Leitura de fatos violentos publicados na mídia
Ano 10, nº 16, 24/05/10
O CRIME E AS VANTAGENS DOS ESPAÇOS RECÔNDITOS
A mesma delegacia da cidade de Salto (estado de São Paulo) que foi cenário daquele roubo que motivou a última leitura de fatos violentos já sofreu outra agressão capaz de se destacar como espaço-tema para mais uma leitura.
Depois de sediar um assalto com vantagem total para o criminoso e perda de mais de 13 mil reais para uma senhora que ali se encontrava a fim de registrar queixa de clonagem do seu celular, a delegacia de Salto foi, ela própria, violentada. Desta vez a modalidade não foi assalto. Os agressores investiram contra o seu patrimônio físico, produzindo danos à edificação, especialmente na sua fachada, a qual ostenta um relevante lembrete pintado em letras desbotadas: “Construída pelo povo”.
No primeiro evento – assalto em plena delegacia – o efeito é desmoralizante, mas poderia ser amenizado se a ocorrência pudesse ser percebida como sinal de que aquela unidade de polícia e a cidade de Salto ainda estão imunes à insegurança que tem avançado sobre os municípios brasileiros. Neste caso, seria possível se imaginar que a referida cidade estaria distante das prescrições e dos hábitos gerados pela violência e pelo medo. Assim, seria compreensível que os próprios funcionários da área de segurança, diante da falta de intimidade com as múltiplas e surpreendentes formas de ação criminosa, não conseguissem ver o que estava diante dos seus olhos e que deles exigia uma intervenção: um assalto em plena delegacia.
O segundo evento – os ataques contra as edificações daquela unidade da polícia civil – coloca em dúvida a imagem de uma pacata cidade que foi surpreendida por uma ação criminosa inusitada. Tem-se a impressão de que o lugar já comporta algo como um conjunto de violências e de inseguranças próprias, tal como ocorre em muitas cidades paulistas e brasileiras. Prevalecendo-se este sentido, são retirados os atenuantes anteriormente sugeridos para a compreensão do primeiro caso e carregadas “as tintas” em torno de um ímpeto interpretativo oposto ao abrandamento quando se pretende avaliar a situação. De lugar pacato, Salto pode ser concebida como cidade perdida, como se fosse um posto avançado do descontrole no que se refere ao quesito segurança.
Como se trata de uma localidade pouco projetada midiaticamente, existe a chance de passar a ser reconhecida por estas duas únicas ocorrências, por esses dois “saltos” que deram àquele espaço um destaque, um sinal de existência conferido por sua incorporação à agenda midiática. Cria-se, assim, a imagem de uma cidade do interior capaz de comportar disparates inadmissíveis no campo da segurança. E Salto pode virar folclore associado a um estilo de segurança trapalhão e a um modo de viver perigoso.
Para se evitar a ilusão de que os feitos de Salto se constituem monopólio daquele município deve-se recorrer à suspeita de que inúmeras cidades do interior brasileiro ainda não foram objeto de construção midiática e que a criminalidade tem invadido os espaços mais recônditos do País não banhados pelas telas das TVs, ondas de rádio ou linhas dos jornais impressos. Esta invisibilidade que atinge a maioria das cidades médias produz um sentido de tranqüilidade, de vida bucólica e provedora de uma paz natural que não se coaduna com o sucedido em Salto e com muito do que ocorre, diariamente, no interior de cada município oculto da visão midiática.
Os episódios verificados em Salto devem ser tomados como possibilidades aplicáveis a vários municípios. Existem casos, não registrados amplamente pelos meios de comunicação de massa, que dão conta de cidades com espaço físico previsto para abrigar funcionamento de delegacias as quais não existem por falta de delegados, podendo-se dizer da existência de delegacias cenográficas. Também são registrados problemas relativos à segurança das unidades de polícia civil que estão sendo contornados através da contratação de segurança privada, conforme indicam notícias divulgadas a partir das revelações originais de Salto.
Revelações deste tipo sugerem a necessidade de revisão do pressuposto de que as cidades distantes das grandes metrópoles se encontram a salvo de riscos. Ao contrário disso, elas estão se tornando vulneráveis ao incremento da criminalidade em seus territórios, inclusive pela discrição e esquecimento em que se encontram. São espaços ocultos e fragilizados em virtude de negligências institucionais que estão sendo visados por aqueles que necessitam agir fora da lei e em paz.
Leitura de fatos violentos publicados na mídia
Ano 10, nº 15, 16/05/10
ASSALTO EM DELEGACIA: REPREENDA!
Já não é inusitado ficar gravemente enfermo por ter sido internado em um hospital para tratamento de um problema de saúde não muito grave. Um hospital deve ser visto como lugar apto, adequado ou indicado para se contrair doenças e, também, tem sido capaz de uma outra missão referente ao campo do não atendimento a indivíduos que ali chegam com esperança de cura para males típicos da área médica. É claro que ao lado destas tendências convivem as velhas aptidões associadas à cura e ao restabelecimento do paciente. Tem-se, portanto, um quadro eclético marcado pelo espírito da probabilidade, da sorte, do azar, do destino etc.
À medida que esta configuração se foi naturalizando, através da “pedagogia da repetição dos casos”, este modelo de unidade de saúde foi assumindo a condição de sinônimo de “hospital genérico” em confronto com o “hospital de marca”, a exemplo do celebrado Hospital das Clínicas de São Paulo. Desse modo foi-se desenvolvendo uma tolerância ou uma incorporação relativamente a este jeito de ser e de se ter saúde.
Consolidado o paradigma, todo construído a partir da observação de práticas constantes no mundo da saúde – com maior expressão, entusiasmo e experiência no âmbito público –, seria o caso de se buscar a tradução deste sucesso para além do domínio da saúde. E eis que uma notícia emerge em 14 de maio de 2010 dando conta de um evento registrado no interior de uma delegacia da cidade paulistana de Salto que pode ser resultado de uma experiência-piloto de aplicação do paradigma na área da segurança pública.
Uma comerciante de 52 anos foi assaltada no interior de uma delegacia para onde foi com a acanhada intenção de registrar um boletim de ocorrência por clonagem de celular. Na ocasião ela portava consigo a considerável quantia de 13.500 reais que havia retirado do banco momentos antes com pretensão de quitar dívidas e de comprar equipamentos para o seu comércio.
Abordada no interior da delegacia ela reagiu: “joguei a bolsa em cima do balcão, o ladrão pulou enlouquecido e foi buscar. Ninguém fez nada”. Ela tentou se agarrar ao criminoso para retirar dele o seu pertence, mas cedeu aos seus apelos quando ele disse ao outro assaltante que estava do lado de fora que atirasse.
As outras pessoas presentes, as testemunhas (!), foram os policiais civis que se encontravam trabalhando na delegacia e que, diligentemente, interpretaram a dinâmica dos fatos como típica da relação marido e mulher e se recolheram à condição de assistentes passivos, tal como reza a cartilha cultural em sua máxima “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Esta opção comportamental, ao tempo que se lastreia na mencionada referência cultural, parece não se combinar com as novidades legais conformadas pela festejada Lei Maria da Penha.
A vítima, ao final do ensejo, saiu se perguntando: “a quem devo recorrer?” Este desamparo se equipara ao sofrido pelos que procuram uma unidade de saúde e saem dali com uma nova doença instalada e sem resposta àquela que estava em curso e que motivou a visita.
É necessário ser leve ao máximo para se abordar problemas que envolvam tamanha gravidade. A busca de análises suaves tem o fito de evitar mais uma dor e, ao mesmo tempo, assegurar uma mínima contribuição crítica diante de práticas desrespeitosas que têm se tornado corriqueiras e, às vezes, adquirido certo charme técnico, a partir de um linguajar hermético, inacessível, em outras palavras, perverso.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário