sexta-feira, 26 de março de 2010

AGUAONIA OCULAR DE UMA CIDADE CEGA (4)

AGUAONIA OCULAR DE UMA CIDADE CEGA (4)
SECA, AGRESSÕES AMBIENTAIS E QUALIDADE DE VIDA EM
FEIRA DE SANTANA (BAHIA) - SÉCULO XIX - SÉCULO XX

Vicente Deocleciano Moreira
vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com
http://www.viverascidades.blogspot.com

(CONTINUAÇÃO)


Lagoa do Prato Raso


Em edição de S de agosto de 1940,.a Folha do Norte reportando-se a notícias de igual data de 1822 - informa que a Câmara notificou Benigno Vidal, responsável pela construção do pontilhão integrante da estrada que ligava o centro da cidade ao então subúrbio (hoje bairro) 40 Sobradinho. A obra não oferecia "solidez necessária" e seu construtor foi notificado para que, em breve, “realise de pedra e cal semelhante obra, . sob pena de repor tudo a seu primitivo estado”.


Sob a ponte passavam (e continuam passando) as águas que vêm do riacho Prato Raso (Riacho Principal ou Riacho do Meio). A Lagoa do Prato Raso não mais existe: sucumbiu a uma invasão (esgoto a céu aberto, crianças doentes, muriçocas e outros insetos) que, dia após dia, liga o bairro da Queimadinha à Avenida José Falcão - sem que ninguém se indigne ou se espapte com tamanho absurdo. A lagoa vem sendo, há décadas, soterrada e os "terrenos" vendidos impunemente como se continua vendendo "lotes" às margens de tantos outros aqüíferos e nascentes localizados em Feira de Santana.


O Riacho do Meio (na verdade, é o Esgoto do Meio), recebe o esgoto da elegante Avenida Maria Quitéria e adjacências - esgoto que invade a poça na qual estão mergulhados os pés das lavadeiras da fonte de Lili. Esse esgoto segue adiante, invade o que resta da Lagoa do Prato Raso ... passa pelo Centro de Abastecimento ... e vai em frente... deixando por onde passa as marcas dessa tragédia ambiental e sanitária, invisível para os olhos que não querem ver. Resta a alvenaria, citação da arqueologia urbana feirense construída em 1822. A Lagoa do Prato Raso, a exemplo dós demais corpos d'água de Feira de Santana, sempre esteve 'a carecer de cuidados e higiene. Por exemplo, em 5 de fevereiro de 1890 há mais de um século, portanto - a comissão de obras da Câmara foi autorizada a fazer o orçamento necessário


para limpar e cavar a lagoa denominada "Prato Raso" - sita ao entrar n'esta cidade pela estrada de S. José. Mandou-se que fosse rigorosamente observada a postura que prohibe escavações' no perímetro da cidade, e dos arraiais do Município (...)
(FEIRA DE SANTANA, 1890)


Observa-se que, pelo menos até a primeira metade do século XX, a Lagoa do Prato Raso estava localizada fora .do perímetro urbano de então, ou seja, na estrada de São José (hoje, se ainda estivesse viva a lagoa se situaria em pleno centro da cidade, avenida José Falcão). Na verdade, tratava-se de um espaço suburbano, tanto quanto o era o subúrbio (atual bairro) do Sobradinho. O orçamento para as obras da lagoa mostrou-se proibitivo aos cofres municipais que, por - isso mesmo, foram socorridos pelo Governo Provincial da Bahia em quatro contos de réis. Metade dessa verba destinava-se às obras da lagoa, e metade para pagar os retirantes (como eram chamados os migrantes) das frentes de trabalho contra a seca.
Na segunda quinzena de março de 1890, as obras da Lagoa do Prato Raso estavam em pleno andamento. Mas, por usarem explosivos, essas obras não raras vezes feriam os trabalhadores. Havia outros prejudicados, a exemplo de Pedro Gomes de Sá que requereu indenização (quinhentos mil réis) pois era das pedras do leito da lagoa que ele tirava a sobrevivência. O Intendente indeferiu o pedido, alegando que a lagoa era de servidão pública, há muito tempo O Poder Público Municipal tentava - a s~u modo e sob as limitações de tecnologia e de consciência ambiental da época - enfrentar os problemas de abastecimento d'água e de preservação das lagoas e fontes. Esta avaliação é pertinente quando estamos nos referindo às administrações entre 1833 e meados do século XX; não justifica, porém, o abandono e a indiferença com que as administrações das últimas décadas daquele século trataram as lagoas e mananciais da cidade e do município de Feira de Santana. O fato de se tratar de administrações mais informadas sobre questões ambientais e com mais recursos financeiros e humanos tende a tornar mais ácidas as críticas ao quadro ambiental e sanitário do município.


O Poder Público Municipal


As primeiras leis e posturas elaboradas pela Câmara Mu- nicipal de Feira deSa~tana, no momento de sua instalação em 18 de setembro de 1833, privilegiaram a problemática, diríamos hoje, ambiental das lagoas. Essa atitude alcançava, também e por extensão, a questão do abastecimento d'água que até 1952 (ano da instalação da água encanada em Feira de Santana, vale lembrar) dependia exclusivamente das lagoas. Em 1833, a Câmara proibia que fosse jogado tinguí (ou timbó) nas lagoas e rios. Esse arbusto, inofensivo para o homem, era mortal para os peixes; daí seu uso freqüente pelos pescadores ... um hábito herdado dos índios Paiaiá que viviam na região antes-da chegada dos colonizadores. Reunida em sessão extraordinária, em 8 de abril de 1886a Câmara estabeleceu as seguintes Posturas:



É prohibido lançar nos rios, lagoas, ou outras quaisquer aguadas animais mortos ou matérias nocivas a saúde, sob pena de dez mil reis ao contraventor (...) A ninguém permittido embaraçar o transito publico ou obstruir de qualquer modo as ruas e calçadas d' esta cidade e dos arraiais, as estradas, tanques, rios, fontes publicas e passagem do município, sob pena de cinco mil reis de multa ao contra, e este, avisado pelo fiscal, não fiser a remoção do embaraço que causa a obstrução será aquella feita, e por ordem da câmara, a custa do me.ymo contraventor (.~.) " Depois dá publicação das presentes posturas, ninguém poderá ter carros, carroças ou animais para conducção de gêneros ou materiais, ou para vendagem d'água, sem que primeiro não obtenha a reSpectiva matricula na procuradoria da câmara pagando dois mil reis por carroça, e mil reis por cada animal, em prejuiso do imposto orçamentário. Ao infractor será imposta a multa de cinco mil reis (,..)
(FElRADE SANTANA, 1886). .


Em 1855, durante a epidemia de cólera, o Legislativo Municipal pagou homens para que queimassem arbustos aromáticos, com vistas à purificação do ar, já que então considerava-se os eflúvios emanados pelas lagoas e pântanos (miasmas)\ como causas da mencionada doença. Em 1 Q de março de 1888 a Câmara, em sessão ordinária, fixou t~é} de dois mil réis (100% de aumento em relàção à taxa piáti:cada em 1886) por animal utilizado na venda de água, em barris, na cidade, O jornal O Propulsor (edição de 12 de março de 1899) publicou o seguinte aviso, de conteúdó policial:


AVISO

Não poderão os aguadeiros e carroceiros andar de manguá com cabo de pau, salvo se for fino e com um palmo de tamanho, nem ,também soltar os animaes ou espanca l-os. Feira 8-3-89. Alferes Fonseca
(O PROPULSOR, 12 de março de 1899).


‘Manguá’ era a correia usada para açoitar os animais. Curiosamente, dois anos depois (sessão ordinária de 20 de março de 1990), um vereador solicitou medidas visando proteger os animais que conduziam carroças com barris d' água. Na competição por fregueses os aguadeiros maltratavam e espantavam,som perversidade, os animais para que fossem mais rápidos e eficientes - o que deixava o povo e ,os políticos indignados.


A gravidade da situação, criada por repetidos episódios de seca e suas conseqüências socioeconômicas e políticas, obrigava que o Poder Municipal tomasse empréstimos, buscasse soluções, não só através de construção e reparos de fontes e aguadas, mas com a ampliação do~ mananciais. Reuniu esforços para implantar um sistema de abastecimento d'água moderno (para a época) e alternativo aos tradicionais serviços dos aguadeiros.


As fontes públicas e particulares seccam progressivamente e, para obter-se água potável, já vae-se tornando necessário o empenho por parte de pessoas 'gradas que pessoalmente vão ou mandam pedil-a ao coronel Miguel Ribeiro que, por sua vez, não pode attender a todos devido a escassez desse necessário líquido, outr' ora tão abundante, na conhecida fonte do "Vallado".
A continuarmos sem chuvas por mais alguns dias teremos de, muito em breve breve, recorrer à Estrada de F erro para trazer-nos água de outros mananciaes. (...) Va-Lha-nos Deus
(O PROPULSOR, 1900).


(AMANHÃ, SÁBADO, DIA 27 DE MARÇO, FINAL DO ARTIGO)

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