quinta-feira, 14 de outubro de 2010

MARCELO COELHO - As ruas sem segredo

Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 de outubro de 2010, p. E10)

MARCELO COELHO - As ruas sem segredo


A vontade de se expor é o contraponto da sensação de anonimato que nos traz a sociedade de massas


DA JANELA do meu apartamento, tenho uma vista bonita do estádio do Pacaembu e, de vez em quando, alguns pássaros verdes -não sei se periquitos ou maritacas- aparecem na sacada.

Levei um susto outro dia, quando um grande inseto preto, zumbindo com péssimas intenções, surgiu no meu campo de visão. Era como um besouro, teria quase dois palmos de largura, subia e descia como se quisesse entrar no meu apartamento.

Mas não era besouro. Era um helicóptero de brinquedo, operado a partir do playground por uma criança do prédio. Acho que o controle remoto não permitiria ao aparelho pousar dentro de casa, mas de todo modo fantasiei um bocado sobre os riscos implícitos nesse tipo de tecnologia.

Um raio laser no focinho do helicóptero poderia reduzir-me a pó. Uma câmera em miniatura poderia rastrear o interior do apartamento. Não gosto de baixar as persianas da sala, aliás.

Felizmente, não sou daqueles que têm o hábito de circular de cueca dentro de casa. Como nunca me senti à vontade nem sequer diante do espelho, as câmeras teriam pouco a, digamos, descortinar quanto a esse aspecto.

Em todo caso, os mini-helicópteros já circulam à nossa volta. Recebi um e-mail anunciando sua utilidade na administração de propriedades rurais. Trata-se de um aparelho um pouco maior, do tamanho de um sofá mais ou menos, capaz de fazer levantamentos topográficos e de identificar, quem sabe, cercas invadidas ou reses desgarradas.

Comparado a esses helicópteros, não me preocupa tanto o perigo das câmeras do Google Street View, novo serviço à disposição dos internautas, que sai por aí fotografando o que de interessante, de banal ou de obsceno se anda fazendo neste vasto mundo.

Não tenho muita imaginação para prever as situações embaraçosas que esse sistema de vigilância é capaz de flagrar pela cidade. Os carros que entram e saem de motéis e saunas gay, pelo que li, não têm suas placas reveladas. O rosto do cidadão que vomita na rua ou que entra numa casa de shows eróticos passa por um sistema de embaçamento eletrônico.

Que seja. Afinal (e peço desculpas se estou raciocinando abstratamente), se alguém está andando num lugar público, não tem como exigir privacidade. Se mais tarde os seus vexames aparecerem no Google, não é muito diferente de terem sido vistos pelas pessoas que estavam naquela rua na mesma hora.

Já existe um site brasileiro, o www.googlestreetview.com.br, que reúne instantâneos curiosos do nosso cotidiano. Curiosos? Não encontrei nada que não tivesse aquela banalidade fatual e muda que, com certeza, enche de sono e tédio a vida dos seguranças nas guaritas.

Há cidadãos fazendo xixi atrás da árvore ou da porta do carro. Cidadãs também, o que é menos interessante do que se pode pensar. Pessoas jogando lixo (televisores, abajures) em locais impróprios.

Biquínis fora de lugar, placas de rua engraçadas, policiais dando prensa em jovens da periferia... Para não desesperarmos da alma humana, há também registros de belas paisagens, não apenas do Brasil.

A Irlanda comparece bastante, não só com lagos e montanhas verdes, mas também pelo costume, que parece generalizado entre seus habitantes masculinos, de mostrar as nádegas à menor notícia de que alguma câmera está por perto.

Privacidade, seja como for, vai deixando de constituir problema para muita gente. Do Facebook aos reality shows, a vontade de se expor é sem dúvida o contraponto da terrível sensação de anonimato que nos traz a sociedade de massas.

O que não quer dizer que um mecanismo como o Google Street View não seja preocupante nas mãos de um Estado policial. Certo, com tantas câmeras em atividade, o trabalho da polícia ao mesmo tempo é facilitado e se complica.

Diante de tanta tecnologia, talvez a melhor defesa possa encontrar-se nos costumes do passado. Menos do que uma questão de identidade religiosa, a velha burca muçulmana talvez seja um ótimo recurso para quem quiser furtar-se à censura do ambiente. Quantos adultérios uma burca não permite? E, não sei se já pensaram nisso, ninguém encontrará Bin Laden se ele estiver dentro de uma...

Faltaria, então, um Google Street View com raio-X. Enquanto isso, a gente se vira.

coelhofsp@uol.com.br

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