sábado, 20 de março de 2010

MEMÓRIA E HIPOMNÉSIA NOS PROJETOS DE VIDA DE ADOLESCENTES: FEIRA DE SANTANA – BA

MEMÓRIA E HIPOMNÉSIA NOS PROJETOS DE VIDA DE ADOLESCENTES: FEIRA DE SANTANA – BA

(CONTINUAÇÃO)

NOTA METODOLÓGICA
Nesta pesquisa, optamos por um estudo de natureza quanti-qualitativa que nos permitiu explorar os dados de modo mais abrangente, além do que este estudo foi orientado pelo modelo denominado estudo de caso que para Triviños (1987, p.133-134) é uma categoria de pesquisa cujo objeto é uma unidade que se analisa profundamente.
Para Lüdke e André (1986), “o estudo de caso é o estudo de um caso, seja ele simples ou específico...”


Campo empírico e população do estudo


Inicialmente, fizemos um levantamento na busca das 33 estrelas que haviam participado do nosso estudo em 2000. Para isso, retornamos à Fazenda do Menor, para obter informações sobre cada um e localizá-los. Para facilitar o nosso trabalho, estabelecemos como critério que o jovem deveria estar morando em Feira de Santana, ter endereço definido para que pudéssemos localizá-lo. Na Fazenda do Menor obtivemos notícias de cada um; quem permanecia na instituição ou, mesmo tendo saído, mantinha o vínculo do trabalho com a mesma. Quem saiu antes de completar 18 anos, e outros focos de informação. Atendendo ao critério de morar em Feira de Santana e ter condição de ser localizado, conseguimos entrevistar 20 adolescentes, correspondendo a 66,6% do grupo original.
Optamos por começar as entrevistas com aqueles que moravam e/ou trabalhavam na Fazenda do Menor. Enquanto isso, tentávamos localizar os endereços daqueles que já tinham saído da Instituição, para fazermos a visita domiciliar (V D). Além da V. D, fizemos entrevistas também por telefone, pois, quando chegávamos ao endereço e não encontrávamos o jovem, deixávamos o recado, e ele em seguida mantinha contato conosco por telefone. Para a coleta de dados utilizamos a entrevista semi-estruturada com três perguntas norteadoras feitas a cada jovem individualmente.
É importante registrar que ficamos muito mobilizados em reencontrar todos aqueles adolescentes que participaram do nosso estudo anterior, e em sentir como fomos acolhidos carinhosamente por eles.
Para o tratamento dos dados procedeu-se a análise quanti-quanlitativa das transcrições das entrevistas, recorrendo-se a tabelas e a análise de conteúdo que de acordo com Triviños (1987) pode ser aplicada tanto na investigação qualitativa como na quantitativa.



Memória e hipomnésia nos projetos de vida

Perfil dos adolescentes: o que mudou?


Numa tentativa de estabelecer comparações, procuramos resgatar o perfil do grupo estudado em 1999 para que elas pudessem facilitar a compreensão daquele momento do grupo de adolescentes.



Dos adolescentes que fizeram parte desse estudo, no primeiro momento, 35% encontrava-se na faixa etária entre 13 e 15 anos e 65% entre 16 e 18 anos. Em 2002, 35% do grupo encontrava-se na faixa etária entre 16 e 18 anos e 65% entre 19 e 21 anos. Isto significa estar acima da faixa de idade estipulada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que define como adolescente a pessoa com idade entre 12 e 18 anos.



No que diz respeito à escolaridade, 100% dos adolescentes estudados cursavam o ensino fundamenta, em 1999. Em 2002, 90% desses adolescentes ainda cursavam o ensino fundamental e apenas 10% conseguiu ascender ao ensino médio. Isso faz pensar que, mesmo num percentual que pareça pouco significativo, é possível ao jovem institucionalizado conseguir cursar o nível médio desde que tenha oportunidade, interesse, motivação e condições de acesso à escola. Quanto aos que ainda estão no ensino fundamental os índices de repetência, evasão, gerando exclusão, além da falta de interesse e pouca motivação dificulta o alcance do nível de escolaridade mínima condizente com as exigências do mercado de trabalho.



Em 1999, 100% do grupo morava na instituição (Fazenda do Menor). Em 2002, 60% continuavam morando ali e 40% com familiares. Vale ressaltar que entre aqueles que continuam morando na instituição 50% estavam com 19 anos ou mais, refletindo mais uma vez, a problemática do jovem que completa 18 anos e não tem para onde ir. A Fazenda do Menor que o abrigou até os 18 anos, continua sendo a sua única referência. Para Macedo (2000), quando a instituição coloca a possibilidade para o indivíduo de lá permanecer após 18 anos, está fomentando uma atitude paternalista e cerceando outras possibilidades para o adolescente. Por pior – e traumático - que seja o processo de desligamento, a instituição tem que se planejar e preparar o adolescente para esse rito de passagem. De passagem para a vida sem a instituição.



Em 1999, 45% do grupo trabalhavam na Instituição; 25% na UEFS; e 30% não trabalhavam. Em 2002, 70% dos adolescentes trabalhavam na Fazenda; 10% na UEFS; 10% na comunidade e 10% não estavam trabalhando. Comparando-se 1999 e 2002 observa-se que os maiores percentuais de local de trabalho, concentrava-se na Fazenda do Menor. Nos estudos de Macedo, (2000) as estrelas eram estimuladas a trabalhar em setores como padaria, horta e granja – ocupações que permitiam remuneração para a compra de objetos pessoais e mandar algum dinheiro para ajuda familiar.



Quanto à ocupação, em 1999 o grupo que trabalhava na Fazenda do Menor exercia as seguintes atividades: ; 25% como office-boy na UEFS; 20% na agricultura; 10% serviços gerais; 10% na pecuária; 5% na padaria; e 30% sem ocupação. Em 2002, os adolescentes que trabalhavam na Fazenda do Menor estavam distribuídos nas seguintes atividades: 40% trabalha na fábrica de bola; 10% na padaria; 10% como office-boy na UEFS; 5% na agricultura; 5% serviços gerais; 5% instrutor de banda; 5% na pecuária;; na comunidade 5% como ajudante de pedreiro e 5% fazendo biscate e 10% sem ocupação. No estudo de Macedo (2000), o trabalho dentro da instituição possibilitava uma atividade, uma remuneração, mas a falta de regularidade no pagamento, desestimulava o grupo, que preferia trabalhar em locais fora da Fazenda a exemplo da UEFS. Na verdade, a garantia da remuneração regular, mensal, constituía-se num verdadeiro prêmio. Nesse momento, observamos que o maior percentual de ocupação estava concentrado ainda na Fazenda do Menor, o que nos leva a inferir quanto a dificuldade do jovem em ingressar no mercado de trabalho; os jovens tinham, então, que se ‘contentar’ com a oportunidade oferecida na Fazenda do Menor.




Em 1999, o salário mínimo (no Brasil) era, em janeiro, R$ 130,00 (cento e trinta reais); em dezembro, R$ 151,00 (cento e cinqüenta e um reais). Em janeiro de 2002, o salário mínimo equivalia a R$ 180,00 (cento e oitenta reais); com vigência a partir de abril, passou a R$ 200,00 (duzentos reais).
Tratando-se da variável remuneração, em 1999 70% do grupo ganhavam menos de um salário mínimo e 30% não tinha remuneração. Em 2002, 10% ganhavam um salário mínimo; 80% menos de um salário mínimo e 10% não tinham qualquer remuneração. Macedo (2000) chama a atenção quanto a necessidade de a instituição oferecer alternativas de capacitação no mercado de trabalho que facilitasse a inserção do jovem após saída da instituição. Em 2002, observamos que a maioria continua ganhando menos de um salário mínimo, indicando que esses adolescentes prosseguem vitimas das desigualdades sociais: a baixa escolaridade e a elementar qualificação dificultam ainda mais a inserção no mercado de trabalho. O ECA assegura que o adolescente aprendiz (maior de 14 anos) direitos trabalhistas e previdenciários.
Chamou-nos a atenção nesse estudo que, do grupo estudado, 80% não se lembravam do projeto de vida construído há mais ou menos três anos atrás. Recorremos assim a Campbell, (1986) que nos fala de uma hipomnésia episódica quando determinados fatos e experiências são esquecidos, experiências estas carregadas de significados; o esperado era que o indivíduo lembrasse, sobretudo quando se observa que a memória permanece intacta em outros aspectos.
Ao estudar projeto de vida do adolescente, Macedo (2000) nos diz:



Vislumbrando o projeto como o que pode vir a ser, o indivíduo tenta, através do presente, entrever o futuro. Mesmo que esse futuro se apresente incerto, sem muitas perspectivas positivas, não se pode negar a capacidade que o ser humano tem de sonhar, e em especial, o adolescente, porque nessa fase ele tem uma certa desorientação temporal, convertendo o tempo em presente e ativo, tentando manejá-lo.



Com esta visão é possível explicarmos o fato de a maioria dos adolescentes não lembrar o projeto de vida construído em 1999. Associado a isso inferimos que as permanentes reestruturações internas e externas em busca do equilíbrio, (discutido por Aberastury e Knobel referido pela mesma autora) possam ter influenciado, sobremaneira, nessa dificuldade de fixar e evocar as lembranças.
Com essa compreensão, pode-se somar a esses fatores, a própria condição sócio-econômica dos adolescentes desse estudo, se considerarmos que estes vivem numa realidade perversa, desigual, excludente e que quando se vêem sem alternativas passam da visão probabilística para uma visão determinista da realidade, ou seja, não se considera a filosofia da possibilidade e sim a filosofia da necessidade.



A construção do projeto (de vida) é um processo que tem início com a idealização, o sonho, algo que se quer alcançar. (MACÊDO, 2000. ) Para isso estabelecemos metas, que a depender do tipo de projeto, podem ser de curto, médio e longo prazo.
Entendido como um conjunto de possibilidades ele pode vir a realizar-se ou não. Para essa realização, se faz necessário algumas conpetências e isso já era reconhecido pelos adolescentes do estudo de Macêdo (2000).
Algumas condições são apontadas por Lorimier ainda em Baldivieso e Perotto (1995, p.44) como necessárias, durante a adolescência para a formação do projeto de vida:


1- Situação correta na perspectiva temporal.

2- Domínio de si mesmo.

3- Definição de finalidades e tarefas que o adolescente deseja alcançar a médio e longo prazo.

4- Aquisição das competências necessárias e inserção no mundo do trabalho e dos adultos.

5- Síntese de sexualidade e amor.

6- Relação não ambivalente com autoridade, que favoreça a independência e responsabilidade.

7- Eleição de uma escala própria de valores.



Neste estudo, fizemos um retorno das falas dos adolescentes (estrelas) àquela época (1999) - transcritas de Macedo (2000) - sobre a construção de seus projetos de vida para facilitar nossa compreensão daquilo que foi sonhado em 1999 e do que foi realizado em 2002. Vale ressaltar que, em 2002, 65% dos adolescentes tinham como certo que estavam realizando seus projetos de vida. Shaula trabalhava como office-boy na UEFS e tinha como projeto “estudar e trabalhar”. Hoje, trabalha na padaria da Fundação de Amparo ao Menor de Feira de Santana (FAMFS), e deu o seguinte depoimento: “não estou estudando no momento, mas quero me formar em Direito”.
Rigel também foi office-boy na UEFS e em 1999 projetava “...trabalhar, casar e ter filhos.” Em 2002, o encontramos triste, mas esperançoso. Triste porque estava desempregado há 06 dias, mas esperançoso porque alimentava outro projeto:
“...tô lutando prá comprar uma casa”.
Tem esposa e uma filha de 1 ano e 2 meses. Avaliava que estava realizando o seu projeto de vida e nos diz:
“...a partir do momento que comecei a trabalhar já comecei realizando o meu sonho”.
E acrescenta: “Deus é maravilhoso, sempre na dificuldade não falta...”.



Macêdo (2000) opina que valores como trabalho, moral e bem, fé poderiam ter influenciado na construção do projeto de vida daquelas estrelas. Vejamos o exemplo de Sirius que enfatizava a honestidade e o trabalho como balizadores para o seu projeto de vida:
“...quero ser honesto como sou e trabalhador”
Em 2002, Sirius tinha companheira e uma filha, fazia biscate (limpa fossas, capina) falou das dificuldades que vinha enfrentando para arranjar um emprego, e apesar de tudo, considerava estar realizando o seu projeto:
“...continuo sendo honesto e trabalhador”



Relatou que parou de estudar e que 2003 traria novas oportunidades. Macêdo (2000) ao discutir a formação de valores e, entre outros, o valor moral e (genericamente) o bem, se apoiou em Schopenhauer (1995) para comentar que “o caráter e virtudes (honestidade, bondade, escrúpulo) têm sido uma preocupação da moralidade”. Sirius ao enfatizar a questão da honestidade como centro de seu projeto de vida reforça o que a referida autora pensa sobre isso:



Se a honestidade é valorizada por um indivíduo, ele tudo fará para ser honesto, não como algo que deve ser visto como excepcional, mas porque é necessário que ele seja honesto e assim conduzir-se. (Macêdo, 2000, p.168)



Construção de projetos de vida na área de esportes como das estrelas Deneb e Hama - que queriam, em 1999, “jogar futebol” - quando resgatamos suas falas e as comparamos com o que estavam fazendo realmente, no ano de 2002, vimos que trabalhavam na fábrica de bola ( FAMFS) e, embora diferentemente do projeto de 1999, estavam seguros de que realizavam o seu projeto de vida pois estavam trabalhando numa área que “tinha a ver” com esportes. O próprio Deneb, entusiasmado, nos disse:
“...estava treinando mas parei, fraturei o dedo, tava até inscrito no campeonato feirense”...



Esta fala nos remete a Baldivieso e Perotto (1995) referidos por Macedo (2000), quando discorrem que ser comprometido com o projeto de vida (umas das características do projeto) gera um grau de compromisso e, com este, a responsabilidade, assegurando assim o salto qualitativo para o futuro.
Apoiada em Baldivieso e Perotto (1995), para Macêdo (2000) na adolescência se integram três projetos básicos: o profissional, o matrimonial e o de significado da vida.



Àquela época (1999), algumas estrelas como Kochab, Spica, Castor, Hadar, queriam “casar, trabalhar, estudar, construir família”. Em 2002, estes adolescentes estão trabalhando na Fazenda do Menor, na fábrica de bola, agricultura, ou como office-boy da UEFS, e realizam seu projeto, ”estudando”, “se dedicando ao trabalho” ou “tomando curso”.



No nosso entendimento esses adolescentes precisam de oportunidades, de pessoas que acreditem na capacidade que eles têm de realizar os seus projetos, à sua maneira. Na sua modéstia, não importa... Modestas são as suas realizações, porque seus sonhos são modestos. Tão modestos e comuns como os sonhos de qualquer outra pessoa.
Mais importante que tudo isso, é ver que aquelas estrelas continuam brilhando, não se marginalizaram, não se corromperam. Enfrentam dificuldades? Sim, por que não?


Afinal, a sua trajetória, sempre foi assim, difícil, cheia de percalços e sofrimentos. Mas eles não desistem e insistem!! E, parodiando Gonzaguinha,, seguram a batida da vida o ano inteiro. Mas anseiam por uma oportunidade. E essa oportunidade, alguém tem que ter a coragem de dar, porque convenhamos, é cruel exigir experiência de alguém que jamais teve a chance de, no trabalho, construir essa exigida experiência. Anseiam por uma primeira vez, uma primeira chance.


É responsabilidade nossa abrir esse leque de opções que a vida pode oferecer. E ajudar esses adolescentes a trilhar o caminho das realizações.

(AMANHÃ, DOMINGO, A PARTE FINAL DO ARTIGO)

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