quarta-feira, 24 de novembro de 2010

M.A. de Menezes - BAUDELAIRE: o poeta ... (2)

BAUDELAIRE: o poeta da cidade moderna (2)
Marco Antonio de Menezes

(continuação)

Se, no século XVII, a flânerie ainda não era de todo possível devido o aspecto insalubre da cidade a partir do século XIX, as reformas no espaço urbano – tendo como modelo a Paris de Haussmann – propiciariam o livre passeio pela malha da cidade e com isto favorecer sua descrição pela literatura. Neste período o desenvolvimento da imprensa, também, contribuiu para que a nova “escritura” da cidade se afirmasse. O texto rápido que narra o desenrolar da vida no dia-a-dia da cidade é a moda que ganha as páginas dos jornais inaugurando a reportagem.

Dickens, Balzac, Hugo, Dostoievski, Gogol, Zola, para só citar literatos europeus do século XIX, foram alguns dos que, ansiando por desvendar a alma humana, compreenderam que deviam debruçar-se sobre a janela do gabinete onde escreviam e encarar a cidade, estabelecendo um fluxo entre o devaneio pessoal e intransferível e o bulício das ruas.

Não é por menos que Baudelaire sugeria que o verdadeiro artista moderno deveria épouser la foule e que para o observador apaixonado, o flâneur, é grande fortuna escolher sua moradia no numeroso, no ondulante, no movimento, e no fugitivo e infinito. 10

E é, no entanto, o próprio Baudelaire quem funda uma poesia voltada para a cidade e oriunda dela, escrevendo sobre a Paris do Segundo Império, uma cidade grandiosa, planejada, urbanizada, centro da produção intelectual e cultural e pólo irradiador de idéias na época. A face da Paris que revela é caótica e opressora, apresenta claramente aquele caráter dicotômico que aponta para a atração e a repulsa. O olhar da poesia volta-se para o submundo, para a miséria humana: a mulher é a prostituta; as imagens são carregadas em cores fortes, sombras e detalhes, produzindo estranhamento, choque, horror e, ao mesmo tempo, fascínio.

Transformar em poesia uma cidade: representar seus personagens, evocar figuras humanas e situações; fazer com que em cada momento mutável a verdadeira protagonista seja a cidade viva, sua continuidade biológica, o mostro - Paris: essa é a tarefa à que Baudelaire se sente chamado no momento em que começa a escrever Les Fleurs du mal.

Baudelaire nos revela, como num quadro de fisionomias, o que está interno ao olhar, percepção que na metade do século XIX nos dá a idéia do Outro, do que não temos controle, que perambula Mdesatento e aflito, que foge ao olhar e ao verbo. O olhar do flâneur vai de encontro ao olhar da bela passante na multidão, e o detém, por menos de um instante, mas ao perdê-lo apreende que a Paris do século XIX é um mosaico de luzes, movimento, e solidão. A bela passante é esquecida e relembrada a cada instante.

Em Baudelaire, assinala Williams – a cidade era uma ‘orgia de vitalidade’, um mundo instantâneo e transitório de ‘êxtases febris’.11 Nesse contexto, no século XIX, Baudelaire aparece como criador de um paradigma da cidade moderna, ao assimilar, principalmente, o caráter brusco e inesperado que caracteriza a vida transitória do homem moderno. Na leitura que Walter Benjamin12 faz do escritor, está presente a
idéia de que a arte é também um ato de resistência, um protesto comum contra a sociedade.

Leitor de Baudelaire e de Benjamin, Marshall Berman13 mostra como o herói moderno de Baudelaire abre um caminho que vai além da representação imagética tradicional da cidade como virtude ou como vício. Ao romper com a tradição literária que ao mesmo tempo integrava e ao criar uma linguagem própria, nascida da observação das cidades, Baudelaire acabou criando um novo modelo de cidade moderna, que corresponde justamente à imagem da cidade “além do bem e do mal” de Carl Shorske14. Os caminhos que Baudelaire abriu com sua esgrima criaram, então, uma matriz de cidade moderna. Baudelaire buscou, na imensidão das grandes cidades, o efêmero que caracterizou sua época. O momento histórico de Baudelaire foi aquele em que a cidade era o local privilegiado da disputa pelo poder, em que este espaço estava no centro dos acontecimentos como fonte obscura e temível do próprio poder.

Ordenar, disciplinar esta cidade vira obsessão para os governantes saídos das lutas de 1848. A defesa contra a ameaça revolucionária dá o tom das intervenções que vão provocar o deslocamento de uma ordem — até então confusa e mal-traçada — que remonta ao período medieval. Ambientes públicos e privados são separados e até contrapostos por medidas legais. A via pública passa a ser o lugar onde cada um se misturará com os outros sem ser reconhecido. É aí que Baudelaire se sente só em meio à multidão. A rua oitocentista, filha da rua medieval, acaba por modificá-la e destruí-la: os caminhos sinuosos e irregulares são alargados e substituídos. Velhos bairros são demolidos, e uns poucos edifícios antigos – os mais importantes – são mantidos por serem considerados documentos históricos. Estes edifícios “isolados” tornam-se “monumentos” separados do ambiente urbano. Arte e vida já não estão entrelaçadas, o ambiente quotidiano começa a ficar mais pobre. Os espaços públicos e privados vão se separando cada vez mais. Os intelectuais, também, vão se distanciando da coisa pública.

As mudanças públicas realizadas, em Paris, pelo Barão Haussmann são criticadas e consideradas vulgares e fastidiosas por escritores diversos, como os Goncount e Proudhon. Eugéne Sue, Balzac, Victor Hugo e Dickens apreciavam o aspecto confuso, misterioso e integrado da cidade tradicional, mas foi Baudelaire – no poema Le cygne, de Les fleurs du mal – quem melhor soube traduzir o efeito temível da rapidez com que as obras de Haussmann eram executadas.

Fecundou-me de súbito a fértil memória,
Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel.
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história
Depressa muda mais que um coração infiel);15


(O cisne, v. 5).


Com Baudelaire, a literatura urbana mostra novos aspectos: sons, edifícios, tráfego, tudo isso é matéria literária por fazer parte da nova consciência que envolve homens e mulheres. Pode-se afirmar que a literatura modernista nasceu na cidade, e com Baudelaire. Desde metade dos anos de 1840, Baudelaire defendia uma nova atitude nas artes. Seu Salão de 1845 é um texto curto, menos denso que suas últimas observações sobre pinturas e pintores. Era o início. Escreve ele: O salão, em suma, assemelha-se a todos os salões precedentes. 16

Chamam-lhe a atenção apenas algumas peças de Willliam Haussoulier, de Delacroix e de Alexandre-Gabriel Decamps. Mas em matéria de invenção, de idéias, de temperamento, não houve melhora em relação ao de antes. 17 Lamenta que os artistas que expuseram neste salão não se deram conta de que o heroísmo da vida moderna nos envolve e nos pressiona. 18

Ele espera pelo futuro em que o pintor, o verdadeiro pintor saberá arrancar à vida atual a sua componente épica e ambiciona que possam os verdadeiros pesquisadores nos oferecer no próximo ano a alegria singular de celebrar o surgimento do novo! 19
Se estes comentários pareciam um pouco vagos para a renovação artística, no Salão de 1846 um estilo jornalístico arrojado é adotado. Neste texto, Baudelaire mostra o quão à beleza é múltipla e relativa.

Antes de buscar qual pode ser o épico da vida moderna, e de provar, com exemplos, que nossa época não é menos fecunda que as antigas em motivos sublimes, pode-se afirmar que, como todos os séculos e todos os povos tiveram sua beleza, nós temos inevitavelmente a nossa. Isto é normal. 20

Para Baudelaire, o artista tem de estar vinculado com sua época. Esta é a condição da produção da arte moderna. Assim, a obra está ligada ao tempo e à história. Existem, pois, artistas mais ou menos capazes de compreender a beleza moderna. 21 Neste caso, a modernidade é mais que um período histórico, é atitude, consiste em procurar, por uma decisão da vontade de construir uma eternidade particular.


A vida parisiense é fecunda em termos poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e nos sacia como a atmosfera; mas não o vemos. 22


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9 Quando Restif de la Bretonne escreve sua obra Les Nuits de Paris, 16 volumes editados entre 1788 e 1793, a capital francesa tinha aproximadamente 700 mil habitantes.
10 BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. In: A Modernidade de Baudelaire. Tradução, Suely Cassal Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 170.
11 WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 316.
12 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994.
13 BERMAN, Marshall. Tudo que é solido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
14 SHORSKE, Carl. Op. cit., p. 47.
15 BAUDELAIRE, Charles. O cisne. In: As Flores do Mal. Op. cit., p. 326–327.
16 BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1845. Poesia e prosa. Volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 1079.
17 Ibidem, p. 1079.
18 Ibidem, p. 1079.
19 Ibidem, p. 1079.
20 BAUDELAIRE, Charles. O salão de 1846. Poesia e prosa: Op. cit., p. 683.
21Ibidem, p 730.
22 Ibidem, p 731.
23 Ibidem, p 731.

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