FEIRAS E CIDADES: VERACIDADES
FEIRA LIVRE DE FEIRA DE SANTANA: 33 ANOS DE EXTINÇÃO.
AGONIA E MORTE DE UMA FEIRA NORDESTINA (1977-2010)
“a chuva são as nossas lágrimas, a feira livre jamais será tão movimentada como nos tempos atrás, no Centro de Abastecimento 'tou' com medo de não vender minhas mercadorias, sei que vamos ter muitas dificuldades, a mudança será a desgraça de muita gente compadres.”
(Manoel Bartolomeu, vendedor de verduras, no último dia da feira)
Vicente Deocleciano Moreira
Noite de sexta-feira.
O centro de Feira de Santana ainda não se recuperara de mais um dia de agitação, de barulho, de um estranho movimento de caminhões carregados de mercadorias, e a feira já começava, timidamente, a iniciar seus primeiros passos em direção ao dia maior - segunda-feira. Começavam a chegar, de vários municípios, os primeiros caminhões e os varejistas de horti-fruti-granjeiros faziam suas compras e discutiam preços com atacadistas e produtores.
Há quem afirme que a feira começava na quarta-feira com os vendedores
de frutas, verduras, flores e passarinhos em frente ao Mercado Municipal, na
Avenida Getúlio Vargas, Rua Marechal Deodoro, Praça João Pedreira e encontrava a outra quarta-feira, semanalmente. Estes vendedores, denominados "ambulantes estacionados", pela Prefeitura, ocupavam espaços definidos pela Secreta-
ria Municipal de Serviços Urbanos. Embora integrados à velha feira, estes vende-
dores a ela sobreviviam após as segundas-feiras, ininterruptamente.
Aos sábados, as Praças João Pedreira e da Bandeira, as Ruas Desembargador
Pedro Francelino, Marechal Deodoro, Barão de Cotegipe, Sales Barbosa e Intendente Abdon e, também, as Avenidas Getúlio Vargas e Senhor dos Passos já apresentavam movimentação diferente e um clima de intensa expectativa, criado por algumas barracas que amanheciam armadas e só eram recolhidas às 18 horas. Nas primeiras horas da tarde dos domingos, porém, eram novamente levantadas e se juntavam às demais, seguindo o movimento de consumidores antecipando compras e de carroças, caminhões, carretas e animais que traziam mercadorias. Alguns feirantes aproveitavam o domingo para vender nas feiras do Tomba, da Rua Nova, do Sobradinho, da Cidade Nova e de outros bairros de Feira de Santana.
Segunda-feira, dia maior da grande feira nordestina. Este dia nem sempre foi a segunda-feira. Até 25 de dezembro de 1854, era a terça-feira, depois mudou para o domingo e, em 31 de julho de 1974, o Padre Ovídio de São Boaventura influenciou para que a feira grande se realizasse às segundas-feiras; talvez a feira tenha permanecido seus derradeiros cem anos nesse dia da semana até — 10 de janeiro de 1977- sua última segunda-feira, por decreto municipal.
Diversos produtos horti-fruti-granjeiros provinham de municípios baianos
e de outros estados. Vendiam-se, também, produtos avícolas, peças para eletro-
-domésticos, carnes, etc. A feira era entreposto comercial e, nesta condição, congregava pessoas de mais de oitenta municípios baianos e distribuía, para a região, artigos de plástico vindos de São Paulo, peças de pano vitrificado de Sergipe, cachaça de Minas Gerais e do Nordeste, principalmente de Pernambuco, Alagoas e Paraíba.
Cerca de cinco mil e quinhentos feirantes ocupavam a área de oito quilômetros quadrados da feira, com suas barracas e pontos. A grande feira era dividida em feiras menores, a exemplo da feira da banana de um lado da Praça João Pedreira e, do outro, os vendedores de carne-do-sol e toucinho. A subfeira dos móveis ocupava trecho da Rua Marechal Deodoro e a de madeira, o final da Avenida Getúlio Vargas. Camelos e vendedores de confecções tinham ponto em frente da Igreja do Senhor dos Passos. No interior do Mercado Municipal, farinha, cerâmica, louças, pássaros, caças, artesanato... cada tipo de mercadoria, cada ramo, ocupava espaços definidos e constantes.
A "feirinha" - espaço bastante frequentado pelos boémios, feirantes e fregueses — era um conjunto de barracas que vendiam comidas e bebidas típicas desde a madrugada das sextas-feiras, à luz dos fifós, e ao som de pandeiros, zabumbas, sanfonas... que silenciavam nos primeiros clarões da manhã, saudando os primeiros compradores de verduras e hortaliças frescas para, depois desse breve intervalo, recomeçar a música. Sentados às mesas coloridas por toalhas e flores de plástico, os fregueses saboreavam o tradicional ‘feijão de macaco’ com ensopado de boi (porco ou carneiro), depois da "fòia pôde" (cachaça com ervas em infusão).
Baganeiros (vendedores de frutas e verduras), carregadores (inclusive aqueles que cobravam "um trocado" para levar compras ao ônibus ou ao táxi) e fregueses disputavam espaço, palmo a palmo, com vendedores de óleo de peixe elétrico, do peixe-boi, banha de tartaruga do Mar Sagrado, purgantes, pomadas contra calos, etc., que gritavam as vantagens dos produtos que negociavam através de rudimentares equipamentos de som. Rodas de fregueses, feirantes e turistas ficavam, horas e horas, apreciando o espetáculo de violeiros, repentistas, cantores... "o homem que engole fogo, vidro e prego", "as mulheres rumbeiras", "a mulher que vira gorila, lobisomem"... eram shows de artistas ambulantes, improvisados no interior de barracas fechadas ou de galpões de zinco, que atraíam centenas de pessoas, principalmente turistas. Vendedores de Cordel ("Lucas da Feira, o escravo libertador", "O valente Lampião e Maria Bonita", "A moça que tomou a pílula"...) se encarregavam de ocupar o que havia de espaço livre nas calçadas, praças e ruas.
A Feira do Gado
A feira do gado seguia a rotina semanal da feira livre, mas era realizada nos Currais Modelos, inaugurados em 1962. A feira do gado congregava pecuaristas e vaqueiros nos interesses da compra e venda, da condução, passagem e matança de animais. Esta feira configurava paisagem humana peculiar. A velha balança, instalada em 1926 pelo Poder Municipal, a vaquejada, o artesanato, a venda de laticínios e de lembranças de Feira de Santana eram atrações à parte.
As primeiras feiras de gado começaram em fins de 1713, no (então) arraial de
São José das Itapororocas. Posteriormente, mudaram para os limites territoriais
da vila (depois cidade) de Feira de Santana. Os acertos iniciais para a compra e
venda do gado-em-pé eram realizados próximo à Ponte do Rio Branco e os negó-
cios, fechados na Rua Visconde do Rio Branco (em frente ao Feira Ténis Clube).
Depois, construiu-se o primeiro curral ou "campo de gado" na "Gameleira" - área entre a Praça D. Pedro II, Rua Carlos Gomes e começo da Avenida Senhor dos Passos. O segundo campo no espaço que, posteriormente, foi preenchido pela Biblioteca Municipal Arnold Silva e pelo Colégio Municipal Josélia Falcão de Amorim. O último, localizava-se no bairro da Queimadinha e atestou a decadência dos "campos de gado".
Queixas Contra a Feira
A velha feira livre sobreviveu de teimosa seus bem-vividos cem anos. Sua história é a saga da resistência contra a pressão de interesses públicos e particulares. Ao longo da vida da feira, estes interesses desfiaram um rosário de queixas e acusações contra sua permanência no centro urbano de Feira de Santana. Queixas, acusações, pressões, interesses de variada ordem... tudo isso era imbuído de poder e de influência bastante fortes sobre o poder e de influência bastante forte sobre o poder público - se bem que o sonhado (por alguns) último dia de feira tivesse sofrido vários adiamentos, durante os cem anos finais da velha feira livre.
Apesar de a feira descontentar a alguns ao longo de cem anos, somente em 1966 foi elaborado projeto capaz de exterminá-la. Assim mesmo, este projeto só constituiu pressão mais ameaçadora em 1976 e, no ano seguinte, foi executado. Em 10 de janeiro de 1977, o Projeto Cabana (como foi denominado o pla no de transferencia dos feirantes e barraqueiros para o Centro de Abastecimento) sufocou o último fôlego de resistência da velha feira, uma das mais importantes do Nordeste brasileiro.
A última segunda-feira.
Dez de janeiro de 1977, segunda-feira - ùltimo dia da feira livre, por decreto do Poder Municipal. Feira de Santana amanhecera acinzentada por uma fina e incessante chuva que caía sobre a cidade desde a madrugada. A seguir, o clima psicológico desse último dia nas entrelinhas de trechos transcritos da notícia "Centro de Abastecimento substitui a grande feira", publicada no jornal A Tarde (Salvador), edição de 12 de janeiro/1977, p.2. cad. 2:
Parece até que todos estavam mudos, não se ouvia os gritos dos barraqueiros oferecendo seus produtos, nem o corregador de cesto a pedir às 'madames' para levar as compras ou o vendedor de farinha a dizer 'É farinha de copioba patroa, prove aqui prâ ver a delicia', o vendedor de verduras a marcar: 'olha o tomate de Jaguaquara e o feijão delrecê'. Todos estavam silenciosos, até mesmo aqueles que faziam compras, co certa dificuldade em decorrência do lamaçal provocado pelas chuvas, talvez solidários com os feirantes, barraqueiros e vendedores ambulantes que vendiam seu produtos pela última vez no centro da cidade, uma vez que a partir do próximo sábado a feira livre será no Centro de Abastecimento.
Em sua barraca na Praça João Pedreira, Joaquim Pedreira que há mais de 30 anos vende came-do-sol, toucinho e outros produtos, enquanto vendia suas mercadorias comentava com João Apolinário, o vendedor de farinha de copioba, sobre a mudança da feira livre dizendo:
[Cerimônia popular do adeus]
'Apolinário tu está vendo o castigo homem, Deus não vai concordar com o que estão fazendo com a gente, esta chuva é um sinal de que Deus chora por nós Apolinário', ao que ele retrucou - 'nada disto homem, a chuva foi uma coincidência, garanto a você que se a feira já estivesse hoje lá no Centro de Abastecimento, a minha farinha não estaria toda molhada'. Mais adiante estava Manoel Bartolomeu, vendedor de verduras, protegendo-se da chuva embaixo de um pedaço de plástico, que atento às conversas de Apolinário e Joaquim, após tirar uma longa pitada do cachimbo gritou: 'a chuva são as nossas lágrimas, a feira livre jamais será tão movimentada como nos tempos atrás, no Centro de Abastecimento 'tou' com medo de não vender minhas mercadorias, sei que vamos ter muitas dificuldades, a mudança será a desgraça de muita gente compadres. '
Indiferentes à conversa dos três homens os turistas de máquina em punho faziam as suas últimas fotos, entre um compra e outra, davam risadas dos 'tabaréus' todos molhados”. (jornal A Tarde. Salvador, 12 de janeiro/1977, p.2. cad. 2)
FIM.
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Obs.: - Os dois textos sobre a extinta feira livre de Feira de Santana, postados neste Blog, foram extraídos e/ou estabelecidos desde avulsos do Projeto Memória da Feira Livre de Feira de Santana (sob coordenação do Prof. Vicente Deocleciano Moreira) que estão disponíveis em versões integrais e ‘datadas’ no portal da Universidade Estadual de Feira de Santana (http://www.uefs.br/sitientibus/edicoes01-10.htm)
FONTE DIRETA - Blog http://www.viverascidades.blogspot.com
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