domingo, 23 de maio de 2010

Crítica/"Poeira: Demônios e Maldições" - especial para a "Folha de S. Paulo"

Crítica/"Poeira: Demônios e Maldições" - especial para a "Folha de S. Paulo"

("Folha de S. Paulo", São Paulo, 22 de maio de 2010, p. E6)


"Poeira: Demônios e Maldições", de Nelson de Oliveira, é uma novela que mistura ficção alegórica e realismo fantástico - híbrido que, nos anos 1960, teve no autor José J. Veiga um hábil praticante.

A história pode ser resumida assim: em São Paulo, como em outras grandes cidades, a enorme produção de livros leva ao caos urbano.

Parques e praças somem para dar lugar a bibliotecas; grupos descontentes fazem manifestações; o governo lança medidas provisórias contra a impressão de novos títulos; edições novas e reedições clandestinas aparecem cada vez com maior frequência e quantidade de volumes;o Exército, aproveitando a confusão, tenta dar um golpe de Estado.

Nesse cenário, conduzido em chave cômico-apocalíptica, convivem um bibliotecário enlouquecido com a situação dos livros; sua mulher, a sensual Estela; e um visitante, chefe do setor de estoques, cuja função é achar lugares para construir novos depósitos.

Posteriormente, ficamos sabendo que está em curso uma verdadeira "revolução dos livros", conduzida por um demônio subterrâneo, que vive num inferno de nove círculos de produção livresca.

Conquanto a alegoria da primeira parte possa ser lida como amplificação cômica pertinente da situação de superprodição de livros desimportantes, a parte subterrânea da narrativa perde a graça e o tom.

A paródia se reduz a espaçoes exóticos e a uma narrativa quase juvenil da ficção científica.

A suposta grande sacada é intercambiar a idéia do mal(e, forçosamente, de Mallarmé) com a de Hal, o computador de "2001 - Uma Odisséia no Espaço" (1968). Em vez das máquinas, é o velho livro que agora se interpreta como "superconsciência tentacular" a pretender dominar o universo.

O livro seria francamente ilegível, não fosse o tratamento estilístico engenhoso: acumulação de adjetivos caóticos, descrições aleatórias, frases cortadas, diálogos sem marcas formais, decomposições geométricas das cenas,m desnaturalização de hábitos prosaicos, intercalação de capítulos fora da sequência principal de ações etc.

Graças a isso, alguns dos 77 capítulos curtos são bem resolvidos como exercício de experiência narrativa. Destaco especialmente a divertida sequência dos capítulos 34 a 48, que acompanha o ponto de vista do visitante trapalhão, excitado por Estela. Se se sustentassem sozinhos, resultariam uma novela muito melhor.

Infelizmente, os capítulos posteriores ao 65, em que as explicações dadas nunca acertam o tom difícil da piada solene, fazem com que "Poeira: Demônios e Maldições" seja apenas mais uma evidência do excedente livresco. (ALCIR PÉCORA)

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