sexta-feira, 11 de junho de 2010

CALCANHOTO(5), CAEIRO E A ROMARIA FUGAZ NA FUGACIDADE DA CIDADE (Primeira Parte)

CALCANHOTO(5),CAEIRO E A ROMARIA
FUGAZ NA FUGACIDADE DA CIDADE (Primeira Parte)


C — Caminhando pelo espaço,
como os trapos de um lençol,
pras bandas do pôr do sol,
as nuvens vão em fracasso:
aqui e ali um pedaço
vagando... sempre vagando,
quem estiver reparando
faz logo a comparação
de umas pastas de algodão
que o vento vai carregando.
(...)

E — Em tudo se vê mudança
quem repara vê até
que o camaleão que é
verde da cor da esperança,
com o flagelo que avança,
muda logo de feição.
O verde camaleão
perde a sua cor bonita
fica de forma esquisita
que causa admiração
.

(Patativa do Assaré – “ABC do Nordeste flagelado")


Vicente Deocleciano Moreira
vicentedeocleciano@yahoo.com.br
vicentedeocleciano@gmail.com
Blog http://www.viverascidades.blogspot.com




Adriana Calcanhoto diz:

Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo
Cores!
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção
No que meu irmão ouve
E como uma segunda pele
Um calo, uma casca
Uma cápsula protetora
Ai, Eu quero chegar antes
Prá sinalizar
O estar de cada coisa
Filtrar seus graus...
Eu ando pelo mundo
Divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome
Nos meninos que têm fome...
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...
Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm
Para quê?
As crianças correm
Para onde?
Transito entre dois lados
De um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo
Me mostro
Eu canto para quem?
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...
Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...
Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle


(Adriana Calcanhoto - “Esquadros”)


Alberto Caeiro/Fernando Pessoa diz::

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar
...

(Alberto Caeiro/Fernando Pessoa - "O Guardador de Rebanhos", 8-3-1914)


E, nós, o que podemos dizer sobre Calcanhoto e Caeiro pra início de conversa?
Adriana Calcanhoto parece dialogar com Alberto Caeiro, ao menos no início de seus poemas:

*******

Adriana Calcanhoto - Olá senhor Caeiro, como vai? ... Eu ando pelo mundo/Prestando atenção em cores/Que eu não sei o nome/Cores de Almodóvar/Cores de Frida Kahlo/Cores …

Alberto Caeiro - Cá estou bem. Como estás senhorita Calcanhoto? ... O meu olhar é nítido como um girassol./Tenho o costume de andar pelas estradas/Olhando para a direita e para a esquerda … Sei ter o pasmo essencial/Que tem uma criança se, ao nascer,/Reparasse que nascera deveras...

*******

Sim, claro, ambos estão sucumbidos à esquize do olhar. Ela presta atenção, ele olha; e amboa ignoram alguma coisa. Ela não sabe o nome das cores. Ele tem a “ignorância” de uma criança que “ao nascer reparasse que nascera deveras”. “Ignorância” porque na hipótese (apenas para eleito formal) de que uma criança repara (olha) o ato de nascer, ela não guarda na memória os fatos deste ato: rostos da equipe médica, cor da parede do centro obstétrico, o sorriso feliz da mãe e do pai, etc, etc. Isto porque o infante não tem (ainda) sinapses neuronais o suficente para - mesmo reparando – ‘arquivar’ na memória seu próprio nascimento., “Ignorância” também porque o infante (in = não, fante = fala) por assim dizer apenas olha … mas (ainda) não pensa. Quando começa a pensar … já não é mais infante.

Vamos, ainda que sucinta e rapidamente, a Caeiro. Ele se apresenta como um (simples) guardador de rebanhos. Assim sendo, esses rebanhos podem ser com.stituídos de animais e de humanos (quer na área rural, quer na cidade). A frase tão central quanto repetida em todo o mundo é: “Pensar é estar doente dos olhos”. Caeiro é, fundamentalmente, o poeta da Natureza que foi feita não para nela pensarmos ... mas para senti-las com os sentidos (o pleonasmo é propostital) e estarmos de acordo, de conformidade com ela e com o mundo; acrescentaríamos, estar de acordo com a cidade.

O sujeito de “Esquadros” parece seguir a advertência caeiriana (“Pensar é estar doente dos olhos”) pois ele é todo sentimentos e emoções.

Para Calcanhoto e Caeiro, a cidade “é a eterna novidade do mundo” ... tudo está mudando; e, com isso, fazem coro com Patativa do Assaré..
Para chegar ao mundo, Caeiro não só recusa o pensamento, mas também a metafísica, o misticismo e os mistérios. Calcanhoto, ou melhor, seu “personagem” também recusa o mundo urbano sob o manto da metafísica. E se coloca toda a favor do olhar o referido mundo através da física precisa do esquadro.

(AMANHÃ, SÁBADO 12 DE JUNHO, A SEGUNDA PARTE)

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