LANÇAMENTO NIETZSCHE EM QUADRINHOS - FRANÇA
NIETSZSCHE PARA AS MASSAS
CONTEUDO LIVRE
Michel Onfray, que lança na França HQ da vida do pensador alemão, defende o cartum para popularizar a filosofia; biógrafos Rüdiger Safranski e Domenico Losurdo, que publicam livros no Brasil, explicam o apelo do filósofo e a relação como nazismo
MARCOS FLAMÍNIO PERES
DE SÃO PAULO
Michel Onfray é a ovelha negra da filosofia francesa.
Sempre fez questão de bater de frente com a elite acadêmica. Em 2002, criou a Universidade Popular de Caën, com aulas grátis, abertas a todo tipo de público.
Sua "Contra-História da Filosofia" vira de pernas para o ar o cânon do pensamento ocidental, ao valorizar nomes marginalizados pela tradição, como o grego Epicuro (341a.C.- 271a.C.).
Nos últimos meses, alvejou a psicanálise, em dura polêmica com a historiadora Elisabeth Roudinesco.
Agora, acaba de lançar uma biografia em quadrinhos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), com a intenção de "construir pontes" entre a filosofia e mídia de massa.
"Quero abrir mundos que vivem felizes em suas próprias tribos", afirma o coautor, com o cartunista Maximilien Le Roy, da história em quadrinhos "Nietzsche" (que ainda não tem data de lançamento prevista no Brasil).
Best-seller na França, onde o gênero tem estatura de obra de arte, o livro não estimulou os dois a explorarem o novo filão comercial.
"Que outros filósofos e outros quadrinistas mergulhem nesse negócio...Nós, não!"
NIETZSCHE E HITLER
Onfray também aborda a pergunta que não quer calar. O pensador que "matou Deus" e libertou o homem da metafísica foi o mesmo que forneceu o substrato ideológico do nazismo?
Muito popular na Europa até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Nietzsche caiu em desgraça após a ascensão de Hitler, quando passou a ser considerado um ideólogo "avant la lettre" do nazismo. Segundo Onfray, isso foi fruto de uma indecorosa manobra familiar.
"Sua irmã [Elisabeth] era fascista e quis fazer de seu irmão o ideólogo de suas ideias políticas", diz.
É da mesma opinião o biógrafo alemão Rüdiger Safranski, que está publicando no Brasil "Romantismo - Uma Questão Alemã". "A irmã dele falsificou sua biografia", afirma. Mas ressalva que Nietzsche também tinha culpa no cartório. "Ele não era inocente", pois de fato tratou da "eliminação de formas de vida inferiores", lembra Safranski.
AFORISMOS E INSIGHT
Mas então por que ele era tão popular?
Para o professor de filosofia italiano Domenico Losurdo a razão principal reside no uso do aforismo. Essa formulação curta e direta "atinge o leitor com uma imediatez fulminante", explica o autor da biografia "Nietzsche - O Rebelde Aristocrata", que também está sendo lançada no Brasil.
Safranski partilha dessa opinião e acrescenta que seus insights "anteciparam a psicanálise".
Já Onfray arrisca outra hipótese. No fundo, "Nietzsche propõe ao leitor a questão sobre como cada um, homem ou mulher, pode se tornar um super-homem". Mas avisa que isso, para o autor da "Genealogia da Moral", deveria ser uma decisão individual -e não um programa partidário.
RAIOS-X
MICHEL ONFRAY
VIDA
Nasceu em Argentan (França), em 1959
CARREIRA
Doutor em filosofia, é especialista em Nietzsche
PRINCIPAIS LIVROS
"Contra-História da Filosofia"
"Tratado de Ateologia"
"A Potência de Existir" (Martins Fontes)
"Teoria da Viagem" (L&PM)
"A Razão Gulosa" (Rocco)
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RÜDIGER SAFRANSKI
VIDA
Nasceu em Rottweil (Alemanha), em 1945
CARREIRA
Filósofo. Especialista em Schiller, Nietzsche e Heidegger
PRINCIPAIS LIVROS
"Nietzsche - Biografia de uma Tragédia"
"Heidegger" (ambos pela Geração Editorial)
Para filósofo, HQ conduz leitor "às portas de um outro mundo"
Cartunista verteu para os quadrinhos obra de Onfray sobre diálogo entre filosofia e cinema
Autor autorizou a adaptação depois de Maximilien Le Roy dizer que formato "é cinema de pobre"
DE SÃO PAULO
Com sua HQ sobre Nietzsche, Michel Onfray explica como pretende levar a filosofia às massas.
Fala também de "Le Crépuscule d’une Idole" (o crepúsculo de um ídolo, ed. Grasset), que está saindo na França, sem previsão de lançamento no Brasil. Nele, Onfray bate de frente com dois ícones: um mundial -Sigmund Freud- e outro francês- a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco.
"Ela se cobriu de ridículo" em sua defesa da psicanálise, diz na entrevista abaixo.
(MARCOS FLAMÍNIO PERES)
Folha - Por que contar a vida de Nietzsche em quadrinhos?
Michel Onfray - Na verdade, tratava-se de uma obra publicada sob o título "L’Innocence du Devenir" [a inocência do futuro, ed. Galilée], que era o roteiro de um filme que eu publicara, mas sem perspectiva de trabalho com nenhum diretor.
A ideia era mostrar como seria fecundo haver passarelas entre a filosofia e o cinema, para um vivificar o outro.
Então, um jovem quadrinista [Maximilien Le Roy] me enviou um e-mail dizendo que "a HQ era o cinema dos pobres"! Ele queria saber se poderia desenhar a partir daquele roteiro. Claro que concordei, sabendo do excelente trabalho que fazia!
Como foi o trabalho a dois?
Com raríssimas exceções, respeitou inteiramente o texto de meu roteiro. Ele fez um périplo pela Europa para fotografar os locais [por onde Nietzsche passou], enviando-me regularmente seus desenhos, até que o álbum já estava quase nas livrarias!
Só então me encontrei com Maxime, que jamais vira nem sequer escutara ao telefone...
É possível popularizar a filosofia a partir da HQ?
É possível construir pontes para abrir mundos fechados em seus guetos, onde cada um leva sua vidinha tranquila ao abrigo de tudo e todos.
Mas não me iludo: o que o livro de filosofia faz, a HQ não faz -mas o inverso também é verdade. Assim, a HQ pode levar às portas de um outro mundo leitores que, por princípio, teriam recusado se aproximar dele.
Nietzsche é o filósofo mais popular de nosso tempo?
O mais popular é provavelmente Sócrates... Mas os jogadores de futebol e as cantoras são muito mais populares do que os filósofos!
Onde situar Nietzsche na história da filosofia?
Como inventor do pós-cristianismo: ele foi o primeiro a propor um pensamento vivo e concreto para viver e agir em um mundo sem Deus.
Sua crítica à psicanálise provocou forte reação de Roudinesco (em "Mas Por Que Tanto Ódio?"). A psicanálise é uma ideia fracassada?
Fracassou, se levarmos em consideração o ridículo de que se cobriu a senhora Roudinesco. Ela cuida e cura as patologias mais pesadas daqueles que pretendem cuidar dos outros, enquanto eles mesmos não estão curados!
Se me permite uma pirueta: porque tanto ódio?
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NIETZSCHE
AUTORES Michel Onfray e Maximilien LeRoy
EDITORA Les Editions du Lombard
QUANTO € 19(126 págs.)
AVALIAÇÃO bom
NIETZSCHIANAS
Conheça títulos recém-lançados sobre o filósofo
"Nietzsche, Seus Leitores e Suas Leituras"
(Barcarolla, 168 págs., R$ 138), de Scarlett Marton
A professora de filosofia da USP discute a triangulação autor, obra, texto em seu pensamento
"Nietzsche"
(L&PM, trad. Denise Bottmann, 128 págs., R$ 12), de Jean Granier
Livro introdutório de um dos grandes especialistas franceses sobre o tema, defende que é um contrassenso buscar um "método" em sua obra -que se caracteriza justamente pela variedade de perspectivas
"Nietzsche e o Corpo"
(Faperj/7 Letras, 144 págs., R$ 34), de Miguel Angel de Barrenechea
Reinterpretação de questões éticas, políticas e científicas a partir de uma leitura sobre o corpo em sua obra
"Nietzsche - Viver Intensamente, Tornar-Se o Que É"
(Paulus, 128 págs., R$ 11), de Mauro Araujo de Sousa
Em inglês
"Friedrich Nietzsche - A Philosophical Biography"
(Uma Biografia Filosófica, Cambridge University Press, 649 págs., US$ 45), de Julian Young
Introdução "legível e séria, embora não inovadora", sobre a obra do pensador, na definição do historiador Francis Fukuyama
"Ele era um individualista radical, mas não era inocente"
Para Rüdiger Safranski, Nietzsche era visto por seus contemporâneos como um "ateu louco"
Biógrafo responsabiliza irmã do filósofo por associá-lo ao nazismo, mas diz que pensador tem parcela de culpa
Arquivo "Life"
DE SÃO PAULO
Autor de uma biografia de Nietzsche que é referência, o alemão Rüdiger Safranski, 65, ataca, na entrevista a seguir, a irmã do pensador, Elizabeth, por tê-lo associado ao nacional-socialismo.
Mas ele lembra que Nietzsche tem culpa no cartório, por haver defendido posições condenáveis -como a "eliminação de formas de vida inferiores".
Safranski também fala de sua obra recém-lançada no Brasil "Romantismo - Uma Questão Alemã", que tem um capítulo dedicado ao autor de "Além do Bem e do Mal" e de "Humano, Demasiado Humano".
(MARCOS FLAMÍNIO PERES)
Folha - Por que Nietzsche é tão popular entre não especialistas?
Rüdiger Safranski - Nietzsche de fato se tornou rapidamente um mito para o grande público. Mas por quê? Tudo se encaixa! [Ele era] um solitário que, de modo ousado, proclamou que "Deus está morto" e, como se fosse castigadopor isso, enlouqueceu. Sua reputação com o público era de "o ateu louco".
Depois, ficou famoso com a teoria do "super-homem". Segundo ela, é possível o desenvolvimento superior do ser humano, que se torna real quando a pessoa usa bem suas próprias forças.
Além disso, sua linguagem e seu estilo seduziam pela beleza e caía bem colocar a arte acima da ciência: para ele, o homem criativo ocupa um posto mais alto do que o positivista aplicado.
Como o estilo explica a obra?
Alguns aforismos psicológicos eram muito eficazes e não era preciso estudar um sistema para entendê-lo -na verdade, não havia sistema nenhum. Eram "insights" que faziam efeito como: "Você fez iss", diz a memória,/ "Você não pode ter feito isso", diz o orgulho,/ Mais cedo ou mais tarde, a memória cede!". Esse aforismo traz toda a teoria freudiana do recalque.
Como vê sua apropriação pelo nazismo?
A irmã de Nietzsche, que viveu décadas a mais do que ele, fez de tudo para associá-lo à ideologia nacional-socialista. Porque Nietzsche era um espírito independente, liberal, um inimigo do antis semitismo e do nacionalismo.
Era um individualista radical. Sua filosofia da "vontade de poder" se referia sobretudo à formação da individualidade, de que a pessoa deveria ter poder sobre si mesma.
Agora, de fato, ele teve experiências com pensamentos sobre raças superiores e eliminação de formas de vida inferiores. E, nesse contexto, expressou opiniões que posteriormente foram instrumentalizadas pelos nazistas.
Portanto, Nietzsche não foi completamente inocente! Aí, então, é preciso confrontar Nietzsche com Nietzsche!
No capítulo em que trata de Nietzsche, o sr. usa formulações quase idênticas às de sua biografia do pensador...
Nietzsche pertence à história do romantismo. Não se pode simplesmente dizer essas coisas de um modo melhor do que já falei. Não vejo nenhum problema em "utilizar" a mim mesmo.
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