segunda-feira, 8 de novembro de 2010

MALANDRO, MORRO E CIDADE: passado e atualidade de uma trilogia carioca na MPB carioca

MALANDRO, MORRO E CIDADE: passado e atualidade de uma trilogia carioca na MPB

Vicente Deocleciano Moreira

Nota do Blog

Começo, hoje, 8 de novembro/2010, as postagens desta série (MALANDRO, MORRO E CIDADE: passado e atualidade de uma trilogia carioca na MPB)com o artigo "O Malandro carioca e o “Maloqueiro” paulista em diálogo através da canção" de Márcia Cristina Roque Corrêa Marques (dividido, aqui, em três partes)como um rito de abertura da série .. apesar de a mesma se concentrar no malandro carioca. De todo o modo, o leitor poderá fazer a comparação entre o malandro carioca e o "maloqueiro" paulista, a bem da compreensão geral e particular desses dois tipos culturais bem brasileiros.

Vicente D. Moreira


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O Malandro carioca e o “Maloqueiro” paulista em diálogo através da canção (I)

Márcia Cristina Roque Corrêa Marques

Licenciada em Letras e atualmente é acadêmica do curso de Mestrado em Literaturas Brasileira e Luso-Africanas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com especialização em Literatura Brasileira pela mesma Universidade.

[NAU LITERÁRIA. Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas. Artigos da seção livre PPG-LET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 03 N. 01 – jan/jun 2007]


Resumo:

O presente trabalho analisa as canções “Lenço no Pescoço” e “Rapaz Folgado”, dos cariocas Wilson Batista e Noel Rosa, e “Saudosa Maloca”, do paulista Adoniran Barbosa, a fim de resgatar as figuras do malandro, do sambista e do “maloqueiro” por elas apresentadas. Como ponto de partida, tomamos o fato de que, tanto as canções cariocas quanto a canção paulista, resgataram o momento de expansão e industrialização das duas cidades, com aumento da massa urbana e acentuada diferenciação social, com conseqüente exclusão da massa operária. Apesar de compostas em épocas diferentes, as canções têm o mesmo movimento, ao criar imagens bastante fortes dos personagens do drama urbano. Contudo, cada uma delas cria uma imagem particular, de um lado o malandro carioca que não se submete nunca à sociedade que o oprime e de outro o conformado “maloqueiro” paulista.

Palavras-Chave: malandro, maloca, canção.



Abstract:

This work aims at analyzing the songs “Lenço no Pescoço” by Wilson Batista, “Rapaz Folgado” by Noel Rosa and “Saudosa Maloca” by Adoniran Barbosa in order to have an overview of the characters created by these songs and the way in which they reacted to the processes of industrialization and consequent social exclusion which resulted from the increase of the urban masses in Rio de Janeiro and in São Paulo at the time in which they were composed.

Keywords: malandro, maloca, popular songs.



A canção é, sem dúvida, uma manifestação cultural bastante particular no Brasil, tendo em seu berço uma marca bastante popular e passando por momentos de elitização ao longo de sua história. José Ramos Tinhorão em seu História Social da Música Popular Brasileira (1998) traça um paralelo entre os rumos da música popular no Brasil e os principais eventos sociais, políticos e econômicos que, segundo o autor, influenciaram o desenvolvimento desta manifestação cultural. No presente trabalho, visamos analisar e contrastar figuras estereotipadas criadas por canções do Rio de Janeiro e de São Paulo, usando as composições de autores cariocas “Lenço no Pescoço” de Wilson Batista e “Rapaz Folgado” de Noel Rosa e “Saudosa Maloca” do paulista Adoniran Barbosa.

Como ponto de partida da análise, tomamos por base o fato de que as duas canções. foram compostas em momentos em que as cidades do Rio de Janeiro, nos anos 20, e de São Paulo, nos anos 50, vivenciavam momentos que tinham alguns traços semelhantes e ambas também enfrentaram momentos de profunda expansão e modernização, com aumento da população urbana devido à migração interna no país. As duas cidades iniciaram nestas épocas distintas, e devido a estes movimentos, os processos de separação drástica entre as classes sociais, sendo que, em cada uma delas, a expressão musical acabou por ser uma marca destas classes menos favorecidas. Tratando do Rio de Janeiro, Tinhorão (1998) considera o surgimento do samba como um derivado do sucesso das revistas do início do século XX. Este tipo de divertimento, associado aos blocos de rua carnavalescos, era o que mais atingia as camadas populares no Brasil e ajudou a conferir um caráter eminentemente brasileiro “ao gênero, na base do aproveitamento de tipos populares como o matuto, o coronel fazendeiro, o português, a mulata, o guarda, o capadócio (o fadista português depois chamado de malandro no Brasil), o funcionário público, o camelô, etc.” (TINHORÃO, 1998, p. 238). Neste ponto, localizamos o início da utilização de figuras populares como temática das
canções populares. Com o advento da tecnologia de gravação mecânica de sons, a revista e o carnaval passaram a ser uma das formas mais intensas de contato das camadas mais baixas da população com a música, uma vez que a gravação e o equipamento para a reprodução de sons tinham um preço inacessível a esta parcela da população.

Tinhorão (1998) chama a atenção para o fato de o Rio de Janeiro ter sido um reduto da
migração interna de trabalhadores no país nesta época, explicando assim o crescimento da massa popular urbana trabalhadora nesta cidade. Com a falta de acesso aos meios culturais das classes mais abastadas, esta camada da população encontrou no samba a forma de expressão livre que abrigava esta nova experiência urbana. Era natural, portanto, que a figura do malandro carioca caracterizada em uma canção pudesse causar tanto desconforto a Noel Rosa, um dos compositores tratados no presente trabalho e profundamente empenhado em seu ofício de sambista, pois, se por um lado se constituía num retrato do que se passava em determinadas camadas sociais do país, por outro vinha a denegrir a imagem do sambista carioca. Foi neste momento que surgiu o famoso impasse entre os compositores Noel Rosa e Wilson Batista..

A canção “Rapaz Folgado”, de Noel Rosa, foi composta em 1933 como uma resposta
a Wilson Batista, que havia composto “Lenço no Pescoço”, canção na qual criava um
estereótipo bastante negativo, na visão de Noel Rosa, a respeito da figura do malandro carioca, associado ao sambista. Em “Lenço no Pescoço”, Batista caracterizava o malandro da seguinte forma:

Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio

(BATISTA, Wilson. Lenço no Pescoço, 1932)

O malandro carioca estava aí caracterizado, não somente em sua indumentária, mas também em seu orgulho em vadiar. A imagem evoca a ginga daquele que tira proveito das situações, é “safo” e não tem medo de nada. No Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (LIMA & BARROSO, 1949, p.776), o termo é definido como “sujeito que costuma abusar da confiança dos outros; ou que não trabalha e vive de expedientes; vadio; gatuno.” Ou seja, um indivíduo que despreza o trabalho e vive de “expedientes”, enganando e roubando. Já neste verbete, verificase uma caracterização altamente pejorativa. Em nosso tempo, buscando nos meios eletrônicos a definição para este tipo, encontramos no site http://pt.wikipedia.org a entrada para o verbete
“malandragem” colocada da seguinte maneira:

Malandragem define-se como um conjunto de artimanhas utilizadas para se obter vantagem em determinada situação (vantagens estas muitas vezes ilícitas). Caracteriza-se pela engenhosidade e sutileza. Sua execução exige destreza, carisma, lábia e quaisquer características que permitam a manipulação de pessoas ou resultados, de forma a obter o melhor destes, e da maneira mais fácil possível. Contradiz a argumentação lógica, o labor e a honestidade, pois a malandragem pressupõe que tais métodos são incapazes de gerar bons resultados. [...] neste a integridade de instituições e de indivíduos é efetivamente lesada, e de forma juridicamente definível como dolosa. No entanto, a malandragem bem-sucedida pressupõe que se obtenham vantagens sem que sua ação se faça perceber. Em termos mais populares, o “malandro” “engana” o “otário” (vítima) sem que este perceba ter sido enganado. A malandragem é descrita no imaginário
popular brasileiro como uma ferramenta de justiça individual. Perante a força das instituições necessariamente opressoras, o indivíduo “malandro” sobrevive manipulando pessoas, enganando autoridades e driblando leis, de forma a garantir seu prejudicado bem-estar. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Malandragem)

Comparando-se as duas definições com a letra composta por Wilson Batista, verificamos que a figura criada pelo compositor é quase que um resumo da concepção atual do malandro. No mesmo site, há uma referência ao samba de Batista como o “hino da malandragem”, que liga a canção ao surgimento da figura do malandro, afirmando ainda que foi nos sambas cariocas que este “personagem” foi mais exaltado.

Na seqüência da canção o compositor ainda coloca:

Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão


(BATISTA, Wilson. Lenço no Pescoço, 1932)


Verificamos que o autor denigre a condição do trabalhador, afirmando que o trabalho
nada traz em benefício deste, que aponta uma associação entre a figura do sambista e a do vagabundo. A esta canção, Noel Rosa respondeu com “Rapaz Folgado”, na qual ridicularizava a imagem criada por Wilson Batista.

Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado


(ROSA, Noel. Rapaz Folgado, 1933)

Em sua composição, Noel Rosa demonstrava uma grande preocupação com a imagem do sambista sendo associada à do malandro e propôs uma mudança de termos. Segundo Luiz Tatit (2002), para Noel Rosa a canção era o samba e o autor enfatiza a forma como o compositor via o sambista, sempre tentando elevar sua figura:

Noel impressionava pela altivez com que tratava o samba. Nunca pôs em dúvida o valor do sambista. Seu orgulho vaza pelos textos e convence o ouvinte pela compatibilidade que mantém com as respectivas melodias. Nunca se pautou por fontes eruditas ou por idioletos populares estereotipados. Exibia consciência surpreendente da linguagem do samba.

(TATIT, 2002, p.29-30)


Noel Rosa tinha, como já dito, uma grande preocupação com a imagem do sambista e com uma caracterização positiva do samba. Em suas composições, tentava alcançar um perfeito equilíbrio entre melodia e letra (que tratavam comumente de situações cotidianas ou amorosas) e, deste equilíbrio, chamado por Tatit (2002) de “malabarístico”, resultava o samba. Seu texto era o “texto ideal para a canção, exatamente porque (Noel) se preocupava com o samba e não com a poesia” (TATIT, 2002, p.30).

Tatit (2002, p.31) também salienta que o conteúdo das canções de Noel era de “cunho eminentemente pessoal” e que seu objetivo maior era traçar “um conjunto de regras básicas para a composição brasileira”. Se a polêmica em torno da figura do malandro era uma jogada de marketing entre os dois compositores ou não, o fato é que, através de suas canções, mais que uma polêmica musical, temos de um lado uma caracterização que ficou, de certa forma, eternizada no imaginário popular e de outro uma tentativa de desligar esta imagem negativa do sambista carioca. Negativa porque caracterizava o sambista como alguém que tirava vantagem de tudo, de forma inescrupulosa, mas também colocava o indivíduo das classes mais baixas cariocas como aquele que escapa das adversidades até com certa altivez, sem dobrar-se perante as regras da sociedade e sem importar-se com elas, fazendo uso até mesmo de esquemas ilícitos para contornar estas adversidades.

Esta figura caracterizava o malandro carioca como aquele que luta, mesmo que de
forma negativa, contra a situação na qual se encontra, sem se render e sem se conformar. Em oposição a este ideário, temos a figura da pessoa humilde da cidade de São Paulo retratada na canção “Saudosa Maloca” de Adoniran Barbosa, considerado por Antonio Candido (apud MATOS, 2001) como a voz da cidade de São Paulo. O momento da criação desta canção é posterior ao da canção de Noel Rosa.A II Guerra Mundial terminara e o Brasil vivia a consumação do que já se prenunciava à época de Noel e Batista. O país tinha enfim caído nas malhas da dominação econômica imposta pelos Estados Unidos (TINHORÃO, 1998), e a rápida expansão se dava às custas do sucateamento da matéria nacional. São Paulo entrou numa época de crescimento, modernização e industrialização. O processo de migração nordestina, vivenciado no Rio de Janeiro anos antes, era intensificado em São Paulo, aumentando a massa urbana que se dividia cada vez mais segundo as classes sociais e o tipo de atividade desenvolvida pelos moradores. É tratando dessa época que Maria Izilda Santos de Matos (2001) aponta para a invenção da chamada “paulistaneidade”, ou seja, o sentimento de ufanismo regional por viver-se na “cidade que mais cresce no país” e toda uma gama de novos desejos e padrões que, em choque com valores mais tradicionais, gerava um ambiente urbano cheio de nostalgia, devido às intensas e constantes transformações que a cidade vivia (MATOS, 2001).


(o artigo de Márcia Cristina Marques prossegue amanhã dia 9 de novembro/2010)

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