quarta-feira, 13 de outubro de 2010

MINAS AINDA HÁ. MELHOR ASSIM (3 - FINAL) - Vicente D. Moreira

MINAS AINDA HÁ. MELHOR ASSIM (3 - FINAL) - Vicente D. Moreira



Por toda terra que passo
Me espanta tudo o que vejo
A morte tece seu fio
De vida feita ao avesso
O olhar que prende anda solto
O olhar que solta anda preso
Mas quando eu chego
Eu me enredo
Nas tranças do teu desejo

O mundo todo marcado
A ferro, fogo e desprezo
A vida é o fio do tempo
A morte é o fim do novelo
O olhar que assusta
Anda morto
O olhar que avisa
Anda aceso
Mas quando eu chego
Eu me perco
Nas tramas do teu segredo

Ê, Minas
Ê, Minas
É hora de partir
Eu vou
Vou-me embora pra bem longe


A cera da vela queimando
O homem fazendo o seu preço
A morte que a vida anda armando
A vida que a morte anda tendo
O olhar mais fraco anda afoito
O olhar mais forte, indefeso
Mas quando eu chego
Eu me enrosco
Nas cordas do teu cabelo

Ê, Minas
Ê, Minas
É hora de partir
Eu vou
Vou-me embora pra bem longe


(“Desenredo” de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro)



Janeiro de 1974. Era hora de partir de Minas. E de carregar a frustração de não poder dispensar a estrada e a viagem. E ficar morando esquecido numa daquelas cidades ‘esquecidas’ que mais pareciam, em suas irrealidades cotidianas, com alguma das cidades invisíveis de Ítalo Calvino (”As cidades invisíveis” livro de I. Calvino)

Idosos que olhavam um oceano distante. Olhos pequenos e felinos de velhos, olhos cuja moldura exibia as marcas do cinzel do tempo. Olhos espreitadores como só aqueles cantados pelo poeta Ferreira Gullar.

Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do
país
- e espreitam.


(Ferreira Gullar)


Os olhos daquelas cidades e de seus filhos eram, naquele distante janeiro de 1974, olhos de profecia Assim constatei depois que assim teria sido em janeiro 1974. Eu não vi o futuro urbano que aqueles olhos velhos (que já tinham visto ‘como uns danados’ no dizer de Caeiro/Fernando Pessoa)enxergavam. E que esperavam por algo que imaginavam/fantasiavam/desejavam que jamais viesse: a mudança, o tempo corrido, o "me perdoe a pressa" (ref. Paulinho da Viola - "Sinal Fechado"), o "progresso", o declínio da qualidade de vida., as poluições de ares e águas Mas tudo isso chegou; era o que viam os olhos de profecia daqueles velhos mineiros.
Não mais voltei àquelas cidades. Reservo-me o direito de acreditar que há Minas ainda nelas. Seres humanos nos sentimos incomodados ante a assimetria e a imperfeição. E não há imperfeição maior que a imperfeição do pretérito imperfeito do verbo haver (existir): havia

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


(Ferreira Gullar)

Uma parte de mim ficou naquela Minas que não há mais. Mesmo assim, MINAS AINDA HÁ.

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