segunda-feira, 25 de outubro de 2010

FCCV - VIOLÊNCIA, MÍDIA E SAÚDE: POR OUTRA CRÔNICA

Leitura de fatos violentos publicados na mídia
Ano 10, nº 36, 25/10/10



FCCV - Forum Comunitário de Combate à Violência
Leitura de fatos violentos publicados na mídia
Ano 10, nº 36, 25/10/10

VIOLÊNCIA, MÍDIA E SAÚDE: POR OUTRA CRÔNICA


Da resignação diante da falta de escolha emerge como sentido comum a idéia de que a morte é certa. Esta clareza, entretanto, não resulta em subjetiva aceitação, ao contrário, a preferência pela vida e a tentativa de adiar o seu fim são uma constante. Temos encontrado um tipo específico de “morte certa” cujo sentido é perverso, dada a natureza evitável deste tipo de fenecimento em contraste com a sua sistemática ocorrência. As mortes por violência não correspondem ao esgotamento da estrutura interna do organismo humano, ao contrário, em sua grande maioria as vítimas têm as vidas interrompidas por causas externas ao funcionamento de seus corpos.

Uma das maneiras de se evidenciar o quanto têm sido cotidianas estas mortes é através da oferta diária de produtos midiáticos a elas relacionadas de tal modo que aos leitores de jornais, aos ouvintes de rádio ou aos telespectadores têm sido assegurados produtos diários baseados na freqüente produção de óbitos violentos. Esse oferecimento regular tem minado o espanto que expressaria sentido de impropriedade quanto a este modo de morrer.

Toda segunda-feira é dia de balanço, feito pela mídia, das mortes violentas registradas no fim de semana. A forma de expressão prevalecente é de natureza quantitativa. Entre os jovens, pobres, negros, com pouca escolaridade e moradores de bairros populares este é o tipo de óbito predominante. E esse predomínio tem forjado um lento e impregnante processo de naturalização deste modo de falecer.

O incremento de óbitos no final de semana não indica a suspensão da tragédia ao longo dos outros dias, quando a produção de danos letais tende a ficar menor, porém mantida. Neste cotidiano de medo, a morte é a manifestação mais exacerbada de violência e aquela que, nas circunstâncias atuais, tem maior poder/chance de ser selecionada pela mídia. Os sintéticos registros de letalidade violenta ocultam os detalhes de cada caso e as inúmeras formas de agressões que se multiplicam cotidianamente sem interromper a vida. É possível sugerir que os anúncios destas mortes são sinais comprometedores da vida no ambiente de origem do morto, à semelhança dos casos de dengue e de outras enfermidades contagiosas.

A regularidade de mortes evidencia que a violência, vista como problema de saúde, não pode ser representada como epidemia, pois implicaria em surto repentino, uma forma aguda que foge aos padrões habituais. Em vez disso, dado ao caráter regular de sua freqüência, o fenômeno é mais bem definido pela idéia de endemia. Considerando-se o alto número de indivíduos feridos com gravidade e os mortalmente vitimados, o problema deve ser qualificado como grave endemia, comparável a uma doença crônica que coloca em permanente risco fatal os indivíduos que têm predisposição ou possuem atributos que os tornam mais vulneráveis a serem acometidos por ele.

Chega-se, então, à confluência entre dois empregos da expressão crônica. Primeiramente, têm-se as mortes violentas expressas pela crônica midiática e, em segundo lugar, a violência como problema crônico de saúde em nossos dias. Na primeira posição, está uma poderosa forma de representar a problemática para a sociedade, entendida como público receptor ou como opinião pública. Na segunda formulação, reside um desafio no que tange à necessidade de se alcançar consenso social a propósito da pertinência entre o referido problema e seu pertencimento ao domínio da saúde.

Através da crônica midiática fica bem estabelecido o caráter recorrente da questão, entretanto, esta “normalidade” é frequentemente associada ao domínio policial, não havendo, ordinariamente, cogitações sobre seu vínculo com a saúde. Tem-se assim, um estilo de fenecimento sobre o qual a área sanitária não é cogitada para o combate ou para a explicação ou responsabilidade. É como se a tipicidade das mortes e dos agravos por razões violentas suspendesse o vínculo costumeiro entre ferimentos e mortes com o campo da saúde.

Esta suspensão, cultivada pela mídia e consolidada pelas “razões” da vida prática, tem efeito sobre o modo com que se concebem as soluções para o problema, exigindo-se, por exemplo, do universo policial a responsabilidade total no que se refere à saída para a crônica dificuldade. Ficam obscurecidas dimensões do problema, entre as quais a sua natureza sanitária. Esta ocultação, por sua vez, empobrece as respostas que visam à superação do quadro endêmico de violência em nossa vida.

Valeria à pena contar com o suporte da crônica midiática para dar lastro à noção de violência como grave problema de saúde coletiva nos dias atuais.

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