando, na maior parte do percurso, canoas e burros, com o objetivo de coletar insetos e plantas num país conhecido pelo nome exótico de “Brasil”, ou seja, “cor de brasa”. Com a palavra, os pesquisadores:



Neste monótono cenário pusemo-nos a caminhar a 1º de março, viajando cinco léguas e meia até ao Arraial da Feira de Sant’Ana. Os moradores desse mísero povoado já nos mostravam o tipo perfeito do sertanejo (...) A água potável, aqui conservada em cacimbas, tem, em geral, sabor um tanto salgado e produz febre palustre, quando é bebida sem a solução de um corretivo (...) Duas léguas a noroeste da Feira de Sant’Ana, encontramos o pequeno Arraial de São Jos , abandonado por quase todos os habitantes, por causa da falta de água e o mesmo abandono se viu também nas fazendas; Formigas, Santa Bárbara e Gravatá onde se reuniam de novo as duas tropas. Não foi sem receio que descansamos aqui um pouco, pois era de temer que, com a continuação de semelhante seca chegássemos ao fim de tão terrível deserto apenas com a metade de nossa tropa. (SPIX e MARTIUS, Apud MOREIRA, 1993).


O Padre Aspicuelta Navarro é o responsável pelo primeiro relato de seca na Bahia, em 1533. (NEVES, 1919). Os demais anos do século XVI que registram eventos de seca são: 1559, 1564, 1583 e 1592 – sem qualquer precisão, quanto à cidade ou região marcada pelo fenômeno. Nos demais séculos, há também registros pontuais.



Data de 1819 a passagem de Spix e Marthius por terras feirenses; 1819 é, também, a referência temporal mais antiga ,que a pesquisa (necessária à elaboração deste artigo) conseguiu identificar sobre a seca em Feira de Santana. "Mísero povoado" é a tradução de um (dos muitos) período severo de estiagem e, também, do vazio populacional, da fome e dos riscos de doenças que marcavam o vilarejo em épocas como esta. Moradores do que se poderia chamar de "sítio urbano", desde que tivessem condições financeiras para fugir da seca, se uniam aos fazendeiros no êxodo em direção ao litoral ou regiões menos castigadas pelo cataclisma. Feira de Santana e São José das Itapororocas transformavam-se em "povoados fantasmas". Nada se cultivava, o gado não sobrevivia à falta de água. As feiras eram suspensas até que voltassem as chuvas, o que agravava ainda mais as condições de abastecimento, sobretudo para os moradores mais pobres. A fome e a água imprestável para o consumo humano realçavam a agonia aguaonia - da seca.



As secas mais severas do século XIX datam de 1819, 1824 a 1825, 1844 a 1845, 1859 a 1861 e, também, a de 1896 que alcançou a primeira década do século XX entremeada de chuvas tão irregulares quanto insuficientes. Mesmo nos intervalos de uma grande seca à outra, a população sofria curtas mas desastrosas estiagens. Nem sempre chovia o suficiente para modificar o quadro de miséria e elevar as condições de saúde e qualidade de vida dos feirenses. O vai-e-vem das chuvas (e não raro das inundações) e das secas obrigava o lavrador a alternar momentos de euforia e esperança com instantes de tristeza, depressão e apatia.



Trechos do noticiário do jornal feirense O Propulsor, edições de 18 e 30 de julho de 1899 e de 25 de novembro de 1900, oferecem alguma idéia da dramática situação:



Estamos hoje a 18 de junho e ainda não choveu uma só vez durante este mez. Com as chuvas que caíram no mez de maio, voltou o ânimo aos pequenos moradores que empregaram os últimos recursos na planta de cereais, enchendo as suas roças, o que nos fazia esperar abundância.
Aproveitando a humidade do terreno a plantação crescia, quando o sol veio proibir de que ella dê fructos. É horrível a situação dos nossos lavradores e do comércio. Com uma ceremonia sem.igual têm cahido chuvas durante este mês. [novembro de 1900]. Pequenos aguaceiros, ainda insufficientes para augmentarem as aguadas. ...
Em todo o caso tem trazido alguma animação para os lavradores. Deus permita que não nos falte de todo; porque então será pior a emenda do que o soneto. Os homens suam, esbofam-se a esmorecerem; os animaes de trabalho açodados perdem a energia e o vigor, a passarada recolhe-se á bastidão do arvoredo, onde não é dado ao grande astro penetrar; as plantas deixam langues pender a folhagem, num desânimo de doente que se conformou já a morte. No meio da desolação, do aniquilamento geral, uma orgia de luz triunphante ostenta-se com a crueldade de um lord archimilionário e farto que vê morrer de inanição um miserável proletário.
o fogo, o brilho faiscante da natureza é como que um sarcasmo atirado às faces dos tristes que morrem de fome e de miséria nessa ensenação deslumbrante e grandiosa da Creação.
No fundo das grotas a vegetação tem a cor nogenta do pus, nos taboleiros a terra despio-se de sua roupagem côr de esperança; nos comoros é a nudez desvergonhada e impudica que perderam o sentimento da própria dignidade, dos enjoados, dos náufragos, dos que são castigados com as grandes desgraças. E morre-se assim no meio desta apotheose, deste fulgor dos astros.




Desde os primeiros povoadores, comumente faziam-se roças às margens dos rios, fontes, riachos e lagoas. As lavouras afastadas desses mananciais dependiam diretamente das chuvas, numa região marcada por longos e assíduos períodos de seca. Na verdade, a seca prejudicava até mesmo as lavouras fixadas às margens dos mananciais já que na maioria dos casos estes secavam durante um longo período sem chuvas.
De um modo geral, a irrigação não participava da tradição agrícola de Feira de Santana, no entanto, a pesquisa localizou referência a esse sistema em 1912. Trata-se de uma Ata da
Câmara em que o vereador Auto Reis propõe a mediação do intendente num pedido ao Governador do Estado e ao Ministro da Agricultura para que fossem implantados em Feira de Santana sistemas de irrigação. A proposta do vereador foi I unanimemente aprovada (FEIRA DE SANTANA, 1912).



As estiagens mais longas também causavam transtornos à embrionária zona urbana de Feira de Santana: secavam fontes públicas, o comércio era prejudicado pelo esvaziamento populacional que reduzia a quantidade de fregueses a ponto I de forçar que alguns estabelecimentos fechassem as portas. I A feira livre que batizou a cidade era inapelavelmente suspensa.


Os mais ricos - conforme afirmamos anteriormente - fugiam para o litoral, os mais pobres migravam, adoeciam, morriam de I fome. A cidade, sem condições de atender seus próprios doentes e famintos, recebia levas de migrantes - com dolorosas I experiências de seca e miséria - expulsos pela pobreza de I outras localidades e estados nordestinos também vítimas das estiagens prolongadas. Mas, confiantes, esses homens deixavam-se levar pela ilusão de sobrevida para uns e de fortuna I para outros. Ilusão criada por uma cidade com intensa atividade comercial, mas c~m restrita oferta de empregos. Atividade I comercial - uma das mais intensas do Brasil - que sustenta e I define a identidade cultural de Feira de Santana e se afirma a I cada dia, e que nem a industrialização (década de 70, século XX) conseguiu sequer assustar. A seca era problema vivenciado por todos. A Folha do Norte, jornal feirense, edição de 5 de. março de 1938, noticiou o seguinte episódio, publicado pelo O Propulsor, de 5 de março de 1899:


Se não fosse conseqüência dos grandes males ocasionados pela secca que nos flagela, seria o caso de troçarmos, emvez de transmitirmos penalizados a notícia do facto que quarta-feira presenciamos nesta cidade.
Era, mais ou menos 9 horas do dia, quando vimos partir, da porta dos distinctos commerciantes, Antonio Guerra & Com.,um pequeno carro, semelhante aos que são puchados por juntas de bois, carregado de mercadorias e arrastado por quatro homens!
O referido carro seguiu com destinmo à freguesia do Riachão do Jacuhype que dista 14 léguas desta cidade.
Até onde chegam as conseqüências da secca!!!




O aparecimento de migrantes era o sinal humano de que logo a seca chegaria a Feira de Santana. Eles eram chamados de retirantes e geralmente chegavam de trem. Da seca de 1896 até meados de março de 1904, eles somaram 1.791 pessoas. O socorro às vítimas pobres da seca transitava desde a doação de alimentos, assistência médica, apoios dispensados pelos comissários designados pelo Presidente da Província, até ofertas de trabalho (o que hoje chamamos "frentes de trabalho") para a construção de açudes, dinamitações, ampliação e drenagem de lagoas, dentre outros encargos.


... Em nossos terrenos existem vales profundos, de gargantas apertadas, que estão mesmo a pedir um pouco de alvenaria: uma parede sólida capaz de represar as águas que nas quadras invernosas descem dos vértices das encostas para o fundo dos declives. E ali estava um lago para fertilizar os terrenos, para impedir a emigração forçada e para evitar ao lavrador os prejuízos que lhe causam o abandono de sua roça, de sua casa, de seular enfim, quando lhe foge a última esperança,comofugiram d’aquelles que agora passam pelas ruas desta cidade em busca de lugares mais felizes . (O PROPULSOR, 1898)




(CONTINUA , AMANHÃ, QUARTA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 2010)

Nenhum comentário:

Postar um comentário