ADONIRAN BARBOSA - CONSOLIDADO - CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA (1)
ADORANDO ADONIRAN - (1) CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA
Adoniran Barbosa
(Compositor, letrista e cantor brasileiro)
Nasceu em 6 de julho de 1910, em Valinhos (SP);
faleceu em 23 de novembro de 1982, em São Paulo (SP)
ADONIRAN, QUEM FOI?
BIOGRAFIA
Sétimo filho de um casal de imigrantes de Treviso, Itália, João Rubinato entregou marmita, trabalhou como varredor em uma fábrica de tecidos, no carregamento de vagões de trens suburbanos, como tecelão, encanador, pintor, garçom, metalúrgico e vendedor de meias para depois adentrar o mundo humorístico do rádio e tornar-se um dos maiores sambistas do país. Criador de um samba tipicamente paulistano, Adoniran Barbosa, como ficou conhecido, elaborava suas letras a partir das trágicas cenas de vida e da linguagem cheia de sotaques, gírias, inflexões e erros de habitantes de cortiços, malocas e bairros característicos da cidade, como Bexiga e Brás. "Pra escrevê uma boa letra de samba a gente tem que sê em primeiro lugá anarfabeto", dizia. Compôs seus primeiros sambas, Minha Vida se Consome, em parceria com Pedrinho Romano, e Teu Orgulho Acabou, com Viriato dos Santos, em 1933. Dois anos depois, ganhou o primeiro lugar em concurso carnavalesco organizado pela Prefeitura de São Paulo, com Dona Boa. Após passar por emissoras como São Paulo, Difusora, Cosmos e Cruzeiro do Sul, recebendo pequenos cachês, notabilizou-se na década de 1940 como radialista cômico, interpretando uma série de personagens, baseados no linguajar coloquial, como o terrível e sábio aluno Barbosinha Mal-Educado da Silva, o negro Zé Cunversa, o motorista de táxi do Largo do Paissandu, Giuseppe Pernafina, o gostosão da Vila Matilde, Dr. Sinésio Trombone, o autor de cinema francês, Jean Rubinet, e o malandro malsucedido Charutinho. Com este último, um dos personagens do programa Histórias das Malocas, escrito por Oswaldo Moles, atingiu o clímax do humor e alcançou popularidade. "Trabaio é boca? Trabaio num é boca. É supurtura, é tumo", falava Charutinho. A união entre o humorista e o músico, nos anos de 1950, representou seus maiores sucessos musicais: Saudosa Maloca (1951), Malvina (1951), Joga a Chave (1953), Samba do Arnesto (1955), As Mariposas (1955), Iracema (1956) e Trem das Onze (1965).
(Fonte: NET SABER Biografias)
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A partir desta Postagem, o nosso Blog lembra e homenagea Adoniran Barbosa. Que tal começarmos com "Sampa", de Caetano Veloso, que é também uma homenagem ao compositor, cantor e ator paulista?
SAMPA
Caetano Veloso
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os novos baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa
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SAMBA DO ARNESTO
O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás
Nós fumos não encontremos ninguém
Nós voltermos com uma baita de uma reiva
Da outra vez nós num vai mais
Nós não semos tatu!
No outro dia encontremo com o Arnesto
Que pediu desculpas mais nós não aceitemos
Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa
Mas você devia ter ponhado um recado na porta
Um recado assim ói: "Ói, turma, num deu pra esperá
Aduvido que isso, num faz mar, num tem importância,
Assinado em cruz porque não sei escrever"
Arnesto
PRAÇA DA SÉ
Praça da Sé
Praça da Sé
Hoje você é
Madame estação Sé
Quem te conheceu
A alguns anos atrás
Como eu te conheci
Não te conhece mais
Nem vai conseguir
Te reconhecer
Se hoje passa por aqui
Alguém que já faz
Algum tempo que não te vê
Pouca coisa tem que contar
Pouca coisa tem que dizer
Vai pensar que está sonhando
É natural
Nunca viu coisa igual
Da nossa Praça da Sé de outrora
Quase que não tem mais nada
Nem o relógio que marcava as horas
Pros namorados
Encontrar com as namoradas
Nem o velho bonde
Dindindindindindin
Nem o condutor
Dois pra light e um pra mim
Nem o jornaleiro
Provocando o motorneiro
Nem os engraxate
Jogando caixeta o dia inteiro
Era uma gostosura
Ver os camelô
Correr do fiscal da prefeitura
É o progresso
É o progresso
Mudou tudo
Mudou até o clima
Você está bonita por baixo
Só indolá pra ver
Mas não vá sozinho, meu senhor
Que o senhor vai se perder
Praça da Sé
Praça da Sé
Hoje você é
Madame estação Sé
TREM DAS ONZE
Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã,
Se eu perder esse trem
Que sai agora as onze horas
Só amanhã de manhã.
Além disso mulher
Tem outra coisa,
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar,
Sou filho único
Tenho minha casa para olhar
E eu não posso ficar.
DESPEJO NA FAVELA
Quando o oficial de justiça chegou
La na favela
E contra seu desejo / entregou pra seu narciso um aviso pra uma ordem de despejo
Assinada seu doutor , assim dizia a petição dentro de dez dias quero a favela vazia /e os
barracos todos no chão
É uma ordem superior ,
Ôôôôôôôô Ômeu senhor ,é uma ordem superior 2x
Não tem nada não seu doutor , não tem nada não
Amanha mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada não seu doutor vou sair daqui pra não ouvir o ronco do trator
Pra mim não tem problema em qualquer canto me arrumo de qualquer jeito me ajeito
Depois o que eu tenho é tão pouco minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás
Mas essa gente ai hein como é que faz???? 2x
SAUDOSA MALOCA
Si o senhor não ta le mbrado
Dá li cença de con tá
Que aqui onde agora es tá
Esse edifício arto
Era uma casa véia
Um pala cete assobra dado
Foi aqui seu moço
Que eu Mato Grosso e o J oca
Constr uimo nossa mal oca
Mais, um d ia
- Nois nem pode se alemb rá
Veio os home c'as ferra mentas
O dono m andô derru bá
Peg uemos todas nossas c oisas
E fumo pro meio da r ua
Preciá a demoliç ão
Que tristeza que nos sent ia
Cada tábua que c aía
Duia no cor ação
Mato Grosso quis gri tá
Mas encima eu fal ei:
Os homens tá coa raz ão
Nos arranja outro lu gá
Só se conformemos quando o Joca fal ou :
"Deus da o f rio conforme o cober tô"
E hoje nóis pega as p áia nas grama do ja rdim
E prá esq uecê nóis can temos a ssim:
Saudosa mal oca maloca que rida, dim, dim
Donde nóis pas semos os dias f eliz de nossa v ida.
Quas,quas,quas...
TOCAR NA BANDA
Tocar na banda
Pra ganhar o quê
Duas mariolas
E um cigarro iolanda
Num relógio
É quatro e vinte
No outro é quatro e meia
É que de um relógio pra outro
As horas vareia
Marquei com a minha nega
Às cinco
Cheguei às cinco e quarenta
Esperar mais
Que vinte minutos
Quem é que agüenta
IRACEMA
Iracema, eu nunca mais te vi.
Iracema meu grande amor foi embora.
Chorei, eu chorei de dor porque,
Iracema meu grande amor foi você.
Iracema, eu sempre dizia,
Cuidado ao atravessar essas ruas,
Eu falava, mas você não escutava não.
Iracema você atravessou na contra mão.
E hoje ela vive la no céu,
E ela vive juntinho de nosso senhor.
De lembrança guardo somente,
Suas meias e seu sapato,
Iracema eu perdi o seu retrato.
FALADO:
IRACEMA, FALTAVA VINTE DIAS PARA O NOSSO CASAMENTO,
QUE NÓIS IA SE CASAR.
VOCÊ ATRAVESSOU A SÃO JOÃO,
VEIO UM CARRO, TE PEGA, E TE PINCHA NO CHÃO.
VOCÊ FOI PARA ASSISTÊNCIA IRACEMA,
O CHOFER NÃO TEVE CULPA IRACEMA,
PACIÊNCIA IRACEMA, PACIÊNCIA..
E hoje ela vive lá no céu,
E ela vive juntinho de nosso senhor.
De lembrança guardo somente,
Suas meias e seu sapato,
Iracema eu perdi o seu retrato.
TIRO AO ÁLVARO
(com Oswaldo Moles)
De tanto levar
Flechada do teu olhar
Meu peito até
Parece sabe o quê?
Táuba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar
Não tem mais!...
De tanto levar
Frechada do teu olhar
Meu peito até
Parece sabe o quê?
Táuba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar...
Teu olhar mata mais
Que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano...
Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De automóvel
Mata mais
Que bala de revólver...
De tanto levar
Frechada do teu olhar
Meu peito até
Parece sabe o quê?
Táuba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar
Não tem mais!...
De tanto levar
Frechada do teu olhar
Meu peito até
Parece sabe o quê?
Táuba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar...
Teu olhar mata mais
Que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano...
Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De automóvel
Mata mais
Que bala de revólver...
De tanto levar
Frechada do teu olhar
Meu peito até
Parece sabe o quê?
Táuba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar...
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Iracema mru grande amor foi voce
ABRIGO DE VAGABUNDOS
Eu arranjei o meu dinheirinho
Trabalhando o ano inteiro
Numa cerâmica
Fabricando potes e lá no alto da Mooca
Eu comprei um lindo lote dez de frente e dez de fundos
Construí minha maloca
Me disseram que sem planta
Não se pode construir
Mas quem trabalha tudo pode conseguir
João Saracura que é fiscal da prefeitura
Foi um grande amigo, arranjou tudo pra mim
Por onde andará Joca e Matogrosso
Aqueles dois amigos
Que não quis me acompanhar
Andarão jogados na Avenida São João
Ou vendo o sol quadrado na detenção
Minha maloca a mais linda que eu já vi
Hoje está legalizada ninguém pode demolir
Minha maloca a mais linda deste mundo
Ofereço aos vagabundos
Que não tem onde dormir
UM SAMBA DO BEXIGA
Um domingo nóis fumo
Num samba no Bexiga
Na rua Major,
Na casa do Nicola
A mezza notte o'clock,
Saiu uma baita de uma briga.
Era só pizza que avoava
Junto com as brajola.
Nóis era estranho no lugar
E não quisemo se meter.
Não fumo lá pra brigá,
Nós fumo lá pra comê.
Na hora H se enfiemo
Debaixo da mesa,
Fiquemo alí de beleza,
Vendo o Nicola brigá.
Dali a pouco
Escuitemo a patrulha chegá
E o sargento Oliveira falá:
"Não tem importânça,
Vou chamar duas ambulânça.
Carma pessoá,
A situação aqui tá muito cínica.
Os mais pior
Vai pras Crínica."
VIADUTO SANTA IFIGÊNIA
Venha ver
Venha ver Eugênia
Como ficou bonito
O Viaduto Santa Efigênia
Venha ver
Foi aqui,
Que você nasceu
Foi aqui,
Que você cresceu
Foi aqui que você conheceu
O seu primeiro amor
Eu m e lembro
Que uma vez você me disse
Que um dia que demolissem o viaduto
Que de tristeza você usava luto
Arrumava sua mudança
E ia embora pro interior
Quero ficar ausente
O que os olhos não vê
O coração não sente
*******
Abrimos esta série de postagens com a letra de “Sampa”, de Caetano Veloso. E vamos fechar esta série com os respectivos comentários.
Por ora, vamos a Adoniran Barbosa.
Ao longo de sua vida, Adoniran Barbosa por diversas vezes foi indagado, por várias pessoas, porque ele escrevia palavras por assim dizer “erradas” (à luz da norma gramatical culta) como “Arnesto” no lugar de Ernesto, “encontremos”, “tauba”, álvaro” e “reiva” em vez de alvo, de raiva. Asoniran sempre respondia: ‘eu coloco nas minhas letras as palavras que eu ouço nas ruas, palavras faladas pelo povo de São Paulo”.
Pessoalmente, além de Adoniran não conheço outro compositor que tenha retratado São Paulo: seus bairros, ruas, avenidas e praças e, especialmente, seu povo com tanta fidelidade linguística,/antropológica/ sociológica. Adoniram fala de uma São Paulo que eu gosto de ver e de sentir saudade. E de lembrar e de chorar de emoção ao subir (saída) e ao descer (chegada) a escada do avião … sempre e toda as vezes.
Reconheço a beleza de cartões postais como Avenida Faria Lima, viadutos do Chá e de Santa Ifigênia, Rua Direita, Vale do Anhangabaú, Avenida Paulista, Parque do Ibirapuera, Parque Ypiranga, Sé (praça e catedral) … e quem não há-de? Porém dedico mais meu tempo e meus sentidos a observar e vivenciar a diversificada “floresta sociológica” de tipos físicos, modos de vestir, modos e lucus de comer, de falar e de correr e na luta diária contra semáforos, automóveis, catracas de metrô e transeuntes mais lentos, e de superpovoar terminais como o Tietê e outros.
Desde criança ouço Trem das Onze. E então, deixavam-me invadir pela solidão e pela noturnidade que, para mim, essa letra exalava. Conhecí a obra e o talento de Adoniran antes de conhecer a obra das INVEJÁVEIS competênciaS administrativa e política de vários governos chamada cidade de São Paulo.
SAMBA DO ARNESTO exibe, em tons vivos, a solidariedade entre nordestinos que, em São Paulo, vão buscar vida, dinheiro e a dignidade que nunca tiveram em suas cidades de origem. E por tudo isso há um preço elevado a pagar. Elevado porém menor do que continuar servindo de “escravos eleitoreiros” de coronéis impunes de um Nordeste atrasado e pré-medieval, senhores autoritários que insistem em perpetuar privilégios seculares. O samba tem extrema importância como momento de lazer, de agregação e de afirmação da identidade entre conterrâneos. A letra atesta esse grau de importância ao mostrar a frustração, decepção e alguma revolta decorrentes de um samba com hora e lugar marcados … e que não aconteceu. Atesta, por outro lado, o analfabetismo dos migrantes de pouca instrução escolar mas de muita esperança de vencer na vida … e até mesmo chegar a ser eleito presidente da República.
Se, de um lado, Adoniran fala de amores (que deram certo ou que deram errado … tudo muito natural) saudosista, ele recorda – recordar é viver - … de uma São Paulo que (já) no seu tempo (primeira metade do século XX) não mais existe (ao menos como antes): bondes, engraxates, clima ameno e menos poluição, relógios públicos, encontros despreocupados e seguros de namorados em praças igualmente seguras … uma cidade e uma ambiência calma e cordial. E mais silenciosa.
“É o progresso/É o progresso/Mudou tudo/Mudou até o clima”
("Praça da Sé" - Adoniran Barbosa)
******
Duas das mais divulgadas e conhecidas letras/músicas de Adoniran Barbosa são TREM DAS ONZE e SAUDOSA MALOCA. Na primeira, há referência a Jaçanã.
Distrito da zona Norte da cidade de São Paulo, Jaçanã está vinculado administrativamente à Subprefeitura de Jaçanã/Tremembé. Guapira era seu antigo nome e só a partir de 1930 passou a chamar-se JAÇANÃ por causa da grande quantidade de pássaros (chamados jaçanã) no local. Do antigo nome, restou a Avenida Guapira.
TREM DAS ONZE oferece a visão de um homem responsável, bom filho único que leva a sério os horários, o trabalho e os cuidados com a mãe – um personagem de forte agrado e aprovação populares
Se, de um lado, em TREM DAS ONZE e mesmo em SAUDOSA MALOCA, Adoniram cria a imagem do paulistano trabalhador, nordestino, lutador – mas também ético, de outro fica a sugestão do conformismo e da resignação diante da força policial e das autoridades (como em DESPEJO NA FAVELA)
É uma ordem superior ,
Ôôôôôôôô Ômeu senhor ,é uma ordem superior
Não tem nada não seu doutor , não tem nada não
Amanha mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada não seu doutor vou sair daqui pra não ouvir o ronco do trator
Pra mim não tem problema em qualquer canto me arrumo de qualquer jeito me ajeito
Depois o que eu tenho é tão pouco minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás
******
Em TOCAR NA BANDA (gravado depois de Adoniram e dos “Demônios da Garoa” por Martinho da Vila e sua maestria de sempre) Adoniran foge um pouco da dramaticidade e da ortodoxia de outras obras.
Em TOCAR NA BANDA, Adoniran parece aconselhar: “pernas pro ar que ninguém é de ferro”. Isto porque uma sutil ironia abre janelas de irresponsabilidade e faz a apologia do bom vivant. São janelas de um grande salão que costuma abrigar a penumbra, a solaridade e, a um só tempo, a escuridão (!) que marcava a vida do homem adoniraniano tradicional e mais conhecido pelo grande público: responsável, pacífico, trabalhador-herói, às vezes conformado/;resignado diante da força bruta, apaixonado e otimista do tipo “só dói quando eu rio” , daquele indivíduo que diz esta frase com o pescoço atravessado por uma faca.
Tocar na banda
Pra ganhar o quê
Duas mariolas
E um cigarro iolanda
Este refrão tornou-se mais importante que o restante da letra TOCAR NA BANDA. Transformou-se num HIT como falamos hoje. A ponto de, na época em que ‘estourou’ nos rádios, ter se tornado uma expressão corriqueira, em praças, bares e ruas, para traduzir alguma coisa, alguma tarefa, que não merecia tanto esforço diante da ínfima remuneração, do parco dinheiro, que se ganharia para desempenhá-la, para cumprí-la. Qualquer coisa equivalente a “muita lida pra tão pouca vida” – outro dito popular consagrado.
Porém, o refrão não se satisfez em transitar apenas nos espaços e mentes populares. Ele se deixou apropriar pelos salões das universidades e da crítica musical. E virou hino e estandarte das ironias e dos comentários ácidos e demolidores contra artistas (muitos de renome) que negociavam qualquer coisa – “fazemos qualquer negócio” – para se apresentar, aparecer ou ver suas músicas tocar no rádio e, mais tarde, na TV. ‘Crucificavam-se' artistas que se violentavam por tão pouco: apenas por “duas mariolas e um cigarro iolanda”
“Iolanda” era – e é - marca de um cigarro. Mariola é um tipo de doce muito popular, barato e fácil de fazer. É apresentado em tabletes e feito com banana ou goiabada e, tradicionalmente, embrulhado em folha de bananeira seca. Hoje, utilizam-se papel fino e mesmo plástico como embalagens.
Fora do universo da doçaria , mariola é classificação utilizada para patifes, contraventores e pessoas de caráter duvidoso.
Impontual, cínico na justificativa descabida para sua impontualidade, (a culpa é dos diferentes fusos horários ...) eis o homem adoniraniano que emerge de TOCAR NA BANDA.
Num relógio
É quatro e vinte
No outro é quatro e meia
É que de um relógio pra outro
As horas vareia
Mas, para matar nossa saudade, reaparece regenerado, o herói adoniraniano (trabalhador, cheio de culpa e disposto a tudo pela paz tribal, pela paz mundial). Eis o seu solilóquio:
Marquei com a minha nega
Às cinco
Cheguei às cinco e quarenta
Esperar mais
Que vinte minutos
Quem é que agüenta
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Conformismo e resignação que soariam, no mínimo, estranhos e inaceitáveis nos tempos de hoje de movimentos dos sem teto, de defesa das favelas e, de um modo amplo, de afirmação e defesa das políticas públicas urbanas (habitação, saneamento básico, lazer, ambiente saudável, educação, saúde ...) e da cidadania de modo geraL "Os homens tá coa razão"(SAUDOSA MALOCA)
Mas nada disso reduz o brilho e a genialidade de Adoniran. Até mesmo porque sua obra fala de um Brasil com a consciência política da primeira metade do século XX – diferente, portanto, do Brasil politizado desta primeira década do século XXI. Também porque parece haver nos personagens adoniranianos um misto de aceitação e de resignação diante da mão opressora e de otimismo e ironia. O homem adoniraniano é, antes de tudo, alegre, ainda dá gargalhadas - "QUAS, QUAS, QUAS ...
O homem adoniraniano é, também, otimista e conciliador. Pacificador, não gosta de conflito, de confusão)...
Mato Grosso quis gritá
Mas encima eu falei:
Os homens tá coa razão
Nos arranja outro lugá
Só se conformemos quando o Joca falou :
"Deus da o frio conforme o cobertô"
Cantemos, com alegria, SAUDOSA MALOCA:
Si o senhor não ta le mbrado
Dá licença de con tá
Que aqui onde agora es tá
Esse edifício arto
Era uma casa véia
Um pala cete assobra dado
Foi aqui seu moço
Que eu Mato Grosso e o Joca
Constr uimo nossa mal oca
Mais, um dia
- Nois nem pode se alemb rá
Veio os home c'as ferra mentas
O dono m andô derru bá
Peg uemos todas nossas coisas
E fumo pro meio da rua
Preciá a demolição
Que tristeza que nos sent ia
Cada tábua que c aía
Duia no coração
Mato Grosso quis gritá
Mas encima eu fal ei:
Os homens tá coa razão
Nos arranja outro lu gá
Só se conformemos quando o Joca fal ou :
"Deus da o f rio conforme o cober tô"
E hoje nóis pega as p áia nas grama do ja rdim
E prá esq uecê nóis can temos a ssim:
Saudosa mal oca maloca que rida, dim, dim
Donde nóis pas semos os dias f eliz de nossa v ida.
Quas,quas,quas...
Há uma outra virtude no homem adoniraniano. Ele tem uma fixação escópica: ele gosta de ver, de apreciar .. até a própria desgraça.
Te reconhecer
Se hoje passa por aqui
Alguém que já faz
Algum tempo que não te vê(
PRAÇA DA SÉ)
Peguemos todas nossas coisas
E fumo pro meio da rua
Preciá a demolição
(SAUDOSA MALOCA)
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Em TOCAR NA BANDA (gravado depois de Adoniram e dos “Demônios da Garoa” por Martinho da Vila e sua maestria de sempre) Adoniran foge um pouco da dramaticidade e da ortodoxia de outras obras.
Em TOCAR NA BANDA, Adoniran parece aconselhar: “pernas pro ar que ninguém é de ferro”. Isto porque uma sutil ironia abre janelas de irresponsabilidade e faz a apologia do bom vivant. São janelas de um grande salão que costuma abrigar a penumbra, a solaridade e, a um só tempo, a escuridão (!) que marcava a vida do homem adoniraniano tradicional e mais conhecido pelo grande público: responsável, pacífico, trabalhador-herói, às vezes conformado/;resignado diante da força bruta, apaixonado e otimista do tipo “só dói quando eu rio” , daquele indivíduo que diz esta frase com o pescoço atravessado por uma faca.
Tocar na banda
Pra ganhar o quê
Duas mariolas
E um cigarro iolanda
Este refrão tornou-se mais importante que o restante da letra TOCAR NA BANDA. Transformou-se num HIT como falamos hoje. A ponto de, na época em que ‘estourou’ nos rádios, ter se tornado uma expressão corriqueira, em praças, bares e ruas, para traduzir alguma coisa, alguma tarefa, que não merecia tanto esforço diante da ínfima remuneração, do parco dinheiro, que se ganharia para desempenhá-la, para cumprí-la. Qualquer coisa equivalente a “muita lida pra tão pouca vida” – outro dito popular consagrado.
Porém, o refrão não se satisfez em transitar apenas nos espaços e mentes populares. Ele se deixou apropriar pelos salões das universidades e da crítica musical. E virou hino e estandarte das ironias e dos comentários ácidos e demolidores contra artistas (muitos de renome) que negociavam qualquer coisa – “fazemos qualquer negócio” – para se apresentar, aparecer ou ver suas músicas tocar no rádio e, mais tarde, na TV. ‘Crucificavam-se' artistas que se violentavam por tão pouco: apenas por “duas mariolas e um cigarro iolanda”
“Iolanda” era – e é - marca de um cigarro. Mariola é um tipo de doce muito popular, barato e fácil de fazer. É apresentado em tabletes e feito com banana ou goiabada e, tradicionalmente, embrulhado em folha de bananeira seca. Hoje, utilizam-se papel fino e mesmo plástico como embalagens.
Fora do universo da doçaria , mariola é classificação utilizada para patifes, contraventores e pessoas de caráter duvidoso.
Impontual, cínico na justificativa descabida para sua impontualidade, (a culpa é dos diferentes fusos horários ...) eis o homem adoniraniano que emerge de TOCAR NA BANDA.
Num relógio
É quatro e vinte
No outro é quatro e meia
É que de um relógio pra outro
As horas vareia
Mas, para matar nossa saudade, reaparece regenerado, o herói adoniraniano (trabalhador, cheio de culpa e disposto a tudo pela paz tribal, pela paz mundial). Eis o seu solilóquio:
Marquei com a minha nega
Às cinco
Cheguei às cinco e quarenta
Esperar mais
Que vinte minutos
Quem é que agüenta
******
Nesta sexta postagem sobre os CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA, vamos retomar a espiral escópica que emerge de muitas letras do compositor paulistano. Ora estamos a falar sobre TIRO AO ÁLVARO (Tiro ao alvo) composição dividida com Osvaldo Molles. Cá, nosso homenageado desloca o homem adoniraniano ortodoxo do lugar de sujeito que olha (presente em tantas várias letras) e se instala na posição de objeto olhado. Ora pois, vamos cantá-la:
De tanto levar
Flechada do teu olhar
Meu peito até
Parece sabe o quê?
Táuba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar
Não tem mais!...
De tanto levar
Frechada do teu olhar
Meu peito até
Parece sabe o quê?
Táuba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar...
Teu olhar mata mais
Que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano...
Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De automóvel
Mata mais
Que bala de revólver...
O peito do homem adoniraniano é, certamente, uma metáfora além de ser o cipto-objeto-anatômico da condição ontológica de objeto passivo desse mesmo homem. Desse homem apaixonado e autoinserido como vítima dessa relação amorosa assim tão forte Uma vítima clássica que camufla ‘a sete chaves’ o quanto ele contribui para sua própria passividade e sedentarismo afetivo, que luta para esconder (como se estivesse deitado num divã de psicanalista) qual a sua autoinserção, qual a sua responsabilidade direta como alvo (Álvaro) do ataque escópico do ente amado.
“O inferno são os outros” ajudaria o filósofo Jean-Paul Sarte - ao denunciar e condenar a passividade da eterna vítima do mundo - através do personagem Garcin em sua peça “Entre quatro paredes”.“Pimenta no olho dos outros é refresco” – concordaria nossos inúmeros filósofos populares.
Convidemos, também, Maiakóvski
Na primeira noite eles aproximam-se e colhem uma flor do nosso jardim e não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam o nosso cão, e não dizemos nada.
Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, Já não podemos dizer nada.
("Despertar é preciso" - Vladimir Maiakóvski)
Sem fugir à velha regra e ao hábito de atribuir ao outro (ao destino) a responsabilidade exclusiva da dor (tapas) ou do prazer (beijos) - ou seja, a autovitimização compulsiva, mas não necessariamente compulsória - a letra caminha para a morbidez, para a morte … ponto extremo e final de toda a passividade ante o prazer e a dor causada pelo outro:
Teu olhar mata mais
Que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano...
Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De automóvel
Mata mais
Que bala de revólver...
(Embora a faca tipo ‘peixeira’ tenha uso instrumental e linguístico mais comuns entre pernambucanos, … a expressão ‘peixeira de baiano’ se justifica porque, em São Paulo, todo migrante que vem do Nordeste é, genericamente, apelidado de “baiano”).
Mas voltemos para o mesmo lugar de onde não saimos. Qual a diferença básica entre compulsivo e compulsório? O compulsivo é da ordem da subjetividade, do desejo de cada ser humano que é o desejo do outro ser humano. “Onde queres revolta/sou coqueiro” – diz Caetano Veloso em “Quereres”. O gancho do meu desejo parece se enganchar, perfeitamennte, no gancho do desejo do outro; mas só parece. Existe um vácuo - um espaço por assim dizer nanométrico - que impede a ‘colagem’ perfeita entre os dois ganchos. Esse vácuo é, em “Quereres”, a diferença (invisível de tão “pequena”) entre revolta e coqueiro. Entre a revolta que você quer que eu seja e o coqueiro, e só coqueiro, que eu posso ser para você. Paciência.
Um exemplo. Ccompulsório e objetivo (recomendável, normal) é o cuidado de uma pessoa que se certifica, bem, antes de sair de casa, se fechou a torneira de gás do seu fogão ou se trancou a porta de sua casa. Feito isso, a pessoa sai e vai trabalhar, passear, etc. Afinal, hoje em dia não são poucos os casos de explosão de botijões de gás ou de arrombamento de casas e apartamentos.
Porém se alguém volta dezenas de vezes da rua para casa (mal acabou de sair de casa) porque precisa se assegurar, cada vez, de que REALMENTE fechou a torneira de gás ou trancou a porta de casa, isso é compulsivo, é subjetivo; e um caso clássico da doença chamada Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC)
O herói adoniraniano de TIRO AO ÁLVARO ama ao mesmo tempo que odeia o sujeito desse insistente e invasivo olhar de flecha. Ele sofre mas gosta, ele gosta, mas sofre: “nós sofre mas nós goza, nós goza mas nós sofre”. É o gozo (lust), a dordelícia (um neologismo que eu criei para a situação) desse herói. Ele – como cada um de nós – “sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Caetano Veloso). Paciência. Fazer o quê?
Mais uma vez em coro com Jean-Paul Sartre, podemos dizer que “o importante não é o que fazem com a gente, mas o que a gente faz do que fazem com a gente”. O que o homem adoniraniano faz com as flechadas que recebe? Será que ele se comporta como o ‘personagem’ de “Entre Tapas e Beiojos” (?) – letra de Cesar Menotti e Fabiano.
Perguntaram pra mim
Se ainda gosto dela
Respondi, tenho ódio
E morro de amor por ela
Hoje estamos juntinhos
Amanhã nem te vejo
Separando e voltando
A gente segue andando entre tapas e beijos
Eu sou dela, e ela é minha
E sempre queremos mais
Se me manda ir embora
Eu saio pra fora ele chama pra trás
Entre tapas e beijos
É ódio é desejo
É sonho é ternura
O casal que se ama
Até mesmo na cama
Provoca loucuras
E assim vou vivendo
Sofrendo e querendo
Esse amor doentio
Mas se falto pra ela
Meu mundo sem ela
Eu não vivo
Tanto quanto no final de TIRO AO ÁLVARO, em “Entre Tapas e Beijos” existe um flerte com a morte:”: … sem ela eu não vivo”.
E assim vou vivendo
Sofrendo e querendo
Esse amor doentio
Mas se falto pra ela
Meu mundo sem ela
Eu não vivo
Teu olhar mata mais
Que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano...
Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De automóvel
Mata mais
Que bala de revólver...
A posição subjetiva masoquista faz um elo importante entre as duas obras.
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"Só faço samba pra povo. Por isso faço letras com erros de português, porquê é assim que o povo fala. Além disso, acho que o samba, assim, fica mais bonito de se cantar."(Adoniran Barbosa)
Vamos retomar um trecho de TIRO AO ÁLVARO e sobre ele deitar um olhar diferente daquele operado na postagem de ontem, sábado.
Exerçamos um novo olhar possível, bem menos psicanalítco , bem mais histórico e sociológico – história e sociologia do urbano.
Teu olhar mata mais
Que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano...
Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De automóvel
“Atropelamento de automóvel” é uma das causas de morte (causa mortis) dos anos 50 e 60 que Adoniran faz desfilar nesse trecho da letra TIRO AO ÁLVARO. E com isso, certamente, retrata - à façon de um sociólogo - o conteúdo urbano da época em que ele a compôs, ou seja, 1960. Aliás, dois anos atrás, em IRACEMA (1958), o tema atropelamento por automóvel (com vítima fatal) já havia sido tratado pelo compositor. Vamos logo cantar a composição IRACEMA:
Iracema, eu nunca mais te vi.
Iracema meu grande amor foi embora.
Chorei, eu chorei de dor porque,
Iracema meu grande amor foi você.
Iracema, eu sempre dizia,
Cuidado ao atravessar essas ruas,
Eu falava, mas você não escutava não.
Iracema você atravessou na contra mão.
E hoje ela vive lá no céu,
E ela vive juntinho de nosso senhor.
De lembrança guardo somente,
Suas meias e seu sapato,
Iracema eu perdi o seu retrato.
FALADO:
IRACEMA, FALTAVA VINTE DIAS PARA O NOSSO CASAMENTO,
QUE NÓIS IA SE CASAR.
VOCÊ ATRAVESSOU A SÃO JOÃO,
VEIO UM CARRO, TE PEGA, E TE PINCHA NO CHÃO.
VOCÊ FOI PARA ASSISTÊNCIA IRACEMA,
O CHOFER NÃO TEVE CULPA IRACEMA,
PACIÊNCIA IRACEMA, PACIÊNCIA..
E hoje ela vive lá no céu,
E ela vive juntinho de nosso senhor.
De lembrança guardo somente,
Suas meias e seu sapato,
Iracema eu perdi o seu retrato.
A tragédia está posta. A já movimentada (1958) Avenida São João, São Paulo, faz mais uma vítima. O tema do atropelamento letal, tendo como agente o automóvel, é de algum modo recorrente em Adoniran. Explicações psicologizantes selvagens à parte, o fato é que o automóvel, ao menos nas seis primeiras décadas do século XX, era uma grande novidade. Vejam que, para muitos economistas e historiadores, somente nos anos 60 é quando o Brasil entra, verdadeiramente, no mundo do capitalismo – ou seja, quando se inaugura a produção automobilística brasileira em escala industrial. Indústria implantada e implementada pelo presidente Juscelino Kubitschek (JK) que, também, inaugurou Brasília – a então nova capital do Brasil.
Novidade nas ruas de São Paulo (e do Brasil em geral), o automóvel e o trânsito - ainda calmos e lentos ambos – não impunham ainda ao pedestre, ao transeunte, o cuidado e a tensão ao atravessar ruas e avenidas.
Estudos sobre morbimortalidade pos causas externas, no caso atropelamento, não podem dispensar a consulta aos dados sobre a proporção automóvel/habitante dentro de um determinado recorte histórico e cultural. IRACEMA já é uma crítica social dessa morbimoratildade presente nos anos 50, embora a julguemos um flagelo social exclusivo dos dias que correm ante nossas retinas
Em 1958 e nos anos 60 quando tocava, como grande novidade, nos rádios, e era cantada por jovens e idosos, IRACEMA criava, nos ouvintes, um certo mal estar ... Havia sempre quem se emocionasse, às lágrimas, quando ouvia principalmente o trecho falado da música IRACEMA.
Porém não foram poucos, entre críticos e ouvintes comuns, os que acusaram a letra de mórbida, tristonha e de ‘mau gosto’ - “brega” diríamos hoje! Afinal, ser e/ou morrer atropelado não era fato amplamente conhecido, então. Claro que documentos e jornais dos séculos XVII e XIX, em todo o Brasil urbano, noticiam casos de atropelos de várias pessoas por carroças e carruagens puxadas a cavalos.
Pelo sim, pelo não, Adoniran se antecipou à crescente morbimortalidade dos acidentes de trânsito que prosseguem - nos dias e estradas de hoje - causando consternação.
IRACEMA foi inspirada num acidente real, um automóvel que matou uma mulher na Avenida São João.(São Paulo)
TIRO AO ÁLVARO e IRACEMA foram interpretados, magistralmente, por Elis Regina pouco antes de ela e Adoniran morrerem. Ambos faleceram quase na mesma época.
(AMANHÃ, SEGUNDA-FEIRA, A ÚLTIMA POSTAGEM CELEBRATIVA DOS CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA, COM UMA LEITURA CRIPTO-ADONIRANIANA DE “SAMPA”, DE CAETANO VELOSO)
Postado por Vicente Deocleciano Moreira
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"A presença de São Paulo em nossa mente é, hoje, a realização do que Guilherme intuíra em 66 e que me pareceu óbvio já em 67. Gil, sempre Gil, sabendo das coisas essenciais antes, tinha uma decisão pró- São Paulo mais bem desenvolvida do que a minha. Mas Gil não fala dessas coisas assim. Quem afinal compôs “Sampa” fui eu. Sinto mais do que orgulho".
(Caetano Veloso)
"Quando voltei a Sampa, depois de Copacabana e do Solar da Fossa, me apaixonei pela cidade".
(Caetano Veloso)
Finalizando as postagens sobre o CENTENÁRIO DE ADONIRAN BARBOSA, vamos tentar fazer uma leitura adoniraniana da letra “Sampa” de Caetando Veloso com a qual o cantor e compositor baiano homenageou São Paulo, o conjunto musical “Demônios da Garoa” e Adoniran Barbosa.
Vamos cantar Sampa:
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os novos baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa
A maioria dos brasileiros conhece apenas esta versão de “Sampa”; poucos conhecem sua versão em prosa de autoria do próprio Caetano Veloso.. Vamos a esta versão, pois:
CAETANO VELOSO – OBRA EM PROGRESSO.
Cheguei a Sampa com Bethânia em 65. Achamos que parecia uma cidade do interior. E supusemos que os passageiros dos ônibus fossem estrangeiros, por causa do sotaque italianado. O clima era muito provinciano. Não se viam namorados se beijando na boca na rua, como era comum em Paris, no Rio ou em Santo Amaro. Os cinemas da Ipiranga ostentavam cartazes gigantes pintados a mão e não permitiam que os homens entrassem sem paletó. As moças na rua pareciam tímidas e desarrumadas, com os cabelos oleosos. E as pessoas bacanas que fomos conhecendo tinham nostalgia do Rio, da Bahia, do Brasil. As mulheres ricas elegantes que pintavam no teatro para ver Bethânia eram arrumadas demais, ninguém vinha de cara lavada, cabelo nos ombros e calças jeans. Eram peruas pintadas e cheias de jóias. Não foi fácil gostar de São Paulo. Mas me apaixonei pelo teatro de Augusto Boal (o “Zumbi” era uma maravilha) e pelo Oficina (“Os Pequenos Burgueses” era uma montagem que parecia européia, com uma atuação de Fauzi Arap de fazer tremer).
Bethânia, Gal, Tom Zé, Pitti, Gil e este transblogueiro que vos fala atuamos numa peça musical de Boal chamada “Arena Canta Bahia”, sem sucesso de público ou de crítica, mas de grande valor formal e técnico: Boal treinava nosso corpo, compunha imagens perfeitas com nossas figuras. Mas, logo que pude, me mandei para a Bahia.
Quando voltei a Sampa, depois de Copacabana e do Solar da Fossa, me apaixonei pela cidade. E, seguindo um comentário de Guilherme Araújo – carioca original - , passei a achar que o Rio não estava com nada. Meu irmão Bob, que veio a Rio e São Paulo antes disso, desde sempre desprezou o Rio e elegeu Sampa. Mora lá desde os anos 60 e conhece tudo da cidade: não erra caminhos, sabe onde ficam os bairros, tudo. Nunca se sentiu bem no Rio: acha os cariocas agressivos em sua desinibição.
No período do tropicalismo, o Rio me parecia provinciano em seu metropolitanismo de país subdesenvolvido – e São Paulo com peso internacional real, em seu provincianismo cosmopolita. Não era a metrópole do Brasil: era uma cidade do mundo.
Eu via como certo que no futuro São Paulo passaria a contar mais. Nunca mudei essa visão. E hoje as coisas são assim, não mais apenas parecem que serão assim. Todos os aspectos disso se impunham à minha sensibilidade: o fato de as platéias paulistas serem a um tempo mais ingênuas e mais informadas; o jeito a um tempo receptivo e exigente das pessoas com quem conversávamos; a distrubuição pouco brasileira das comunidades de imigrantes em “colônias” um tanto isoladas – tudo contrastava com as platéias-estrela do Rio, com as pessoas blasê e pouco rigorosas do Rio, com o amálgama brasileiríssimo das etnias e classes no Rio.
Quando Verdade Tropical saiu, Marcos Augusto Gonçalves, carioca com quem fiz amizade no Rio e que hoje é paulistano de adoção e tem alta função na Folha, queixou-se de uma quase ausência de São Paulo no livro. Ele sabia que a cidade fôra tão importante na formação do tropicalismo que, mesmo com todas as menções a ela, ele achava que o livro ficava-lhe em débito. Eu detestei o número da Ilustrada (ou já existia o Mais?) dedicado ao meu livro. Mas nunca neguei que a observação de Marcos fosse fundada. Eu próprio acho que nem todas as palavras afetivas ditas sobre minha primeira casa (foi em São Paulo que primeiro tive apartamento para morar), sobre Boal e o Oficina, sobre os poetas concretos, sobre minhas farras com Chico e Toquinho (e o sex-appeal paulistaníssimo de Toquinho) põem em proporção o peso que São Paulo deveria ter naquele livro.
“Zii e zie” é um disco todo do Rio. Seu som, seus temas, seu clima, tudo tem a ver com o fato de meus filhos terem crescido aqui – e com minha adolescência em Guadalupe. Mas sonho em lançá-lo em Sampa. O italiano do título tem vem muito da saudade de São Paulo, do prazer em ouvir e ler paulistas dizendo “tios” e “tias” (ou mesmo “tiozinhos”) para se referirem aos adultos. A presença de São Paulo em nossa mente é, hoje, a realização do que Guilherme intuíra em 66 e que me pareceu óbvio já em 67. Gil, sempre Gil, sabendo das coisas essenciais antes, tinha uma decisão pró- São Paulo mais bem desenvolvida do que a minha. Mas Gil não fala dessas coisas assim. Quem afinal compôs “Sampa” fui eu. Sinto mais do que orgulho.
Hoje São Paulo nem feia mais parece. São tantas coisas grandes e belas que a força da grana garante, é tão nítido o gume São Paulo na entrada moderna do Brasil na História – Museu da Língua Portuguesa, Racionais MCs, Cidade Limpa, Augusta sendo um Largo da Ordem-Pelourinho-Lapa mais antenado com o mundo, Sala São Paulo, OSESP – que hoje sentimos sua liderança e sua centralidade sem precisar pensar.
Demorei a conhecer paulistas que se sentissem superiores ao Brasil. Primeiro achei só os arrogantes e alienados. Só depois vi os realistas. Zé Miguel Wisnik nota que paulistas se ressentem de um deficit de brasilidade e também de uma sensação de superioridade em relação ao país. Muitos oscilam entre esses dois polos. Os queridos e úteis intelectuais da USP sempre parecem que querem salvar o Brasil de si mesmo – ou simplesmente, num universalismo marxista regional, descrêem de tudo o que for nacional. Fernando Henrique falando dos soldados brasileiros que “não sabem marchar – eles sambam” é uma caricatura disso. O livro de Marilena contra a celebração do Descobrimento é uma versão sisuda e errada do mesmo sentimento. Mas ponhamos essas desmunhecadas na conta da geração: esses ecoam ainda modos de sentir do paulista culto que leu muito nos anos 50 e escreveu muito dos 60 em diante. Porque Oswald, Haroldo de Campos e Mário de Andrade não eram assim. E o jovens pós- Zé Celso e pós Rita Lee muito menos.
Chico Buarque para mim é São Paulo. Um grande paulista da linhagem dos que sentiam o deficit de brasilidade de forma dolorosa. E se tornou o mais perfeito brasileiro-carioca simbólico de todos os tempos. Saber que o talvez maior compositor popular de minha geração é um paulista diz tudo sobre a intensidade da energia de São Paulo. E diz mais ainda sobre os caminhos misteriosos da nossa tomada de consciência desse fato e de suas projeções. É só para isso que importa o quanto Chico desaprovará esta interpretação. Quanto ao “talvez” que escrevi antes de “o maior”, ele se deve a eu ter pensado em Jorge Ben e em Paulinho da Viola: Gil e eu não me parece que estejamos no páreo. Somos relevantes pelo conjunto da obra crítica, política, teórica, comportamental que acompanha o trabalho de composição. Mas Chico é o cara da canção.
E ele é paulista.
Este texto é “Sampa” em prosa
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Caetano chega a São Paulo em 1965 quando Adoniram está no auge de sua produção e criatividade – produção esta que está datada entre 1951 e 1972. Porém, o homem adoniraniano que habita “Sampa” (a cidade, bem entendido) é intelectualmente sofisticado e, diferentemente, de sua versão mais simples (o das letras de Adoniran) exerce uma dura visão crítica da capital paulista – logo ao nela chegar. Uma visão crítica não só visivelmente ampla e sem particularizações para bairros ou avenidas – exceto o cruzamento da Avenida Ipiranga com a São João. Mas também estética (juízos de feio, boinito)
O homem adoniraniano de Adoibiran e do de Caetano têm alguns pontos em comum para além de circularem dentro de uma mesma cidade (São Paulo). Por exemplo.
1 - A Avenida São João, em Adoniran, é um sujeito que funciona como cenário e testemunho passivo de um atropelamento que mata Iracema. Em Caetano, ela é um sujeito ativo que cruza a Avenida Ipiranga; esta, por sua vez, cruza a outra; ambas se encontram num dos corações de São Paulo.
2 – A condição de oprimido atribuída ao povo comparece nas composições de ambos, embora com citações diferentes;
3 – O difícil começo. Um dos compositores é baiano e fala, de experiência própria, do “difícil começo”. Não cabe inferir sobre os detalhes dessa dificuldade. Adoniran, paulistano, mergulha na pele do “baiano” (migrante nortista, nordestino) e consegue se fazer o outro enquanto outro.
4 –“Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”("Sampa"). Trata-se de uma frase que denuncia os lugares onde opressores (nem sempre visíveis) oprimem o povo, e cabe ao pé da letra em Sampa, Em Adoniran cabe ao pé do espírito. Aliás, ambos citam a palavra favela, como um calvário dos pobres.
5 – Por fim, ambos estão unidos pela paixão por São Paulo. E isto basta, e não autoriza mais qualquer outro comentário.
Postado por Vicente Deocleciano Moreira às 10:51
segunda-feira, 31 de maio de 2010
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