JOSÉ SARAMAGO (1922-2010) (2)
UM HOMEM QUE INVENTOU A SI MESMO
José Castello
(Reproduzido de O Globo, 19/6/2010)
O escritor José Saramago experimentou muitas mortes antes de morrer. Poucos autores tiveram sua imagem borrada por tantos equívocos, poucos foram tão retalhados e tratados pelo que não eram.
O destino em pedaços de Saramago me faz recordar uma difícil pergunta deixada pelo escritor mineiro Herbert Daniel, falecido em 1992: "A questão não é saber se há vida depois da morte, mas se há vida antes da morte".
Mas que vida? E qual Saramago? Por ser filiado ao Partido Comunista Português, foi muitas vezes tratado — foi discriminado — como um "autor comunista". Clichê que serviu para explicar (na verdade, para adulterar) muitas de suas atitudes e ideias. Outras vezes, por não fugir do debate contemporâneo, e também por causa de sua escrita sinuosa, com frases em serpente, ele foi estigmatizado — foi morto — como um autor retórico e prolixo.
Pelos mesmos motivos, repetiu-se, à exaustão e sem nenhum critério, que José Saramago era um escritor "barroco" — marca que sua nacionalidade portuguesa, isto é, católica, reforçava. Isso apesar de ele se declarar, sempre, ateu. É verdade: Saramago admitia a influência cristã em sua literatura, ainda que por contraposição. Ascendência que se evidencia em um romance radical, e muitas vezes mal compreendido, como "O evangelho segundo Jesus Cristo", publicado em 1991.
O interesse pela História, matéria-prima de várias de suas narrativas, como "Memorial do convento", de 1982, e "História do cerco de Lisboa", de 1989, justificou, com frequência, a redução de sua imagem à da figura burocrática e sem sal do autor de romances históricos. A esses, em 1997, Saramago deu uma resposta sutil (que poucos, no entanto, compreenderam), quando publicou "Todos os nomes", romance que trata dos devaneios de um escriturário do Registro Civil e de suas consequências imprevisíveis.
Por sustentar com firmeza as próprias ideias, o escritor foi, com frequência, tachado de panfletário, outras de arrogante, outras ainda — vamos usar a palavra nefasta — de chato.
Com a diminuição de Saramago à estampa banal do "escritor político", ou então do "historiador interessado em literatura", dele se subtrai a característica mais importante: a prodigiosa imaginação. Em um colóquio sobre sua obra realizado em Madri, ainda nos anos 90, o argentino Javier Alfaya observou que Saramago é um desses escritores autônomos, "que não descrevem a realidade, mas a inventam".
Sua insistência em divergir das interpretações oficiais serviu, tantas vezes, de argumento para aprisioná-lo no rótulo de "escritor pessimista".
Isso só porque, sempre em busca de transformar a realidade, ele nunca aceitou as fórmulas convencionais; ao contrário, as pulverizou.
Seus romances são exercícios dolorosos, mas persistentes, de desconfiança. Não porque ele abdicasse de mudar o mundo, mas porque sempre insistiu, contra tudo e contra todos, em fazer isso.
Por causa das críticas atrozes a "O evangelho segundo Jesus Cristo", que o relegaram à posição de um traidor da tradição espiritual portuguesa, Saramago preferiu exilar-se na Ilha de Lanzarote, nas Canárias. Como era um escritor que gostava de pensar, e que escrevia bem porque pensava bem, e não porque fosse um mero repetidor de doutrinas, ele foi, algumas vezes, reduzido à figura do ensaísta introvertido — que, por timidez, por engano, por fraqueza, disfarçou-se de romancista.
Mas o suposto escritor racional, "homem de ideias", declarou-se, várias vezes, atordoado pela força dos sonhos, e em particular dos pesadelos, em sua vida. "O que interessa é que há um momento em que o escritor se aceita a si mesmo", disse, registrando sua perplexidade diante do desconhecido.
Nem o prestígio internacional incontestável, nem o Nobel de Literatura em 1998, nem os prêmios e as traduções intermináveis bastaram para livrá-lo das sucessivas mortes que foi obrigado a suportar.
Agora que a morte real chegou (se é que há algo de real na morte), ela nos obriga a juntar, e quem sabe a reparar, os pedaços em que Saramago foi dividido.
José Saramago só se tornou o escritor Saramago às vésperas dos 58 anos de idade. Isso ocorreu quando, em 1980, depois de muitos anos de jornalismo e uns poucos livros sem importância, ele publicou, enfim, o romance "Levantado do chão". É nesta história que, pela primeira vez, se firma sua voz inconfundível.
O escritor que nasceu 58 anos depois de nascer e que morreu várias vezes antes de, finalmente, morrer só podia se tornar um escritor genial.
Dono de seu destino, Saramago, indiferente à longa e paciente espera e à miopia de muitos intérpretes, foi um homem que inventou a si mesmo.
E, por isso, é um escritor que não se parece com qualquer outro.
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(*) Jornalista, colunista de O Globo
sexta-feira, 25 de junho de 2010
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