MALANDRO, MORRO E CIDADE: passado e atualidade de uma trilogia carioca na MPB (8)
Vicente Deocleciano Moreira
É fato que já não se 'fazem' (mais) malandros como antigamente. O 'novo malandro' é o malandro moderninho de "Homenagem ao Malandro"/Chico Buarque. E o não tão 'novo' assim porque estreante em 1959 - segunda metade do século XX - mas, de todo o modo, um arauto do então 'futuro malandro' (ou o malandro do futuro?; estou falando do malandro arrependido", "confessional" e "convertido" em trabalhador de "Bonde de São Januário", de Wilson Batista e Ataulfo Alves:
Quem trabalha
É quem tem razão
Eu digo
E não tenho medo
De errar
O Bon'de São Januário
Leva mais um operário
Sou eu
Que vou trabalhar
Antigamente
Eu não tinha juízo
Mas hoje
Eu penso melhor
No futuro
Graças a Deus
Sou feliz
Vivo muito bem
A boemia
Não dá camisa
A ninguém
Passe bem!
Mas há lugar, também, para saudades do morro e do malandro de antigamente. É o caso de "Saudosa Mangueira", de Herivelto Martins. Herivelto viveu 80 anos (30 de janeiro de 1912 - 16 de setembro de 1992) ... o suficiente para ter sentido tanta e tamanha saudade:
Tenho saudades da Mangueira
Daquele tempo em que eu batucava por lá
Tenho saudade do terreiro da escola
Eu sou do tempo do Cartola
Velha guarda o que é que há?
Eu sou do tempo em que malandro nào descia
Mas a polícia no morro também não subia
Aí Mangueira, minha saudosa Mangueira
Depois que o progresso chegou
Tudo se transformou e a Mangueira mudou
Já não se samba mais à luz do lampião
E a cabrocha não vai pro terreiro de pé no chão
Amig@s:
Querem dois "malandros" mais up to date do que Tom Jobim & Chico Buarque em "Piano na Mangueira"?
Mangueira
Estou aqui na plataforma
Da estação primeira
O morro veio me chamar
De terno branco
E chapéu de palha
Vou me apresentar
À minha nova parceira (majestosa)
Mandei subir o piano
Prá mangueira
A minha música não é de
Levantar poeira
Mas pode entrar no barracão
Onde a cabrocha pendura
A saia ao amanhecer da
Quarta-feira, Mangueira
Estação primeira
Pela vida inteira
Mangueira
Sim, e a "Ópera do Malandro" de Chico Buarque ... lembram?
O QUE É A "ÓPERA DO MALANDRO"
A Ópera do malandro, de Chico Buarque de Holanda, estreou em julho de 1978, no Rio de Janeiro. Era época da ditadura militar e o Brasil ainda atravessava um período de repressão, menos intensa que nos "anos de chumbo", é bem verdade. Apenas para nos situarmos no tempo, foi no mesmo ano que nasceu o primeiro bebê de proveta na Inglaterra (Louise Brown), faleceram Orlando Silva, Ziembinski e o Papa Paulo VI, substituído por João Paulo I, que morreu em seguida, dando lugar a João Paulo II. Mas a Ópera continua absolutamente atual, se lembrarmos a crise de um País entregue à falcatrua, ao comércio de bundas, ao capital estrangeiro, à corrupção – questões prementes desde o final dos anos 70, quando a peça foi escrita.
O texto, baseado nas Ópera do mendigo, de John Gray (de 1918) e na Ópera dos três vinténs, de Bertold Brecht e Kurt Weill (de 1928), é ambientada num bordel e retrata a malandragem brasileira, em espetáculo musical, com composições de Chico Buarque de Holanda. Em meados dos anos 80, o conceituado cineasta Ruy Guerra (de Os Cafajestes e tantos outros filmes) transpôs a obra para o cinema. Várias já foram as versões apresentadas no teatro; a última delas trouxe a direção de Gabriel Villela, no ano de 2000 (ver mais sobre a montagem no final deste texto).
Chico Buarque, em 1978, declarou que a sua Ópera do Malandro "é um texto novo, em cima da Ópera do Mendigo (The Beggar's Opera), com detalhes de Brecht". No elenco da montagem original, dirigida por Luiz Antonio Martinez Corrêa, participaram Otávio Augusto (Max), Marieta Severo (Terezinha), Elba Ramalho (Lucia) e Emiliano Queiroz (Geni).
Ambientada em um bordel, ela conta a história de um malandro carioca, tentando sobreviver nos anos 40, final da ditadura de Getúlio Vargas – clima bem parecido com o de 1978. Como espetáculo musical, que é, a trama gira em torno de Max, ídolo dos bordéis. A temática, como não poderia deixar de ser, retrata a malandragem brasileira no submundo da cidade do Rio de Janeiro, com todos os ingredientes capazes de nos transportar àquela época, com a chegada das meias de nylon e dos produtos norte-americanos, que entravam clandestinamente. Não muito diferente da cena das falsificações vendidas pelos camelôs de nossa cidade maravilhosa.
O cenário é a Lapa das prostitutas e da pancadaria; o período – a década de 40 – com a Guerra assolando o mundo e mandando seus ecos para o Brasil. A Ópera do Malandro põe em cena a rivalidade entre o contrabandista Max Overseas e Fernandes de Duran, o dono dos prostíbulos da Lapa. Bem no meio da briga está Terezinha, a filha única de Duran e de Vitória, que se casa com Max sob as bênçãos do Inspetor Chaves, o Tigrão, que "trabalha" para os dois contraventores. O casamento é o golpe final na família Duran: o desgosto dos pais de Terezinha – e, naturalmente, a ameaça aos negócios – é o gatilho da trama em que todos tentam tirar vantagem de todos. A peça cria, ainda, outros personagens inesquecíveis, como Geni e Lúcia, esta última filha de Tigrão e rival de Terezinha.
A peça, na época em que foi montada pela primeira vez, sofreu censura – o que não parece ser muita novidade, nem na carreira de Chico Buarque, nem na história do País. No caso, a letra cantada pela personagem Terezinha teve de ser adaptada. O texto era: "Meu amor tem um jeito de me beijar o sexo, e o mundo sai rodando, e tudo vai ficando solto e desconexo". E passou a ser (como hoje é conhecida pelo grande público): "O meu amor tem um jeito de me beijar o ventre e me deixar em brasa/ desfruta do meu corpo como se o meu corpo fosse a sua casa".
Nara Leão e Chico Buarque
A mudança foi decidida faltando pouco mais de uma semana para a estréia de Ópera do malandro, mas Chico, pouco depois, disse preferir a letra que substituiu a original – pelo menos, foi ela que ficou conhecida.
A Ópera do malandro foi lançada numa época em que a poética de Chico Buarque estava "afiadíssima". Ele vinha de uma tentativa frustrada de montar outro musical, Calabar, sufocado pela censura do regime militar. Talvez, também por isso, a Ópera fale de corrupção policial, do jogo entre o aparato oficial e a bandidagem, tudo bastante atual como mostra o noticiário dos jornais. A trilha produziu várias preciosidades que foram fazer sucesso em outros discos, como Folhetim, cantado por Nara Leão, na trilha, e sucesso com Gal Costa. Chico pegou O meu amor interpretado por Marieta Severo e Elba Ramalho para o disco que tinha seu nome como título, lançado em 1978, e no qual também incluiu a Homenagem ao malandro, numa interpretação sua menos saborosa do que a de Moreira da Silva, na trilha.
Na época, a peça criou um bordão popular "joga pedra na Geni", da canção Geni e o zepelim, cantada por Chico Buarque. Geni é uma prostituta que se deita com qualquer um e, por isso, é desprezada pelos supostos cidadãos de bem. Um belo dia, aparece um militar poderoso que ameaça dizimar tudo, mas cai de amores pela Geni e promete poupar a cidade se ela deitar-se com ele. Geni reluta, a população implora, ela atende. O poderoso chafurda nas suas carnes a noite inteira e parte ao amanhecer. Quando Geni, crente que agora tinha o respeito de todos, se prepara para dormir, começa a gritaria: "Joga pedra na Geni".
Sabemos que a música clássica, às vezes, aparece por intermédio da música popular. Na sua Ópera do Malandro, Chico Buarque faz citação explícita a várias obras famosas, como, por exemplo, a Carmen, de Georges Bizet. Também a canção final de Os Saltimbancos, aquela do "todos juntos somos fortes...", é integralmente uma melodia de Beethoven.
Outras versões
A versão de Gabriel Villela para esse musical arremessa a malandragem da Lapa numa espécie de cenário de Velho Oeste que lembra a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos.
Nessa espécie de estábulo, é como se Villela dissesse que o processo de colonização persiste. E nossos carrascos são os "ianques, com seus tanques" e nós mesmos, patéticos e deslumbrados diante das maravilhas do primeiro mundo. A versão de Villela "atropela" toda a sutileza do texto original, travando a narrativa com uma série de improvisos que divertem, mas esvaziam o texto de sua carga dramática: são inúmeras as vezes que os atores "erram" o texto ou se "surpreendem" falando o texto de outra peça. Por outro lado, os números musicais apresentam uma novidade: os cantores-atores desafinam o tempo todo, propondo aquilo que Villela chama de "teatro do equívoco". Depois da centésima desafinada, contudo, o "defeito" não tem mais efeito sobre a platéia e a crítica aos costumes embutida na peça se dilui entre risos.
(Créditos/Fonte - Persona - Universidade Estácio de Sá)
(Amanhã,terça, 16, mais ...)
domingo, 14 de novembro de 2010
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