segunda-feira, 25 de outubro de 2010

FCCV - VIOLÊNCIA: ONDE E QUANDO NÃO SE ESPERA

FORUM COMUNITÁRIO DE COMBATE À VIOLÊNCIA (FCCV)

Salvador - Bahia - Brasil

VIOLÊNCIA: ONDE E QUANDO NÃO SE ESPERA




Foi levado ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos, morreu na manhã da última quarta-feira de setembro de 2010, alvejado por uma bala de calibre 38. Colocada de modo assim genérico, esta informação não permite situar o evento funesto diante da ampla possibilidade de que essa mensagem corresponda a muitas ocorrências salpicadas pelo País; afinal esta forma de óbito é corriqueira em nossos dias.


Tinha nove anos e foi morto na sala de aula de uma escola particular de uma cidade de São Paulo. Esses dados retiram o caso da condição de generalidade, desembaciam a visão dando-lhe foco e, portanto, condições facilitadas para a atenção. Abre-se a possibilidade para a lembrança de um rosto de um menino de cabelos pretos e lisos, de sorriso aberto, que tocava violino na igreja, conforme dizem seus entristecidos pais e outros parentes.

Este caso mobiliza outra forma de percepção da morte violenta. É uma criança morta em uma escola particular e não um menino alvejado por uma bala perdida em ambiente tornado incompatível com a idéia de proteção. Os pais pagam e acreditam que naquele local os filhos estão a salvo dos riscos e ameaças que rondam a cidade. E a falha em relação a esta expectativa confere ao caso um caráter excepcional. Indiretamente não é a morte que é discutida, mas o seu lugar no espaço social.

A indignação tenderia a ser menor se a ocorrência fosse registrada em escola da rede pública e, menor ainda, se o local fosse via pública de uma favela. Um outro fator que contribui para uma atenção mais consistente e inconformada diz respeito à idade da vítima que, conforme mencionado, morreu aos nove anos. Os óbitos violentos corriqueiros têm vitimado, preferencialmente, adolescentes e jovens pobres, afrodescendentes, com escolaridade e qualificação profissional precárias.

No caso em tela, a expressão de inconformismo se sobressai a partir da localização do feito violento em espaço escolar privado e religioso, demonstrando-se a existência de uma aposta em relação à segurança neste domínio espacial. É contra esta esfera que são feitas as acusações que evidenciam a frustração das expectativas familiares: como foi permitida a entrada de arma? Por que limparam o local do crime? Por que a escola não deu a devida atenção à denúncia de uma avó cujo neto levou para casa um projétil ofertado por um coleguinha?

Não há como resistir a uma reflexão: é provável que o ambiente escolar privado tenha dificuldade de se desembaraçar destas questões sem se confrontar com os interesses e pudores de seus clientes. É mais fácil colocar nas regras de conduta que as alunas não podem usar maquiagem do que recomendar que não tragam armas de fogo. Seria ofensiva aos clientes uma recomendação explícita neste sentido, afinal, ideologicamente, eles são a própria representação de civilidade, de bom senso e de prudência. Neste sentido, uma exigência contra o porte de armas na escola poderia soar como grosseira e desrespeitosa.

A perspectiva que orienta a proteção através da idealização de espaços imunes à insegurança tem fechado os olhos para a natureza incontinente da violência. É da violência a prática de atravessar fronteiras, pular muros e se replicar incontrolavelmente como, por exemplo, pelo viés “pueril” que reside na vontade de brincar com um revólver, de fazer uma aventura deflagrando uma bala. Esta extravagância resultou no tiro contra o garoto Miguel e, deste fato gravíssimo, seguiram outros desencantamentos: a arma perdida, o socorro inadequado, a limpeza do local de ocorrência da morte.

Esta mesma linha de orientação tende a atribuir a violência a grupos rotulados como representantes do mal em relação aos quais é tecida uma cultura de evitação. São estes adversários imaginados que explicam a energia despendida em torno adoção de esquemas de segurança privada que têm conformado um verdadeiro estilo de vida. Cresce, assim, a distância entre o empenho para tornar realidade o direito à segurança pública e a busca por proteção privada. Essa perspectiva privatista tem sido adotada por setores mais aquinhoados da sociedade em substituição da reivindicação ou pressão política em torno das garantias legais de proteção e direito à vida. É incrementado, pois, o consumo de equipamentos e serviços de segurança, evidenciando-se um descrédito em relação às respostas de natureza pública para o problema. Por este prisma, fica valorizada a idéia de proteção própria contra todos e, ao lado desse princípio, são adotados vários recursos, inclusive armamentícios. Talvez, a arma que feriu o garoto Miguel seja exemplo desta desastrosa busca por “garantias”.


Levado a este nível de efeito, cabe refletir sobre questões complicadas que estão se apresentando como razoáveis, entre as quais o estímulo e o fascínio em torno de comportamentos violentos com emprego de aparatos geradores de danos irreversíveis ao alcance das crianças. Este traço de incitação à violência tem sido defendido como elemento de seu combate. Diante desta arriscada distorção, cabe lembrar que para a insegurança que nos atinge não há fórmula de salvação individual/privada sem que o remédio não se transforme em mais um fator de risco, sem falar da inutilidade dos “produtos placebos” ofertados pelo mercado da proteção particular.

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