MALANDRO, MORRO E CIDADE: passado e atualidade de uma trilogia carioca na MPB (2)
O Malandro carioca e o “Maloqueiro” paulista em diálogo através da canção (II)
Márcia Cristina Roque Corrêa Marques
(continuação)
A canção “Saudosa Maloca” retrata exatamente este momento de tensão, em que o novo abre caminho à força, deixando nos indivíduos um ar de saudade e nostalgia.
Márcio Coelho (2003), em uma abordagem semiótica desta canção, ressalta seu caráter saudosista e melancólico, em que uma melodia aparentemente feliz e carregada de emoções positivas traz em sua letra uma dor profunda de perda e um apego muito grande ao que foi destruído, o que é chamado pelo autor de “felicidade de ser triste”.
Se pensarmos nas propostas de Coelho (2003) e de Matos (2001) em conjunto, veremos que ambas as abordagens traduzem o mesmo sentimento díspar: a euforia da modernidade em confronto com a melancolia da perda de raízes, como mostra o seguinte
trecho:
Ali onde agora está
Este adifício arto
Era uma casa véia
Um palacete assobradado
Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construimo nossa maloca
Mais um dia, nóis nem pode se alembrá
Veio os home com as ferramenta
E o dono mandô derruá
(BARBOSA, Adoniran. Saudosa Maloca. 1955)
Ao contar a história, o homem humilde demonstra sua comoção ao afirmar que “nóis nem pode se alembrá” e assume a condição de mero espectador da destruição daquilo que conhecia como lar para que o progresso pudesse se estabelecer, como dito no trecho a seguir:
Peguemos todas nossas coisas
E fumos pro meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nóis sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração
(BARBOSA, Adoniran. Saudosa Maloca. 1955)
Apesar da dor sentida, os homens buscam conformar-se e acabam por buscar consolo na religiosidade, sem ação, apenas com resignação.
Mas por cima eu falei.
Os home tá co'a razão
Nóis arranja outro lugar
Só se conformemo quando o Joca falou
Deus dá o frio conforme o cobertor
(BARBOSA, Adoniran. Saudosa Maloca. 1955)
O fazer musical surge também na canção de Adoniran, não de forma a definir esta atividade, mas como forma de alívio ao sofrimento dos homens. E pra esquecer nóis cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim donde nóis passemo
Os dias feliz da nossa vida
(BARBOSA, Adoniran. Saudosa Maloca. 1955)
Comparando-se as canções de Wilson Batista, Noel Rosa e Adoniran Barbosa, pode-se ter uma tomada de dois momentos vividos pelas duas maiores cidades brasileiras à época. No Rio de Noel e Batista, capital do país e em franca expansão no início do século, podemos encontrar os ecos da população de camada mais baixa que, excluída do processo de expansão, diálogo através da canção criava uma nova forma de subsistir e revidar o processo de exclusão: a malandragem. A preocupação evidenciada por Noel com a imagem do sambista demonstra que, para o carioca, o lugar do sambista tinha uma conotação de grande importância e que a associação com este novo espírito social não era agradável.
Contudo, seja o malandro de Batista seja o sambista de Noel, ambos tinham uma ação combativa perante a sociedade e demonstravam querer seu lugar demarcado, um através de atitudes consideradas ilícitas, outro por uma valorização da condição do sambista. Batista acabou por abrir caminho para uma figura que se tornou definição do “jeitinho brasileiro” (DAMATTA, 1984), e Noel tentou caracterizar a função de sambista, fato que rende seus frutos até hoje, como se
pode verificar na forma como o samba e os sambistas são exaltados no país em épocas de Carnaval (embora logo depois voltem a se tornar figuras anônimas).
(Amanhã, quarta-feira, parte final do artigo)
terça-feira, 9 de novembro de 2010
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