ADORANDO ADONIRAN (7) - CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA
"Só faço samba pra povo. Por isso faço letras com erros de português, porquê é assim que o povo fala. Além disso, acho que o samba, assim, fica mais bonito de se cantar."(Adoniran Barbosa)
Vamos retomar um trecho de TIRO AO ÁLVARO e sobre ele deitar um olhar diferente daquele operado na postagem de ontem, sábado.
Exerçamos um novo olhar possível, bem menos psicanalítco , bem mais histórico e sociológico – história e sociologia do urbano.
Teu olhar mata mais
Que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano...
Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De automóvel
“Atropelamento de automóvel” é uma das causas de morte (causa mortis) dos anos 50 e 60 que Adoniran faz desfilar nesse trecho da letra TIRO AO ÁLVARO. E com isso, certamente, retrata - à façon de um sociólogo - o conteúdo urbano da época em que ele a compôs, ou seja, 1960. Aliás, dois anos atrás, em IRACEMA (1958), o tema atropelamento por automóvel (com vítima fatal) já havia sido tratado pelo compositor. Vamos logo cantar a composição IRACEMA:
Iracema, eu nunca mais te vi.
Iracema meu grande amor foi embora.
Chorei, eu chorei de dor porque,
Iracema meu grande amor foi você.
Iracema, eu sempre dizia,
Cuidado ao atravessar essas ruas,
Eu falava, mas você não escutava não.
Iracema você atravessou na contra mão.
E hoje ela vive lá no céu,
E ela vive juntinho de nosso senhor.
De lembrança guardo somente,
Suas meias e seu sapato,
Iracema eu perdi o seu retrato.
FALADO:
IRACEMA, FALTAVA VINTE DIAS PARA O NOSSO CASAMENTO,
QUE NÓIS IA SE CASAR.
VOCÊ ATRAVESSOU A SÃO JOÃO,
VEIO UM CARRO, TE PEGA, E TE PINCHA NO CHÃO.
VOCÊ FOI PARA ASSISTÊNCIA IRACEMA,
O CHOFER NÃO TEVE CULPA IRACEMA,
PACIÊNCIA IRACEMA, PACIÊNCIA..
E hoje ela vive lá no céu,
E ela vive juntinho de nosso senhor.
De lembrança guardo somente,
Suas meias e seu sapato,
Iracema eu perdi o seu retrato.
A tragédia está posta. A já movimentada (1958) Avenida São João, São Paulo, faz mais uma vítima. O tema do atropelamento letal, tendo como agente o automóvel, é de algum modo recorrente em Adoniran. Explicações psicologizantes selvagens à parte, o fato é que o automóvel, ao menos nas seis primeiras décadas do século XX, era uma grande novidade. Vejam que, para muitos economistas e historiadores, somente nos anos 60 é quando o Brasil entra, verdadeiramente, no mundo do capitalismo – ou seja, quando se inaugura a produção automobilística brasileira em escala industrial. Indústria implantada e implementada pelo presidente Juscelino Kubitschek (JK) que, também, inaugurou Brasília – a então nova capital do Brasil.
Novidade nas ruas de São Paulo (e do Brasil em geral), o automóvel e o trânsito - ainda calmos e lentos ambos – não impunham ainda ao pedestre, ao transeunte, o cuidado e a tensão ao atravessar ruas e avenidas.
Estudos sobre morbimortalidade pos causas externas, no caso atropelamento, não podem dispensar a consulta aos dados sobre a proporção automóvel/habitante dentro de um determinado recorte histórico e cultural. IRACEMA já é uma crítica social dessa morbimoratildade presente nos anos 50, embora a julguemos um flagelo social exclusivo dos dias que correm ante nossas retinas
Em 1958 e nos anos 60 quando tocava, como grande novidade, nos rádios, e era cantada por jovens e idosos, IRACEMA criava, nos ouvintes, um certo mal estar ... Havia sempre quem se emocionasse, às lágrimas, quando ouvia principalmente o trecho falado da música IRACEMA.
Porém não foram poucos, entre críticos e ouvintes comuns, os que acusaram a letra de mórbida, tristonha e de ‘mau gosto’ - “brega” diríamos hoje! Afinal, ser e/ou morrer atropelado não era fato amplamente conhecido, então. Claro que documentos e jornais dos séculos XVII e XIX, em todo o Brasil urbano, noticiam casos de atropelos de várias pessoas por carroças e carruagens puxadas a cavalos.
Pelo sim, pelo não, Adoniran se antecipou à crescente morbimortalidade dos acidentes de trânsito que prosseguem - nos dias e estradas de hoje - causando consternação.
IRACEMA foi inspirada num acidente real, um automóvel que matou uma mulher na Avenida São João.(São Paulo)
TIRO AO ÁLVARO e IRACEMA foram interpretados, magistralmente, por Elis Regina pouco antes de ela e Adoniran morrerem. Ambos faleceram quase na mesma época.
(AMANHÃ, SEGUNDA-FEIRA, A ÚLTIMA POSTAGEM CELEBRATIVA DOS CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA, COM UMA LEITURA CRIPTO-ADONIRANIANA DE “SAMPA”, DE CAETANO VELOSO)
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