A grave patologia da educação brasileira
Viviane Senna
__________________________________________
O Brasil se destaca como um "case" de egossintonia secular, em relação a disfunções e sintomas graves, como a falta de equidade e de educação,
___________________________________________
Em 20 anos de prática clínica, observei que os sintomas são nossos aliados. E tão melhores quanto mais nos incomodem.
Como verdadeiros sistemas de alarme, sinalizam que alguma coisa está em risco. Portanto, são eles que nos permitem mudar o desfecho de uma história, de nossa história. Desde que os ouçamos.
Quanto mais egossintônico é um sintoma para um indivíduo, pior será o seu prognóstico. Do mesmo modo, quanto mais confortável uma sociedade se sente com seus distúrbios, piores serão as chances de superá-los.
O Brasil se destaca como um "case" de egossintonia secular, em relação a disfunções e sintomas graves, como a falta de equidade, de ética e de educação.
Prova disso é que levamos mais de 300 anos para editar o primeiro livro e fundamos nossa primeira universidade apenas no século 20, 300 anos depois da primeira universidade da América Latina e 400 anos após a primeira universidade da América do Norte, Harvard.
Ninguém sentiu desconforto com isso ou com o fato de que essa universidade foi criada apenas para conceder o título honoris causa ao rei da Bélgica. Não é à toa que, em 1950, convivíamos pacífica e confortavelmente com taxas de 50% de analfabetos absolutos, enquanto a Argentina e os EUA tinham, respectivamente, 14% e 3% de analfabetos.
Tudo isso sem contar que, em 1900, essa taxa era de 65%, o que significa que levamos meio século para reduzi-la em 15 pontos percentuais!
No primeiro censo escolar, de 1932, o índice de repetência na primeira série era de 60%. Quase 50 anos depois, no censo de 1980, esse índice foi reduzido para incríveis 50%. Hoje, essa taxa para o ensino fundamental é de cerca de 20%, colocando-nos atrás de países como Uganda, Ruanda e Haiti.
No entanto, continuamos convivendo pacificamente, também, com consequências dessa realidade: a evasão e o abandono.
De cada dez crianças que entram na primeira série do ensino básico, só três o concluem. E mais: apenas uma em cada dez sabe o que deveria saber para o terceiro ano do ensino médio. E um quinto desses alunos tem, em matemática, nível de quarta série do fundamental.
E qual é a reação diante desse quadro? As pesquisas mostram que 70% das famílias de alunos de escolas públicas estão satisfeitas com o ensino que seus filhos recebem. Fica difícil decidir o que é mais grave: o cenário da educação ou nossa reação diante dele.
É possível, no entanto, suplantar esse padrão histórico de egossintonia com situações graves como essa. Como mostra o movimento Todos pela Educação, até 2022 podemos atingir o padrão de desempenho escolar da média dos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Para isso, precisamos aliar compromisso ético com competência técnica.
Estudo feito por Ricardo Paes de Barros, com cerca de mil municípios parceiros do Instituto Ayrton Senna, mostra que é possível acelerar o desenvolvimento educacional entre seis e 11 anos a cada ano de trabalho, não importando as condições adversas e a região do país.
Altamira, no Pará, tinha 70% de seus alunos atrasados. Hoje, esse número está em torno de 20%. Em São Vicente (São Paulo), o antigo índice de 16% de alunos com distorção de idade e de série está em 3%. A rede de ensino de Boca do Acre (Amazonas) reduziu a taxa de defasagem de 70% para 19%, alcançando o primeiro lugar no Ideb (índice de Desenvolvimento da Educação Básica) da rede estadual (4,4).
Assim, a despeito da extrema seriedade do quadro educacional brasileiro, é possível rever o curso. Basta ouvir os sintomas e aliar a vontade ético-política à competência técnica, transformando incômodo em resultados para mudar toda uma história. A nossa história.
________
VIVIANE SENNA, formada em psicologia pela PUC-SP, é presidente do Instituto Ayrton Senna e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República.
(Publ. "Folha de São Paulo", São Paulo, 22 de novembro de 2010, p. A3)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário