BAUDELAIRE: o poeta da cidade moderna (1)
Marco Antonio de Menezes
Trabalho apresentado ao I SEMINÁRIO ARTE E CIDADE - Salvador, Bahia - Brasil, maio de 2006 PPG-AU - Faculdade de Arquitetura / PPG-AV - Escola de Belas Artes / PPG-LL - Instituto de Letras UFBA
Foi a raça maldita de Caim, o primeiro demônio humano, que se espalhou sobre a terra e fundou as primeiras cidades. Raça de Caim, tua argamassa, jamais foi sólida o bastante1 O fruto de um povo marcado pelo crime e ódio não poderia ser doce, e sim amargo. Após o dilúvio – castigo de Deus contra os infratores de suas leis, contra a geração de Caim –, aqueles que sobreviveram fixaram-se em uma planície na terra de Sinear e, ali, começam a edificar uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus.2 No entanto, Babel – cidade erguida com tijolos queimados; pretensão dos homens a criadores – não poderia persistir; não era lícito ao homem igualar-se a Deus. O
homem não poderia construir uma outra natureza, artificial, erguida sobre a natureza primordial e unitária: a obra divina.
Então o Senhor – ao ver a cidade e a torre, o que os filhos dos homens faziam, e perceber que, agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer3 – resolveu lançar mais uma maldição sobre a própria criação: as línguas foram embaralhadas, e os homens não mais se entendiam. Assim o Senhor os espalhou dali sobre a face da terra; e cessaram de edificar a cidade. 4
A cidade do século XIX é a Babel que prospera com a perda das conexões e a falta de referência aos valores do passado; palco para a atrofia progressiva da experiência relativa à tradição, à memória válida para toda a comunidade, substituída pela vivência do choque ligada à esfera do individual. O impacto da técnica moderna mudou tudo e, especialmente, a cidade, cuja capacidade de regeneração – metamorfose sem fim de autodestruição criativa – foi ficando cada vez mais rápida.
A partir da Revolução Inglesa e, em especial, no século XIX, o desenvolvimento das cidades muda de ritmo não mais para acompanhar as badaladas dos sinos nos mosteiros, mas o tic-tac do relógio mecânico. Agora, o crescimento ou refluxo obedece às normas ditadas pelas necessidades econômicas de produção de mercadorias, e não simplesmente de trocas. Aparece, então, a cidade moderna: afastada do mundo religioso dos mosteiros e das igrejas, mas condenada a se erigir à beira dos muros da fábrica, com a fumaça das chaminés a encobrir os campanários das antigas igrejas e o relógio das indústrias a regular o tempo nas ruas. A arquitetura do passado cede rapidamente terreno a formas e contornos do mundo da produção e do trabalho.
Baudelaire pôde constatar pessoalmente isso quando o bisturi urbanístico do barão Haussmann golpeava a velha Paris, abrindo no corpo palpitante da cidade as grandes artérias – os bulevares – projetadas por Napoleão III. Nesse momento, não havia ainda – à disposição da nascente literatura sobre o urbano – um vocabulário próprio para denominar o novo cenário. As associações metafóricas são usadas na falta de um outro referencial, e a cidade é descrita em metáforas médicas, metáforas visuais relacionadas com a natureza, metáforas orgânicas ou, ainda, metáforas bíblicas. Carl Shorske5 apresenta três modos de avaliar a cidade, reunindo essas metáforas nas seguintes imagens: cidade como “virtude”, como “vício” e como algo “além do bem
e do mal” – sendo esta representativa da superação de discursos monolíticos construídos com base nas duas primeiras.
Na poesia de Baudelaire, estão presentes as metáforas da morte, da destruição, da degeneração, da putrefação, da caveira. São alegorias mais que apropriadas para se mostrar o que ocorria com o corpo da cidade. São fragmentos figurativos mostrados dispersamente, sem forma, mas nunca uma imagem completa – e isso lhe confere o caráter alegórico. A imagem é fragmento, ruína. É importante ressaltar que essa superação só pôde ser realizada na própria prática textual; por isso, os escritores são considerados, por Barthes6, como aqueles que mais se aproximaram da construção de uma semiótica urbana.
Uma cidade é, antes de tudo, um ambiente físico, uma “unidade funcional”, uma construção, no sentido arquitetônico do termo, composta de alguns elementos fixos – como as edificações – e outros móveis – a exemplo dos homens7. Embora “a cidade” possa ser tratada de forma genérica a princípio, cada uma delas tem particularidades, assim como em cada época concebe-se uma noção de cidade. Segundo Kevin Linch, a cidade tem uma “imagem pública” que se forma pela sobreposição das imagens criadas por vários indivíduos, e cada um deles tem uma imagem própria e única da cidade: Cada imagem individual é única e possui algum conteúdo que nunca ou raramente é comunicado, mas ainda assim ela se aproxima da imagem pública que, em ambientes diferentes, é mais ou menos impositiva, mais ou menos abrangente. 8
Esta nova atmosfera propiciou o surgimento da literatura sobre a nascente grande cidade. Todo o espaço urbano é esquadrinhado por centenas de olhos atentos e afoitos a descrever tudo o que era movido ou se fazia mover. Surge aí uma plêiade de escritores cuja musa, então, era o novo espaço urbano. Mas os seguidores do “artista-demolidor” – alcunha que Haussmann deu a si mesmo – proliferaram junto com os escritores da nova cidade. Depois de o poeta de Les Fleurs du Mal ter traduzido, em versos, as mudanças que a nova cidade do século XIX provocava na alma e no mundo físico, muitos outros se ocuparam de tal tarefa. Mas, ainda assim, a cidade parece ser
material inesgotável, sempre passível de novas abordagens – mesmo porque, a nova cidade se renova a cada dia.
Nessa cidade, os conflitos vão ganhar contornos mais nítidos, como se os corpos dos seus habitantes antes estivessem presos às suas pedras. Pedras serão deslocadas e explodirão em miríade sobre as cabeças convulsas dos seus atônicos citadinos.
No século XIX, o fenômeno urbano inquietou as almas, tanto as mais sensíveis quanto as mais rudes. A experiência da vida nas metrópoles fez com que a tradição literária se ajustasse ao estudo singular dessa nova sensibilidade produzida. É a literatura das grandes cidades cosmopolitas – principalmente das capitais culturais da Europa – que trazem em si a complexidade e a tensão da vida moderna. Certamente, essas cidades eram mais do que lugares de encontros casuais; eram ambientes geradores de novas artes, pontos centrais da comunidade de intelectuais, e mesmo de conflito e tensão entre estes.
A princípio, a reação de escritores e intelectuais foi de abandonar a cidade: escapar dos vícios, da velocidade, do agigantamento. O tipo humano nela formado tem sido aquele que compõe a base de uma profunda recusa cultural, visível naquela moda literária nascente – a pastoral – que tanto pode apresentar uma crítica à cidade quanto a superação dela. Mas, apesar disso, escritores e intelectuais sempre gravitaram ao redor das cidades. A multidão em desvario, indiferente ao destino dos demais, chamou a atenção de quem tinha por ofício a escrita. Nas páginas de romances, novelas, contos e poesias, tal população aparece acelerando o passo para não tardar no compromisso com os ponteiros do relógio fabril. Homens e mulheres são empurrados pelo ritmo das fábricas e avançam como esteiras de máquinas na linha de montagem.
Atentos e também vivendo no meio desse tumulto, os escritores do século XIX buscaram matéria literária nesse conteúdo desordenado. A literatura surgida a partir de meados do século XIX é tipicamente citadina. Isso já começa a ser percebido com o romance romântico, que, por se deter no modelo de vida burguês, tende a se
concentrar mais nos espaços urbanos, mas sem perder de vista a concepção de que o campo é o lugar ideal, que concentra uma forma idílica de pureza original. Talvez pelos mesmos motivos que fizeram com que os românticos "guardassem" o desejo do campo, os realistas do fim do século XIX se afastaram cada vez mais dele, concentrando sua atenção primordialmente na vida da cidade.
Indagar sobre as representações da cidade na cena escrita construída pela literatura é, basicamente, ler textos que lêem a cidade, considerando não só os aspectos físico-geográficos (a paisagem urbana), os dados culturais mais específicos, os costumes, os tipos humanos, mas também a cartografia simbólica, em que se cruzam o imaginário, a história, a memória da cidade e a cidade da memória. É, enfim, considerar a cidade como um discurso, verdadeiramente uma linguagem, uma vez que fala a seus habitantes, revela a eles suas partes e seu todo.
Tudo é ação numa cidade grande!, exclamava Restif de la Bretonne já no século XVII,9
justificando o interesse pelo errância urbana. Se a própria cidade não para de crescer, também o interesse da literatura por ela só expande e chega até nossos dias. Neste espaço de tempo, século XVII até hoje, início do século XXI, a destruição e a reconstrução da cidade, também não cessaram. As cidades, que até então conservavam uma aparência medieval. Com suas ruelass ujas com esgoto escorrendo a céu aberto, cede espaço a cidade aberta por grandes avenidas (os boulevards de Paris) favorecendo a perambulação.
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1 BAUDELAIRE, Charles. Abel e Caim. In: As Flores do Mal. 5ª ed. Tradução e notas Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985, p. 420.
2 Gênese, primeiro livro da bíblia, que narra a criação, 11.
3 Ibidem.
4 Ibidem.
5 SHORSKE, Carl. A cidade segundo o pensamento europeu — de Voltaire a Spengler. In: Espaço & Debates, nº 27, São Paulo, 1989, p. 47.
6 BARTHES, Roland. A aventura semiológica. Lisboa: Edições 70, 1992.
7 Cf. LINCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 17.
8 Ibidem, p. 51
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