CALCANHOTO (2) - O INVERNO QUE AQUECE A SOLIDÃO NA CIDADE
“A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.
Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:
então, a solidão vai com os rios... “
(Rainer Maria Rilke, Solidão in "O Livro das Imagens" Tradução de Maria João Costa Pereira)
Vicente Deocleciano Moreira
vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com
FONTE Blog http://www.viverascidades.blogspot.com
Vamos começar cantando e contando INVERNO de Adriana Calcanhoto e Antonio Cícero
INVERNO
Adriana Calcanhoto / Antonio Cícero
No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial
Há algo que jamais se esclareceu
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei
Lá mesmo esqueci que o destino
Sempre me quis só
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois
Pouco antes de o ocidente se assombrar
A felicidade aparece com algo fugidio, a façon de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (“A Felicidade”):
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve, mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar
Passada a felicidade – ou os momentos felizes – o “personagem” de INVERNO já nada mais sabe ou lembra acerca daquele estado de satisfação. Parece que a despedida durou tão pouco e ocorreu de modo mais rápido que a própria felicidade. Ficou a saudade. Restou a solidão como saldo e o sabor amargo de uma infeliz cidade como um mundo que traz a solidão mais dolorida que a solidão no campo, na lavoura. Lá (campo, lavoura) as mãos são mãos acostumadas com a solidão … uma solidão diferente da solidão da e na cidade. Lá, ainda acatando Rilke, “as mãos acostumadas com a solidão quase nuna se enganam” (“Cartas a um jovem poeta”)
A referência ao avião sugere aeroporto; Fernando Pessoa completaria dizendo que “todo cais é uma saudade de pedra”.
Mas vamos direto ao assunto: a solidão na cidade – principalmente as maiores e mais populosas. Muitos estão sós, solitários em meio à multidão, à condenação ao eterno anonimato. É o sentimento de “rês desgarrada/nessa multidão boiada caminhando a esmo” (Gilberto Gil – “Lamento Sertanejo”).
A letra fala no ser só como um imperativo do destino:
“Lá mesmo esqueci que o destino
Sempre me quis só
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar”
Apesar de fatalista, do discurso não emerge a autocomiseração por ser só. A autocomiseração por ser só reprova com nota zero o aprendiz do "aprender a ser só". Longe da autocomiseração - do sentir pena de sí próprio por ser/estar sozinho(a) - P há um “aprender a ser só”, um exercício consciente e sem culpabilidades dirigidas aos outros ou a si mesmo.
Nas grandes cidades, cresce o número de pessoas, homens e mulheres, que – por mil razões – escolheram viver só; e assim sobreviver sem remorsos,
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar
(Adriana Calcanhoto – “Inverno”)
Entregas em domicílio, shopping centers e seus braços e cinemas acolhedores sites de relacionamento, internet, TV Fechada, bares de solteiros, delicatessens, supermercados e farmácias de preferência nas proximidades e ao alcance da mão ou do celular) são suportes da vida moderna no mundo urbano e da própria solidão urbana. Essas comodidades alimentam e dá sustentação logística à escolha de morar sozinho. O anonimato e a discrição ajudam a ‘blindar’ os solitários contra a artilharia dos bisbilhoteiros, artífices de aleivosias ... e dos assaltantes e estupradores.
Um ator – se não me falha a memória, Paulo Gracindo – disse numa entrevista que a única vantagem de morar só é que se pode usar o vaso sanitário sem precisar fechar a porta do banheiro. Talvez não seja esta a única vantagem; escrever longas cartas pra ninguém (diário, autobiografias) se não for uma construção metafórica pode também significar a prática de suportar a solidão e dar suporte à solidão.
O Leblon não é necessariamente o bairro carioca. Mas é seguramente um Leblon interior de solidão – um interior todo tecido (do verbo tecer ), tecido (o substantivo, o pano) e transido de frio sob um inverno “quase glacial”. Inverno que aquece o Leblon da solidão.
Creio que seja o frio – e não o calor! – a situação térmica que mais lembre a solidão. Isto sem falar que, sob frio rigoroso (abaixo ou pouco acima de zero grau), independentemente daquilo que os meteorologistas chama de sensação térmica, temos a sensação nítida e dolente da solidão. O frio cria a metáfora da pessoa fria, “sem” sentimentos, calculista …
Quanto ao calor, existe até uma metáfora denominada calor humano para qualificar uma socialidade oposta àquela das relações frias, “sem calor”, sem emoção. O calor traz a emoção.
Mas quando eu intitulo esta Postagem O INVERNO QUE AQUECE A SOLIDÃO NA CIDADE ou quando eu digo que o inverno aquece o Leblon da solidão, estou me prendendo a um postulado da Física que diz que um corpo por mais frio (baixa temperatura) que seja ele tem calor, ou seja, menos calor. Há calor urbano na mais gélida solidão urbana.
Na hipótese bastante improvável de existir um corpo absolutamente frio, os átomos parariam de se movimentar … o que, na prática, beiraria o absurdo. Em termos técnicos da Física, destacamos a proposta do físico irlandês Willian Thomson, o lorde Kelvin (1824-1907). Segundo essa proposta, a temperatura extrema e radicalmente baixa que pudesse ser registrada num corpo corresponderia a um estado térmico em que a agitação térmica cessaria. Esse limite inferior extremo de baixa temperatura - inatingível na prática dos fenómenos físico-térmicos em todo o universo - é chamado pelos físicos de zero absoluto. Essa suposição teórica chamada zero absoluto corresponderia à temperatura de – 273,15ºº C (aproximadamernte – 273 º C - duzentos e setenta graus negativos, ou seja, abaixo de zero). Em todo o universo não há registro de corpo que tenha alcançado essa temperatura.
Voltando a INVERNO, de Adriana Calcanhoto, diríamos que, assim como o zero absoluto não existe, a solidão absoluta também não existe; há sempre um calor aquecendo-a.
Como redigir um escrito sobre a solidão sem encerrá-lo com Nietzsche? Ei-lo em sua exuberância:
>“ODEIO QUEM ME ROUBA A SOLIDÃO SEM EM TROCA ME OFERECER VERDADEIRA COMPANHIA".
(AMANHÃ, QUARTA, MAIS ADRIANA CALCANHOTO E A CIDADE)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário