domingo, 24 de outubro de 2010

LENDO "NÃO-LUGARES" DE MARC AUGÉ (3)

LENDO "NÃO-LUGARES" DE MARC AUGÉ (3)

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Nota do Blog

A postagem de hoje - domingo - apresenta, na íntegra, o instigante Prólogo do livro "Não-Lugares" de Marc Augé. Vale à pena citá-lo/postá-lo integralmente pois não há quem não se identifique, em alguma medida, com o 'personagem' augeriano Pierre Dupont.

Referência:

AUGÉ, Marc. Prólogo. In: Não-Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. /Non-lieux - intrudcction à une anthropologie de la surmodernité/ Trad. Maria Lúcia Pereira. Papirus, Campinas (São Paulo), 1994 (Coleção Travessia do Século), 111 p.

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PRÓLOGO


Antes de pegar o seu carro, Pierre Dupont quis tirar dinheiro no caixa eletrônico. A máquina aceitou seu cartão e autorizou-o a retirar 1.800 francos. Pierre Dupont digitou, então, as teclas que compuseram 1.800. A máquina solicitou-lhe um minuto de paciência e depois liberou a quantia combinada lembrando-o de pegar o cartão. "Obrigado e volte sempre", concluiu ela, enquanto Pierre Dupont arrumava as notas na carteira.

O trajeto foi fácil: descer até Paris pela auto-estrada A 11 não apresenta problemas numa manhã de domingo. Ele não teve que esperar o acesso, pagou com cartão de crédito no pedágio de Dourdan, contornou Paris pela marginal e chegou a Roissy pela A I.

Estacionou no 2º subsolo (ala J, guardou seu cartão de estacionamento na carteira e, depois,dirigiu-se ao~s balcões de embarque da Air France. Livrou-se com alívio de sua mala (20 quilos exatos), entregou a passagem à agente do tráfego, perguntando-lhe
se poderia ocupar um lugar de fumente no corredor. Sorridente e em silêncio, ela concordou com um aceno de cabeça, após haver verificado no computador, e depois lhe devolveu a passagem e o cartão de embarque. "Portão de embarque B à 18 horas", precisou ela.

Ele se apresentou antecipadamente ao controle de polícia para fazer umas comprar no duty free. Comprou uma garrafa de conhaque (uma lembrança da França para seus clientes asiáticos) e uma caixa de charutos (para seu próprio consumo). Tmou o cuidado de por a nota junto do cartão de crédito.

Percorreu com o olhar, por um momento, as vitrines luxuosas - jóis, roupas, perfumes - , parou na livraria, folheou algumas revistas antes de escolher um livro fácil - viagem, aventura, espionagem - , e depois retomou sem impaciência seu passeio.

Saboreava a impressão de liberdade que lhe davam, ao mesmo tempo, o fato de haver-se livrado da bagagem e, mais intimamente, a certeza de não ter mais que aguardar a seqüência dos acontecimentos, agora que ele se "enquadrara", colocara no bolso o cartão de embarque e declinara sua identidade. "A nós dois Roissy!" Hoje não é nos locais superpopulosos onde se cruzam, ignorando-se, milhares de itinerários individuais, que subsiste algo do encanto vago dos terrenos baldios e dos canteiros de obras, das estações e das salas de espera, onde os passos se perdem, de todos os lugares de acaso e de encontro, onde se pode sentir de maneira fugidia a possibilidade mantida da aventura, o sentido de que só se tem que "deixar acontecer"?

O embarque deu-se sem problemas. Os passageiros cujo cartão de embarque tinha a letra Z foram convidados a se apresentar por último e ele assistiu, divertindo-se ligeiramente, aos leves e inúteis empurrões dos X e Y na saída da passarela de embarque.

Aguardando a decolagem e a distribuição dos jornais, folheou a revista da companhia aérea e imaginou acompanhando com o dedo, o possível itinerário da viagem: Heraklon, Larnaca, Beirute, Dharan, Dubai, Bombaim, Bangcoc - mais de 9 mil quilômetros num piscar de olhos e alguns nomes dos quais se ouve falar de tempos em tempos na atualidade.

Lançou um olhar na tarifa de bordo livre de impostos (duty-free price list), verificou que aceitavam cartões de crédito nos vôos de longo curso, leu com satisfação as vantagens que apresentava a classe "executiva", da qual a generosidade inteligente de sua firma o fazia gozar ("No Charles de Gaulle 2 e em Nova York, salões Le Club permitem que você relaxe, telefone, mande um fax ou use um minitel" ...Além de uma recepção personalizada e de atenção constante, o novo assento Espaço 2000, que equipa os vôos de longo curso, foi concebido mais amplo, com encosto e apoio para a cabeça reguláveis em separado ..."). Concedeu um pouco de atenção ao quadro de comando digital de seu assento Espaço 2000, depois mergulhou novamente nos anúncios da revista, admirando o perfil aerodinâmico de alguns trens, algumas fotos dos grandes hotéis de uma cadeia internacional, apresentados de maneira meio pomposa como "os lugares da civilização" (La Mammounia, em Marrakesh, "que foi palácio antes de ser palace"; o Metrópole de Bruxelas, "onde os esplendores do século XIUX permaneceram bem vivos"). Depois, caiu num anúncio de um carro que tinha o mesmo nome que sua poltrona, Ranault Espace: "Um dia, a anecessidade de espaço se faz sentir ... Isto nos pega de surpresa. Depois, não nos larga mais. O irressistível desejo de ter um espaço para si. Um espaço móvel que nos leve para longe. Teríamos tudo à mão e não nos faltaria nada ..." Como no avião, em suma. "O espaço já está em você ... Nunca se esteve tão em terra quanto no Espaço", concluia agradavelmente o anúncio.

Eles já estavam decolando. Folheou mais rapidamente o resto da revista, concedendo alguns segundos a uma rtigo sobre "O hipopótamo, senhor do rio" que começava por uma evocação da África "berço das lendas" e "continente da magia e dos sortilégios", deu uma olhada numa reportagem sobre Bolonha ("Em toda parte pode-se ficar apaixonado, mas em Bolonha fica-se apaixonado pela cidade"). Um anúncio em inglês de um videomovie japonês reteve por um instante a sua atenção ("Vivid colors, vibrant sound and non-stop action. Make them yours forever") pelo brilho de suas cores. Um refr~]ao de Trenet vinha-lhe com freqüência à mente desde que, no meio da tarde, ele o ouvira no rádio, na estrada, e disse para si mesmo que sua alusão à "photo, vieille photo de ma jeunesse" logo não faria mais sentido para as gerações futuras. As cores do presente para sempre: a câmera congeladora. Um anúncio do cartão Visa acabou de tranqüilizá-lo ("Aceito em Dubai e onde quer que você viaje ... Viaje com confiança com seu cartão Visa").

Lançou um olhar distraído a algumas resenhas de livros e deteve-se, por um instante, por interesse profissional, naquela que resumia uma obra intitulada Euromarketing: "A homogeneização das necessidades e dos comportamentos de consumo faz parte das fortes tendências que caracterizam o novo ambiente internacional da empresa ... Com base no exame da incidência do fenômeno de globalização sobre a empresa européia, sobre a validade e o conteúdo de um euromarketing e sobre as evoluções previsíveis do ambiente do marketing internacional, inúmeras questões são debatidas." A resenha evocava, para terminar, "as condições propícias ao desenvolvimento de um mix o mais estandardizado possível" e "a arquitetura de uma comunicação européia".

Meio pensativo, Pierre Dupont guardou a revista. O aviso "Fasten seat belt"
estava aceso. Ajustou seus fones de ouvido, sintonizou o canal 5 e deixou-se invadior pelo adágio do concerto nº 1 em dó maior de Joseph Haydin. Durante algumas horas (o tempo de sobrevoar o Mediterrâneo, o mar da Arábia e o golfo de Bengala), ele estaria, enfim, só.
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* O minitel é um serviço de microcomputador acoplado ao telefone que permite o acesso a fontes de informações oficiais e particulares de todo tipo (N.T.)

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