segunda-feira, 31 de maio de 2010

ADORANDO ADONIRAM (8) – FINAL – CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA

ADORANDO ADONIRAM (8) – FINAL – CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA


"A presença de São Paulo em nossa mente é, hoje, a realização do que Guilherme intuíra em 66 e que me pareceu óbvio já em 67. Gil, sempre Gil, sabendo das coisas essenciais antes, tinha uma decisão pró- São Paulo mais bem desenvolvida do que a minha. Mas Gil não fala dessas coisas assim. Quem afinal compôs “Sampa” fui eu. Sinto mais do que orgulho".

(Caetano Veloso)



"Quando voltei a Sampa, depois de Copacabana e do Solar da Fossa, me apaixonei pela cidade".

(Caetano Veloso)



Finalizando as postagens sobre o CENTENÁRIO DE ADONIRAN BARBOSA, vamos tentar fazer uma leitura adoniraniana da letra “Sampa” de Caetando Veloso com a qual o cantor e compositor baiano homenageou São Paulo, o conjunto musical “Demônios da Garoa” e Adoniran Barbosa.

Vamos cantar Sampa:

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os novos baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa



A maioria dos brasileiros conhece apenas esta versão de “Sampa”; poucos conhecem sua versão em prosa de autoria do próprio Caetano Veloso.. Vamos a esta versão, pois:


CAETANO VELOSO – OBRA EM PROGRESSO.

Cheguei a Sampa com Bethânia em 65. Achamos que parecia uma cidade do interior. E supusemos que os passageiros dos ônibus fossem estrangeiros, por causa do sotaque italianado. O clima era muito provinciano. Não se viam namorados se beijando na boca na rua, como era comum em Paris, no Rio ou em Santo Amaro. Os cinemas da Ipiranga ostentavam cartazes gigantes pintados a mão e não permitiam que os homens entrassem sem paletó. As moças na rua pareciam tímidas e desarrumadas, com os cabelos oleosos. E as pessoas bacanas que fomos conhecendo tinham nostalgia do Rio, da Bahia, do Brasil. As mulheres ricas elegantes que pintavam no teatro para ver Bethânia eram arrumadas demais, ninguém vinha de cara lavada, cabelo nos ombros e calças jeans. Eram peruas pintadas e cheias de jóias. Não foi fácil gostar de São Paulo. Mas me apaixonei pelo teatro de Augusto Boal (o “Zumbi” era uma maravilha) e pelo Oficina (“Os Pequenos Burgueses” era uma montagem que parecia européia, com uma atuação de Fauzi Arap de fazer tremer).

Bethânia, Gal, Tom Zé, Pitti, Gil e este transblogueiro que vos fala atuamos numa peça musical de Boal chamada “Arena Canta Bahia”, sem sucesso de público ou de crítica, mas de grande valor formal e técnico: Boal treinava nosso corpo, compunha imagens perfeitas com nossas figuras. Mas, logo que pude, me mandei para a Bahia.

Quando voltei a Sampa, depois de Copacabana e do Solar da Fossa, me apaixonei pela cidade. E, seguindo um comentário de Guilherme Araújo – carioca original - , passei a achar que o Rio não estava com nada. Meu irmão Bob, que veio a Rio e São Paulo antes disso, desde sempre desprezou o Rio e elegeu Sampa. Mora lá desde os anos 60 e conhece tudo da cidade: não erra caminhos, sabe onde ficam os bairros, tudo. Nunca se sentiu bem no Rio: acha os cariocas agressivos em sua desinibição.

No período do tropicalismo, o Rio me parecia provinciano em seu metropolitanismo de país subdesenvolvido – e São Paulo com peso internacional real, em seu provincianismo cosmopolita. Não era a metrópole do Brasil: era uma cidade do mundo.

Eu via como certo que no futuro São Paulo passaria a contar mais. Nunca mudei essa visão. E hoje as coisas são assim, não mais apenas parecem que serão assim. Todos os aspectos disso se impunham à minha sensibilidade: o fato de as platéias paulistas serem a um tempo mais ingênuas e mais informadas; o jeito a um tempo receptivo e exigente das pessoas com quem conversávamos; a distrubuição pouco brasileira das comunidades de imigrantes em “colônias” um tanto isoladas – tudo contrastava com as platéias-estrela do Rio, com as pessoas blasê e pouco rigorosas do Rio, com o amálgama brasileiríssimo das etnias e classes no Rio.


Quando Verdade Tropical saiu, Marcos Augusto Gonçalves, carioca com quem fiz amizade no Rio e que hoje é paulistano de adoção e tem alta função na Folha, queixou-se de uma quase ausência de São Paulo no livro. Ele sabia que a cidade fôra tão importante na formação do tropicalismo que, mesmo com todas as menções a ela, ele achava que o livro ficava-lhe em débito. Eu detestei o número da Ilustrada (ou já existia o Mais?) dedicado ao meu livro. Mas nunca neguei que a observação de Marcos fosse fundada. Eu próprio acho que nem todas as palavras afetivas ditas sobre minha primeira casa (foi em São Paulo que primeiro tive apartamento para morar), sobre Boal e o Oficina, sobre os poetas concretos, sobre minhas farras com Chico e Toquinho (e o sex-appeal paulistaníssimo de Toquinho) põem em proporção o peso que São Paulo deveria ter naquele livro.


“Zii e zie” é um disco todo do Rio. Seu som, seus temas, seu clima, tudo tem a ver com o fato de meus filhos terem crescido aqui – e com minha adolescência em Guadalupe. Mas sonho em lançá-lo em Sampa. O italiano do título tem vem muito da saudade de São Paulo, do prazer em ouvir e ler paulistas dizendo “tios” e “tias” (ou mesmo “tiozinhos”) para se referirem aos adultos. A presença de São Paulo em nossa mente é, hoje, a realização do que Guilherme intuíra em 66 e que me pareceu óbvio já em 67. Gil, sempre Gil, sabendo das coisas essenciais antes, tinha uma decisão pró- São Paulo mais bem desenvolvida do que a minha. Mas Gil não fala dessas coisas assim. Quem afinal compôs “Sampa” fui eu. Sinto mais do que orgulho.


Hoje São Paulo nem feia mais parece. São tantas coisas grandes e belas que a força da grana garante, é tão nítido o gume São Paulo na entrada moderna do Brasil na História – Museu da Língua Portuguesa, Racionais MCs, Cidade Limpa, Augusta sendo um Largo da Ordem-Pelourinho-Lapa mais antenado com o mundo, Sala São Paulo, OSESP – que hoje sentimos sua liderança e sua centralidade sem precisar pensar.


Demorei a conhecer paulistas que se sentissem superiores ao Brasil. Primeiro achei só os arrogantes e alienados. Só depois vi os realistas. Zé Miguel Wisnik nota que paulistas se ressentem de um deficit de brasilidade e também de uma sensação de superioridade em relação ao país. Muitos oscilam entre esses dois polos. Os queridos e úteis intelectuais da USP sempre parecem que querem salvar o Brasil de si mesmo – ou simplesmente, num universalismo marxista regional, descrêem de tudo o que for nacional. Fernando Henrique falando dos soldados brasileiros que “não sabem marchar – eles sambam” é uma caricatura disso. O livro de Marilena contra a celebração do Descobrimento é uma versão sisuda e errada do mesmo sentimento. Mas ponhamos essas desmunhecadas na conta da geração: esses ecoam ainda modos de sentir do paulista culto que leu muito nos anos 50 e escreveu muito dos 60 em diante. Porque Oswald, Haroldo de Campos e Mário de Andrade não eram assim. E o jovens pós- Zé Celso e pós Rita Lee muito menos.


Chico Buarque para mim é São Paulo. Um grande paulista da linhagem dos que sentiam o deficit de brasilidade de forma dolorosa. E se tornou o mais perfeito brasileiro-carioca simbólico de todos os tempos. Saber que o talvez maior compositor popular de minha geração é um paulista diz tudo sobre a intensidade da energia de São Paulo. E diz mais ainda sobre os caminhos misteriosos da nossa tomada de consciência desse fato e de suas projeções. É só para isso que importa o quanto Chico desaprovará esta interpretação. Quanto ao “talvez” que escrevi antes de “o maior”, ele se deve a eu ter pensado em Jorge Ben e em Paulinho da Viola: Gil e eu não me parece que estejamos no páreo. Somos relevantes pelo conjunto da obra crítica, política, teórica, comportamental que acompanha o trabalho de composição. Mas Chico é o cara da canção.

E ele é paulista.

Este texto é “Sampa” em prosa



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Caetano chega a São Paulo em 1965 quando Adoniram está no auge de sua produção e criatividade – produção esta que está datada entre 1951 e 1972. Porém, o homem adoniraniano que habita “Sampa” (a cidade, bem entendido) é intelectualmente sofisticado e, diferentemente, de sua versão mais simples (o das letras de Adoniran) exerce uma dura visão crítica da capital paulista – logo ao nela chegar. Uma visão crítica não só visivelmente ampla e sem particularizações para bairros ou avenidas – exceto o cruzamento da Avenida Ipiranga com a São João. Mas também estética (juízos de feio, boinito)
O homem adoniraniano de Adoibiran e do de Caetano têm alguns pontos em comum para além de circularem dentro de uma mesma cidade (São Paulo). Por exemplo.

1 - A Avenida São João, em Adoniran, é um sujeito que funciona como cenário e testemunho passivo de um atropelamento que mata Iracema. Em Caetano, ela é um sujeito ativo que cruza a Avenida Ipiranga; esta, por sua vez, cruza a outra; ambas se encontram num dos corações de São Paulo.

2 – A condição de oprimido atribuída ao povo comparece nas composições de ambos, embora com citações diferentes;

3 – O difícil começo. Um dos compositores é baiano e fala, de experiência própria, do “difícil começo”. Não cabe inferir sobre os detalhes dessa dificuldade. Adoniran, paulistano, mergulha na pele do “baiano” (migrante nortista, nordestino) e consegue se fazer o outro enquanto outro.

4 –“Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”("Sampa"). Trata-se de uma frase que denuncia os lugares onde opressores (nem sempre visíveis) oprimem o povo, e cabe ao pé da letra em Sampa, Em Adoniran cabe ao pé do espírito. Aliás, ambos citam a palavra favela, como um calvário dos pobres.

5 – Por fim, ambos estão unidos pela paixão por São Paulo. E isto basta, e não autoriza mais qualquer outro comentário.

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