terça-feira, 29 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO (1922-2010) (6) (7)

JOSÉ SARAMAGO (1922-2010) (6) (7)


Ir para longe, para o coração dos homens (6)

Teresa Cristina Cerdeira
Reproduzido do Estado de S.Paulo, 20/6/2010

O mundo ficou mais pobre. Não morreu o escritor, que esse nem morre e há de ser relido e reinventado pelo tempo afora. Morreu uma voz, que a partir de hoje só poderá ser ouvida pelo que já disse – e não será pouco nesse caso –, mas já não intervirá nas cenas que o nosso mundo há de revelar. E é pena. É uma grande pena. Porque essa voz presente, ousada, tantas vezes polêmica, não necessariamente diplomática, tinha a beleza e a força do que nem sempre é previamente medido, mas que por isso mesmo abala, desentorpece, desinstala.

Dizer que Saramago foi um grande escritor seria tão banal que não mereceria espaço na economia deste texto. Mas talvez valesse intuir o que continuará a fazer dele – sem grande exagero premonitório – um escritor especialíssimo do nosso tempo. Quando as verdades vacilam, quando as crenças vêm sombreadas de desconfiança, quando o cansaço e o desencanto fazem da banalidade o objeto de desejo, quando parecem fracassar as últimas utopias da humanidade, gosto de pensar na galeria de personagens que ele criou, não porque a ficção seja um alento, mas porque de dentro dela os personagens nos ajudam a encontrar a fenda no muro da história. Não estamos diante de um otimismo banalizado, mas a verdade é que, nesses romances que nos agarram pela inteligência e pelo coração, João Mau-Tempo erige-se como herói coletivo na luta de camponeses alentejanos; Blimunda e Baltasar garantem a permanência do sonho de criar; Raimundo Silva, modesto revisor de livros, põe em causa o conceito de história; e inventando sortilégios contra a morte, um certo senhor José reivindica a inscrição de todos os nomes nos "ficheiros" da história, porque afinal o dia só pode ser concebido ao lado da noite, ou o presente ao lado do passado.

Conheci José Saramago há quase 30 anos, em dezembro de 1981. A observação poderia ser anódina e só não o é porque daquele encontro restou, entre tantas coisas, uma dedicatória inscrita no Levantado do Chão que era já uma declaração de intenções. Dizia assim: "Para TC, que veio de longe e que, lendo este livro, para longe irá – para o coração dos homens, para o sofrimento deles, para a esperança que está perto –, a futura e duradoura amizade do José Saramago." Estava ali declarada, apesar do sofrimento, a esperança que ele sempre teve no coração dos homens. Quisera ter eu podido dizer à morte que tardasse mais um pouco a entrega da "carta violeta" que ele usou como metáfora nas Intermitências da Morte. Teria sido um modo de pedir a ela que deixasse um pouco mais conosco um homem que amava os homens.

(*) Autora de "José Saramago – entre a história e a ficção: uma saga de portugueses" (tese de doutorado apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1987)


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JOSÉ SARAMAGO (1922-2010) (7)


"Ele era doce, não tinha arrogância nenhuma" (7)

Luiz Zanin Oricchio

Reproduzido do Estado de S.Paulo, 20/6/2010

José e Pilar. Simples assim é o título do documentário do diretor português Miguel Gonçalves Mendes, que registra o cotidiano do casal José Saramago e Pilar del Rio, sua companheira. O filme foi coproduzido pela 02, empresa de Fernando Meirelles, diretor que adaptou para a tela Ensaio sobre a Cegueira, talvez a obra mais conhecida do escritor. Como disse Meirelles ao Estado, o filme deve ter sua primeira sessão brasileira durante a Mostra de Cinema de São Paulo, que se realiza em novembro. Em Portugal, tinha estreia prevista para 16 de novembro, data do aniversário de Saramago. Abaixo, a entrevista com o diretor Miguel Mendes.

Como surgiu a ideia de realizar esse filme e quanto tempo levou para ser rodado e concluído?

Miguel Mendes – A primeira vez que conheci pessoalmente o José foi quando lhe pedi que gravasse um excerto em off do Memorial do Convento para o meu primeiro filme D. Nieves, que se trata de uma dissertação sobre a relação Portugal-Galícia e a palavra Saudade. Mais tarde, propus-lhe este filme. Primeiro ele disse-me que não, mas fui insistindo, e finalmente aceitou. José Saramago era uma pessoa excepcional, que sempre quis conhecer, e considerava inaceitável que não existisse nenhum registro sobre ele, existem vários filmes, mas não numa perspectiva pessoal. Nunca sequer é abordado o papel de Pilar, a sua mulher, na carreira do José. São antes filmes sobre "o homem e a obra", o que não me interessa particularmente trabalhar porque existirão outros suportes mais adequados para dissertar sobre o assunto e pessoas mais competentes para o fazer. A obra existe e pode ser interpretada. O que não possuímos, isso sim, é um registro pessoal do homem. E é sobretudo por esta razão e para atingir esta proximidade que estivemos por três anos a rodar o filme. Acompanhei-os pelo mundo nas suas viagens de trabalho e no seu dia a dia em Lanzarote. O que basicamente culmina em 200 horas de material e um quebra-cabeças para resolver.

Como foi filmar com o casal?

É talvez necessário esclarecer um ponto: este filme é sobre o amor que se estabeleceu entre José Saramago e Pilar Del Rio. Este filme não é só sobre José Saramago. Quero sobretudo que as pessoas os vejam como eu os vejo e partilhar com todos e de uma forma condensada o saber que eles possuem. Qual a sua visão do mundo e em que é que acreditam. No fundo quero que quem assista a este filme sinta que conheceu de uma forma muito íntima essas duas pessoas, que são brilhantes. Algumas pessoas dizem que José era um incendiário. Mas Saramago não era incendiário. Era simplesmente lúcido. E tenta dentro do possível melhorar o mundo por meio do do impacto que as suas opiniões podem ter naqueles que as ouvem. E ao contrario da arrogância que algumas pessoas afirmam ele sofrer, o José era de uma doçura e simpatia incríveis. Para não falar no seu sentido de humor, que era brilhante. Mas, como ele dizia, ele não tinha culpa da cara que tinha. E muitas vezes as pessoas têm a tendência de confundir timidez com arrogância.

Quais os momentos mais significativos durante a filmagem?

M.M. – Levamos 3 anos para rodar todo o material. O filme centra-se sobretudo em Lanzarote, onde viveram juntos, o centro da sua intimidade. Mas como pretende ser um retrato fiel das suas vidas, o peso da sua agenda profissional era enorme, e por isso os seguimos em várias das suas viagens. Fomos ao México e à Finlândia. Éramos para ter ido com eles ao Brasil assistir à rodagem da adaptação do Ensaio sobre a Cegueira. Mas não conseguimos apoio. Mas dos momentos que posso destacar, contam-se os ensaios entre o José e o ator Gael García Bernal para a estreia da leitura a duas vozes das "intermitências da morte", o casamento do Jose e da Pilar em junho passado em Castril, Espanha, o momento em que o Fernando veio mostrar ao José em Lisboa o Ensaio Sobre a Cegueira. É obvio que um dos momentos que nos afetou a todos foi quando o José adoeceu, mas o mais bonito foi sem dúvida a total recuperação e a força de vida que ele possuiu. Mas um dos momentos mágicos foi estarmos em Lanzarote quando o José estava a acabar e a decidir o final de A Viagem do Elefante.

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