quinta-feira, 20 de maio de 2010

A CIDADE DE ORAN, SEGUNDO MARCEL CAMUS

A CIDADE DE ORAN, SEGUNDO MARCEL CAMUS ("A PESTE")


Camus inicia seu livro "A Peste" com um retrato da cidade de Oran, que é invadida pelos ratos.

Na próxima postagem, amanhã - sexta-feira - comentaremos sobre este retrato.


I



Os curiosos acontecimentos que são o objeto desta crônica ocorreram em 194 ... em Oran. Segundo a opinião geral, estavam deslocados, já que saíam um pouco do comum. À primeira vista. Oran é, na verdade, uma cidade comum e não passa de uma Prefeitura francesa na costa argelina.

A própria cidade, vamos admiti-lo, é feia. Com o seu aspecto tranqüilo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas, nem o sussurro de folhas. EM resumo, um lugar neutro. Apenas no céu se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelas cestas de flores que os pequenos vendedores trazem dos subúrbios; é uma primavera que se vende nos mercados. Durante o verão, o sol incendeia as casas muito secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então, só é possível viver à sombra das persianas fechadas. No outono, pelo contrários, é um dilúvio de lama. Os dias bonitos só chegam no inverno.

Uma forma Cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se trabalha e como se morre. Na nossa cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muit, mas apenas para enriquecerem. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, segundo a sua própria expressão, em fazer negócios. Naturalmente, apreciam prazeres simples, gostam de mulheres, de cinema e de banhos de mar. Muito sensatamente, porém, reservam os prazeres para os domingos e os sábados à noite, procurando nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro. À tarde, quando saem dos escritórios, reúnem-se a uma hora fixa nos cafés, passeiam na mesma avenida ou instalam-se nas suas varandas. Os desejos dos mais novos são violentos e rápidos, enquanto os vícios dos mais velhos não vão além das associações de boulomanes ¹, os banquetes das amicales² e os ambientes em que se aposta alto no jogo de cartas.

Dirão sem dúvida que nada disso é peculiar à nossa cidade e que, em suma, todos os nossos contemporâneos são assim. Sem dúvida, não há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e em tagarelices o tempo que lhes resta para viverem,. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida. Simplesmente, houve a suspeita o que já significa algo. Oran, pelo contrário, é uma cidade aparentemente sem suspeitas, que dizer, uma cidade inteiramente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um hábito a dois. Também isso não é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e reflexão, somos obrigados a amar sem saber.

O que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que se pode ter para morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais certo falar em desconforto. Não é agradável ficar doente, mas há cidades e países que nos amparam na doença e onde podemos, de certo modo, nos entregar. O doente precisa de carinho, gosta de se apoiar em alguma coisa. É bastante natural. Em Oran, porém, os excessos do clima, a importãncia dos negócios que se tratam, a insignificância do cenário, a rapidez do crepúsculo e a qualidade dos prazeres, tudo exige boa saúde. Lá o doente fica muito só. O que dizer, então, daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes de calor, enquanto no mesmo minuto, toda uma população, ao telefone ou nos cafés, fala de letras de câmbio, de conhecimentos ou de descontos? Compreenderão o que há de desconfortável na morte, mesmo moderna, quando ela chega assim, num lugar seco.

Estas poucas indicações dão talvez uma idéia suficiente da nossa cidade. Aliás, é necessário não exagerar. O importante era ressaltar o aspecto banal da cidade e da vida. Mas os dias passam-se sem dificuldades, desde que se tenham criado hábitos. A partir do momento em que nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode-se dizer que tudo vai bem. Sob esse aspecto, sem dúvida, a vida não é muito emocionante. Pelo menos, desconhece-se a desordem. E a nossa população franca, simpática e ativa sempre despertou no viajante uma estima considerável. Esta cidade sem pitoresco, sem vegetação e sem alma acaba parecendo repousante e afinal adormece-se nela. Mas é justo acrescentar que está enxertada numa paisagem sem igual, no meio de um planalto nu, rodeada de colinas luminosas, diante de uma baía de desenho perfeito. Pode-se apenas lamentar que tenha sido construída de costas para essa baía eque, portanto, seja impossível ver o mar. É sempre preciso ir procurá-lo.


Notas

1 – Neologismo que designa os entusiastas do jogo muito popular na França.

2 – Nome das associações formadas por membros do ensino, etc.


Referência bibliográfica

CAMUS, Albert – A Peste / La Peste / Trad Valery Rumjanek. 3ª ed. Rio de Janeiro, Record, s.d., pp. 7-9.

Nenhum comentário:

Postar um comentário