sexta-feira, 5 de março de 2010

FEIRA DE SÃO JOAQUIM - CONTINUAÇÃO

MOREIRA, Vicente Deocleciano – LAUDO ANTROPOLÓGICO DA FEIRA DE SÃO JOAQUIM – SALVADOR – BAHIA. Brasília – DF, República Federativa do Brasil, Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, janeiro de 2005.

TÁ GOSTOSO, MEU FIO?


Opiniões de estrangeiros, no século XIX, desenham uma Salvador suja. Suja para os padrões europeus de higiene, da época.

Assim, por volta de 1820, Maria Graham declarava que a cidade comercial era “sem nenhuma dúvida o lugar mais sujo em que eu tenha estado”, declaração com a qual concordava F. Denis considerando que esta parte da cidade era “o lugar mais feio da terra”. Anos mais tarde o inglês Kidder dizia que “a cidade baixa não oferece atrativos para o estrangeiro”, “a sarjeta fica mesmo no meio, de modo que a rua se torna asqueirosamente imunda”. Mas é o cônsul inglês Wetherell que viveu na Bahia entre 1843 e 1857 que nos deixou uma imagem bem mais forte: “De manhã ao se passar peãs ruas da cidade baixa, o nariz do transeunte é assaltado por uma profusão de cheiros” e isso devido sobretudo às diferentes frituras que se fazem ali exalando todas “um cheiro horrível” de tal modo que “não se pode agradar a ninguém permanecer ai a não ser a título de pura curiosidade” (345). (MATTOSO, 1969 : 174)


Ainda Mattoso (1969 : 175), ela mesma:

Cidade suja, mas cidade viva onde os gritos do vendedor ambulante, gabando duas mercadorias, era acompanhado pelo canto ritmado dos carregadores negros que iam levando pesados volumes de um canto para outro; cidade suja, mas cidade colorida, cidade alegre pelas vestes de seus habitantes, pela cor de suas peles.


Não existe o sujo ou o limpo como realidades absolutas; regras de higiene são transmitidas como regras culturais gerais (BOLTANSKI, 1969), daí que o que é sujo ou o que é limpo tem sempre valor referencial, normativo, para uma determinada cultura ... não necessariamente para todas as culturas. Douglas (1991) mostra como estes conceitos que remetem ao que é puro ou impuro guarda vínculos com preceitos religiosos, como é o caso do Judaísmo e do Cristianismo, no que diz respeito às prescrições do livro bíblico Levítico. O ar pode purificar como trazer doenças.

A leitura (que, espero, não cansativa) de citações referentes à Salvador do século XIX, pode servir de alerta para defender o Tombamento da Feira de São Joaquim e situa-lo como peça importante dentro do Projeto de Revitalização do bairro do Comércio. Pode servir de alerta, também, contra interesses alheios às demandas populares e à preservação de suas conquistas. Nas CONSIDERAÇÕES FINAIS deste Laudo, retomaremos esta reflexão. Retornando às críticas condenatórias tecidas, pelo dono da Empresa Edificadora contra a Feirinha do Peixe (suja, aldeia, etc.), são cabíveis algumas considerações:

1- Come-se peixe mesmo em lugares os mais distantes do mar ou de algum rio piscoso; mas não surpreende que, em aglomerados populacionais a beira mar, coma-se pouca carne de boi, carne vermelha;
2- Há pessoas que não suportam o odor de peixes, estejam eles frescos ou deteriorados;
3- O peixe, tão recomendado pelos médicos, não resiste fora da refrigeração; quando esta não existe nas condições minimamente desejáveis sua venda tem que ser realizada o mais rápido possível. Daí que os móveis sobre os quais o peixe é vendido, nas feiras, são precários porque compatíveis com a própria fragilidade da sua carne após a pesca. O mobiliário de apoio à venda de frutas, legumes, cereais é menos precário, menos provisório, porque tais produtos são mais duradouros que os peixes. Por tudo isto, as barracas da Feirinha do Peixe apareceram tão toscas - parece mais uma aldeia do que uma das Cidades mais civilizadas e mais importante do Brasil - aos olhos do proprietário da Empresa Edificadora. A estes mesmos olhos de século XIX (mas igualmente sob o olhar de tantos outros séculos – inclusive o atual, XXI) a feira era indesejável também possivelmente porque era lugar de pobres e negros. Pobres e negros “fediam”. Pobres e negros vendendo peixe “fediam” muito mais.



CORTE ESSE PEDAÇO DAQUI, FREGUÊS!

O que choca, provoca repulsa e, a um só tempo, fascina o espírito burguês da ordem e do bom senso não é apenas a decantada e generalizada “sujeira” da Feira de São Joaquim, mas também as atitudes “suspeitas” de algumas pessoas e vendedores suarentos, “fedorentos” a nos encarar, roçar e quase nos abraçar e beijar nas passagens mais estreitas, nos labirintos de onde a qualquer momento pode aparecer um minotauro.

Referindo-se à Paris do mesmo século (século XIX), Corbin (1987 185 e 193) faz a seguinte apreciação:

O burguês projeta sobre o pobre aquilo que ele tenta recalcar. A visão que ele tem do povo se estrutura em função da imundície. A fetidez do animal deitado sobre seu próprio excremento, em sua toca, constitui-se num modelo.

Choca aos espíritos obcecados pela limpeza (e pela ordem-e-progresso que a limpeza pode sugerir) os feirantes sem camisa, os pedintes, a “feiúra” das barracas da Feira de São Joaquim, a “desorganização” de seu traçado urbano (parecido com o da velha e bela Salvador) e de suas nove quadras, três ruas principais, as vinte e três transversais da sétima quadra, as nove da quinta quadra e as seis da nona quadra.

Para essas pessoas, especialmente nas classes médias, (...) esses lugares de desordem cultural, como as feiras, a cidade, o cortiço e a praia, tornam-se fontes de fascínio, desejo, nostalgia. (MERCER e SHELD citados por TELES, 2003 : 23)


(ATÉ AMANHÃ, SE DEUS PERMITIR, MEU FREGUÊS!)

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